terça-feira, 3 de agosto de 2010

O prazer de avaliar vem dos infernos?!

Não foi só nesta semana, nem há dois anos, nem há trinta, nem há cem, que a avaliação escolar, os seus resultados e consequências foram postos em causa. Podemos afirmar que o debate em torno destes aspectos acompanha a avaliação desde a sua "invenção".

De entre os diversos argumentos invocados, num passado próximo, para a contestar destaca-se a "perversidade dos professores", avançada e defendida por diversas correntes mais ideológicas do que pedagógicas. Afirmavam tais correntes que os professores se agarravam à avaliação como forma de preservar o seu poder, único argumento que justificaria a sua manutenção.

Trata-se de um argumento do qual discordo que não tenho ouvido nestes últimos tempos - preferindo-se o argumento do acompanhamento diferenciado dos alunos para que possam aceder ao sucesso -, ainda assim tem interesse perceber até que ponto os discursos se podem radicalizar nesta como noutras matérias educativas:

“Os professores sabem que as notas não são fiáveis, que não dariam a mesma nota ao mesmo trabalho se lho apresentassem algumas semanas mais tarde e que os seus colegas dariam notas diferentes a esse mesmo trabalho. Eles sabem que são incapazes de precisar, mesmo para si mesmos, os objectivos e critérios de notação. Eles sabem que não sabem em que consiste o «nível» mínimo que permite «passar». Sabem que escapar à média é absurdo. Conhecem os efeitos da esteriotipia e de halo. Sabem mas não querem saber que sabem. Sabem insconscientemente. E é por isso que podem em boa fé falar da sua consciência profissional. Ela é, de facto, inocente: trata-se sim do inconsciente!
Mas porquê? O que é que eles defendem com esta resistência? (...) Defendem um prazer. Um prazer de má qualidade mas seguro, garantido, quotidiano. Um prazer que se tem de disfarçar para ser vivido sem culpabilidade (...). Esse prazer, é o prazer do Poder com P maiúsculo. O professor é o mestre absoluto das suas notas. Ninguém, nem o seu director, nem o seu inspector, nem mesmo o seu ministro, podem fazer nada quanto às notas que ele deu. Pois foi de acordo com o seu carácter e a sua consciência que ele as deu. Com o seu diploma, foi-lhe reconhecida a competência de avaliar (o que não deixa de ter graça!). A sua consciência profissional é inatacável. Na sua tarefa de avaliador, ele é omnipotente. E esse domínio significa poder sobre os alunos. A omnipotência de avaliar: um prazer que vem dos infernos e que não podemos olhar de frente...”

Patrice Ranjard, 1984, 93-94 in Philippe Perrenoud, 1992, 169-170

Referência completa: PERRENOUD, P. (1992). Não mexam na minha avaliação! Para uma abordagem sistémica da mudança pedagógica. A. ESTRELA & A. NÓVOA (1992). Avaliação em educação: novas perspectivas. Lisboa: Educa, 155-173.

11 comentários:

António Daniel disse...

Cara Helena Damião, este assunto dava uma tese. Não sei se o poder vem do inferno ou do «céu». O que sei é que a relação de poder é conatural ao ser humano. Seria interessante explanar as ideias de Strauss, Weber, Freud, Nietzsche. Em todas elas existe a ideia de poder ou de luta pelo poder. Por isso não podemos colocar o véu de maia sobre o espírito apolíneo quando falamos em educação e avaliação. Evidentemente que o aluno, seja jovem ou adulto, exige que essa dialéctica esteja presente, só que na educação esse poder pode muito bem ser substituído pela liderança. O que é ser líder senão exercer poder sobre os outros? O problema está na forma como essa liderança é concebida. Contudo, creio que no exercício do poder existe sempre um certo grau de dependência e troca. Negar isto seria negar a natureza humana. Penso eu de que...

António Daniel disse...

Só mais uma pequena ideia. O modo de difundir a avaliação pode também exercer influência no grau de poder e liderança. Quando a avaliação é justa, e isso é possível ao contrário do que diz o texto transcrito, a liderança é reconhecida e o poder é legitimamente efectivado.

DIFERENTES SOMOS TODOS NÓS disse...

Sou professor. Discordo em absoluto com este tipo de discurso. Concordo com parte do que se diz no texto. Estou de acordo com a maior parte das ideias contidas no texto. Afino pelo diapasão de todas as ideias do texto. Só não concordo com o título!
O tempo dá-nos eloquência!
O Título é extraordinário!

António Daniel disse...

Onde se lê «colocar o véu de maia sobre o espírito apolíneo» deve ler-se «colocar o véu de maia sobre o espírito dionisíaco». Peço desculpa.

Anónimo disse...

Tem piada que eu estava a pensar fazer um comentário no de rerum sobre o poder da avaliação e que me parece que isso é um dos motivos que levam a que as pessoas fiquem desesperadas com o tema de não se poderem reprovar os alunos, e que é também por isso que em Portugal as avaliações são tão estúpidas e massacrantes.
Achei o post excelente. Agradou-me porque é a primeira vez que leio coisas sobre algo que eu também penso, e eu não gosto de pensar que sou o único maluquinho com ideias "estranhas".
Parabéns pelo post! Obrigado.
luis

Fartinho da Silva disse...

Parece que os Pink Floyd continuam muito actuais..., para o autor e para muitos defensores do status quo, o professor deve ser destituído de todo e qualquer poder sobre o aluno..., ou, seja defende que a classe social oprimida (parece que para o autor é o aluno) deve ser protegida da classe social opressora (que segundo o autor é o professor)...! Karl-Marx defendeu o mesmo, mas de uma forma mais global.

Julgo que em 1989 caiu uma "coisa" chamada Muro de Berlim. Este mundo separava o ocidente do comunismo. Julgo que ainda nenhum dos países que deixou cair estes profundos disparates se arrependeu... Parece até que muitos desses países já nos ultrapassaram ou estão prestes a o fazer! E mais acrescento, julgo que nenhum desses países aplicou os ensinamentos do marxismo-leninismo na escola! Porque terá sido?

Anónimo disse...

Conversas... desconexas! JCN

Anónimo disse...

É cada um... para o seu lado! JCN

Anónimo disse...

Seja como se diz no texto. E depois? Não se aplica só a professores mas a todas as relações de poder. Pense-ne nos juízes, nos tribunais, nos empresários (ou patrões), nos políticos, etc. etc. E depois? Pretende-se acabar com todas as relações de poder? Ou seja, pretende-se acabar com toda a hierarquia? Será possível? A curto prazo? Fartinho da silva obviamente não entendeu Marx, parece que está confundir com Bakunine. O que o texto diz no início (os professores sabem que as notas não são fiáveis...) é verdade. Mas vai ter de ser assim por muito tempo. Os políticos sabem que as suas decisões são falíveis, os juízes sabem que as suas sentenças não são fiáveis, os empresários sabem que tramam milhares em certas decisões que lhes interessam, os militares, etc, etc. E depois? O problema está nas ilações a tirar. E quais foram as que Marx tirou?

Anónimo disse...

Ao contrário do anónimo das 18:25 estou cansado de ler coisas do estilo. Limitam-se a constatar o que toda a gente sabe ... sem tirar conclusões embora pareça estar implícito que se deve acabar com toda a hierarquia de mando. O que parece ser o contrário do que o Procurador Geral da República neste momento pensa. Curiosa coincidência.

Anónimo disse...

O poder de avaliar conferido ao professor não é tão absoluto como isso: tem limitações impostas por quem de direito. Mal seria que assim não fora! Proceder discricionariamente, como por vezes ocorre, é mera prepotência. Intolerável! E punível... num estado de direito! JCN

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