quinta-feira, 1 de abril de 2010

O SOL NA LITERATURA


Minha crónica no "Sol" de hoje:

“Ele pertencia a esta espécie de homens – de aparência vagamente desagradável, muitas vezes calvos, baixos, gordos, inteligentes – que são inexplicavelmente atraentes para certas mulheres belas”. Começa assim o último romance do consagrado escritor britânico Ian McEwan, “Solar” (Gradiva), que foi publicado simultâneamente em Londres, Nova Iorque e Lisboa. O personagem principal, a estrela em torno da qual gravitam os outros todos, é o físico britânico Michael Beard, distinguido com o Prémio Nobel da Física pela sua descoberta da chamada “conflação Beard-Einstein” (trata-se de uma ficção, claro, embora se encontre, em apêndice, o discurso de entrega do Nobel, anunciado como “tradução do texto inglês, por sua vez traduzido do sueco”).

O romance desenrola-se nos últimos dez anos e versa o muito mediático fenómeno do aquecimento global. O laureado Nobel começa por trabalhar num protótipo de uma eólica doméstica para depois aplicar a sua teoria na construção de novos painéis solares, baseados no que o livro chama “fotosíntese artificial” (ainda ficção), que salvará o planeta da catástrofe.

Mas a vida pessoal do físico cinquentão é que se revela uma verdadeira catástrofe. De certo modo, ele representa o nosso planeta, num fervor crescente de consumo. Consome comida, ficando cada vez mais gordo à medida que o enredo avança. E consome mulheres, pois a primeira parte do livro começa quando o seu quinto casamento está a terminar, a segunda parte decorre quando ele tem, involuntariamente, o seu primeiro filho de uma namorada com quem passou a viver, para, finalmente, a terceira parte proporcionar o envolvimento com uma empregada de bar norte-americana, no deserto do Texas onde ia ser inaugurada a revolucionária central solar. O mundo poderia ser salvo, mas ele estava perdido.

Pelo meio há um morto, um post-doc em Física que se tinha tornado amante da quinta mulher, a qual, farta das traições do marido, o queria dessa forma humilhar. Alguém o matou? Mais não digo, para não fazer o leitor perder pitada deste romance divertido, inteligente e bem escrito. Só acrescento que, pela obra, perpassam questões bem actuais sobre as relações entre ciência e sociedade, os ataques dos pós-modernistas à ciência, o negacionismo do aquecimento global, a integridade científica, as lutas académicas e empresariais, as dificuldades de comunicação da ciência, o diálogo entre arte e ciência (a expedição ao Árctico de um grupo de artistas, onde o “herói” quase perde o pénis por congelamento é simplesmente hilariante), etc. O cientista aqui retratado é uma invenção literária, mas a quantidade de pecados que ele acumula torna-o um personagem humano, muito humano. Um personagem deplorável, mas também por isso absolutamente humano!

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