quinta-feira, 1 de abril de 2010

CO2 é o prato sujo e lambido da energia


A razão pela qual conseguimos obter energia a partir dos alimentos e dos combustíveis é a mesma: electrões. Há coisas que têm mais electrões do que outras e, tal como numa barragem em que uma coluna de água de um lado tem tendência a passar para o outro movendo uma turbina para produzir energia, os electrões também têm tendência a passar das moléculas onde estão em maior abundância para outras em que estão menos concentrados. É isso que são os açúcares: uma espécie de albufeiras de electrões. E, tal como nas barragens, as células também têm uma espécie de umas turbinas e conseguem aproveitar a energia contida nessa transferência de electrões. Através da respiração celular, os electrões dos açúcares e de outros alimentos são entregues ao oxigénio, formando-se água que é depois expelida pelos pulmões ou transpirada (isto, no caso da respiração aeróbica).

Com os combustíveis é mais ou menos a mesma coisa. Com a diferença de que a respiração celular é um processo bem mais eficiente do que a combustão, uma vez que a oxidação dos alimentos é mais gradual e permite aproveitar melhor a energia (que em vez de ser libertada na forma de calor é convertida em ligações químicas que libertam energia quando são quebradas). Na combustão é muito simples: o combustível é queimado, ou seja os electrões dos hidrocarbonetos são passados rapidamente ao oxigénio, e liberta-se calor.

O que sobra tanto na combustão como na respiração celular, para além da supramencionada água, é o dióxido de carbono. No caso das nossas células acaba por ser expelido pelos pulmões. No caso dos carros é enviado para a atmosfera pelos tubos de escape, para causar o aquecimento global e essas coisas. A combustão nem sempre é completa: por exemplo da queima de lenha numa lareira sobram sempre resíduos sólidos, que são produtos de combustão incompleta. Mas o peso das cinzas nunca é o mesmo da lenha que lhes deu origem. A diferença de peso está no ar, na forma de dióxido de carbono e água.

Tudo isto para concluir que o dióxido de carbono, no que diz respeito à energia, é o fim da linha. São as espinhas, o prato sujo e lambido. Daí a minha surpresa, quando li no Expresso desta semana os seguintes títulos:

"CO2 pode ser combustível"

"Os cientistas dizem que é possível transformar o CO2 emitido numa grande fonte de energia"

Lendo o artigo, é explicado o processo. Passo a transcrevê-lo tal como vem no Expresso de 27 de Março:

"Como reciclar o dióxido de carbono

1. O excesso de electricidade gerado pela renováveis e pelas centrais nucleares à noite, quando o consumo é menor e o preço é mais baixo, é usado para fabricar hidrogénio por conversão directa, por electrólise (separação do hidrogénio e do oxigénio) da água do mar e da água quente das centrais nucleares.

2. As centrais termoeléctricas e a grande indústria (cimento, petroquímica, adubos, aço, queima de resíduos) produzem grandes quantidades de CO2 que são depois capturadas por unidades de absorção instaladas junto às fábricas.

3. O hidrogénio e o CO2 produzidos são combinados em reactores químicos. Daí resultam gás sintético (syngas), combustível automóvel sintético (synfuel), metanol (que pode ser convertido em synfuel ou em olefinas como o etileno, um gás) e combustível para as centrais termoeléctricas.

4. A combustão de todas estas fontes alternativas de energia de origem fóssil provoca novas emissões de dióxido de carbono, mas as geradas pelas centrais termoeléctricas e pela grande indústria são recicladas de novo. "

Ou seja, a verdadeira fonte de energia é o hidrogénio (que devolve electrões ao dióxido de carbono, já que é um potente redutor), cujo fabrico requer grandes quantidades de energia (a tal gerada pelos excessos das centrais nucleares e energias renováveis). Este processo é sem dúvida uma maneira de reutilizar o dióxido de carbono, mas o dióxido de carbono NÃO "pode ser combustível", NEM "transformado numa nova fonte de energia". Pois é preciso gastar energia para que um produto de transformação do dióxido de carbono possa ser usado como combustível. É um pouco como tentar vender uma "fonte de dinheiro" por 25€, quando essa "fonte" poderá dar no máximo 20€. Não é uma verdadeira fonte.

A tecnologia descrita é no fundo uma reutilização de átomos de carbono, que acabam por ser queimados novamente, libertando novamente CO2. Ou seja, o mesmo CO2 é emitido várias vezes (vai sendo reabastecido com electrões). Mas isso é diferente do CO2 ser uma fonte de combustível, porque a energia não está no CO2. Queimar CO2 seria um milagre (e os milagres têm uma fiabilidade duvidosa).

As plantas, através da fotossíntese, conseguem capturar o CO2 da atmosfera e transformá-lo em moléculas ricas em energia. Mas a origem dessa energia não está no CO2, mas sim num fotão que vem do Sol.

4 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Que bela explicação! Depois de dada, até parece simples.
Vou usar este texto para trabalhar com os meus alunos, dentro de dias.
Por que é que estas explicações (esta linguagem, esta clareza, esta simplicidade, este rigor) desapareceram dos livros de biologia do ensino secundário?
Que for capaz que explique...
Eu apenas tenho a certeza de que as capacidades intelectuais das crianças não são agora menores do que noutros tempos.
E também tenho a certeza de que continua a haver muitos professores que gostam de dar aulas (quero dizer, explicar e ensinar), apesar das circunstâncias actuais (em que aquelas palavras parecem proscritas, pelo menos nos programas e nas metodologias que propõem...)
E no entanto, os alunos com mais possibilidades, económicas e cognitivas, pagam para terem fora da escola as "explicações", dadas por professores que, dentro dela, as não podem dar. Se o fizerem, as suas aulas são como que diminuídas. Porque impedem, dizem alguns, que os alunos "construam" o seu próprio conhecimento.
Vá-se lá entender isto...
PS: esclareço que, apesar de solicitado, só dou explicações na escola, nas aulas ou noutros tempos fora delas, pelo preço que o Ministério da Educação me paga. E estou longe de ser caso único. E faço-o com grande gosto. Também esclareço que nada tenho contra quem se faz pagar, e muito bem, pelas explicações que presta, desde que elas valham o preço, na opinião de quem paga.
O problema são os alunos que, apesar de até serem dotados, não têm dinheiro para pagar a quem lhes explique e frequentam escolas e estão inlcuídos em turmas (por exemplo de indisciplinados) em que não há nada que possa assemelhar-se a "explicações".

António Piedade disse...

Um belo texto de divulgação científica. Ideias muito claras de alguém que possuiu um pensamento integrador de várias disciplinas, ferramenta indispensável à Bioquímica.
A demonstração da similaridade de processos nas células de combustível (pilha de hidrogénio) e na cadeia transportadora de electrões na mitocôndria é quase dedutível a partir deste post. Excelente.

Anónimo disse...

Quem fez os títulos do Expresso? Tenho notado que os nossos jornalistas são razoavelmente analfabetos em Ciência e nas outras coisas sobre que escrevem. O que lhes interessa é o espectacular: vejam-se as notícias na TV, eu não lhes chamo noticiário mas sim espectáculo de variedades.

JCC disse...

Gostei do texto, não do título. Percebo a intenção, mas não gosto. Sujo e lambido é algo de contraditório, não? Se foi lambido -- que mau gosto! -- não estará sujo. Se está sujo, quem o quererá lamber?

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...