Meu artigo saído no último número da revista "Pedra & Cal", dedicada à conservação e restauro dos monumentos nacionais:
A ciência é indissociável do património, uma vez que assegura os conhecimentos e os meios, hoje muito sofisticados, para assegurar a sua melhor conservação. Só para dar um exemplo, foi, recentemente, noticiado o trabalho de uma equipa do Departamento de Física da Universidade de Coimbra, que se tem ocupado da análise de materiais em obras de arte, como a pintura dos mestres de Ferreirim ou as esculturas de João de Ruão. Mas, por outro lado, a ciência é ela própria fonte de património, na medida em que é resultado de um processo histórico progressivo, que deixou abundantes marcas físicas (edifícios, objectos, documentos) que importa preservar, para já não falar, evidentemente, do património imaterial que a própria ciência constitui, como um dos componentes essenciais da cultura humana.
Em Portugal, as questões da história da ciência, ligadas de perto à preservação do património da ciência, têm vindo a ganhar cada vez mais estudiosos. É significativo que algumas grandes iniciativas de recuperação de património científico tenham tido lugar e que outras estejam em preparação para vir a ocorrer no futuro próximo. Um bom exemplo é a "primeira fase" do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra (UC), inaugurado no final de 2006, ao fim de um longo processo que, através de uma cuidada requalificação arquitectónica, visou transformar um magnífico espaço de ciência do século XVIII num moderno espaço expositivo (a exposição permanente “Segredos da Luz e da Matéria” integra objectos históricos das colecções da UC e modernos módulos interactivos, construídos com vista a apropriação pelo público de certas ideias científicas, ver aqui). A chamada “prefiguração” do Museu da Ciência no Laboratório Chimico (em cima), num edifício cuja construção data da Reforma Pombalina da UC (1772), que foi um dos primeiros edifícios em todo o mundo construído propositadamente para o ensino experimental da Química e objecto de restauro pelo arquitecto João Mendes Ribeiro e seus colaboradores, permitiu não só abrir ao público um novo pólo de cultura científica, mas também preparar conteúdos e conhecimentos para a "segunda fase" do desenvolvimento do Museu da Ciência da UC, que contempla uma intervenção de maior envergadura no edifício do Colégio de Jesus, mesmo ao lado do Laboratório Chimico.
Também esta “segunda fase” do Museu da Ciência, cujo concurso de projecto está a decorrer, exigirá um processo de requalificação arquitectónica, desta vez de dimensão acrescida, num dos mais antigos colégios da Companhia de Jesus em todo o mundo, uma vez que foi fundado em 1547, ao tempo do rei D. João III (ver gravura do século XVIII). Aí não só um extenso espaço será recuperado para usufruto de todo o público interessado como também um vasto conjunto patrimonial em várias áreas da ciência (astronomia, física, química, geologia, biologia, antropologia, medicina, farmácia, etc.) será objecto de moderna musealização, com muitos instrumentos e objectos a serem mostrados in situ. Tal esforço de recuperação patrimonial relaciona-se de perto com a preparação da candidatura da UC a Património Mundial da UNESCO. O Museu de Ciência da UC, gerido pela Fundação Museu da Ciência, que reúne a UC com a Câmara Municipal de Coimbra, foi distinguido pelo Forum Europeu dos Museus com um prémio para o melhor museu de ciência e tecnologia do ano de 2008 (Prémio Micheletti).
Os dois colégios jesuítas de Coimbra (Colégio de Jesus e Colégio das Artes) juntamente com o Colégio de S. Antão em Lisboa foram nos séculos XVI e XVII importantes pontos de passagem de matemáticos e astrónomos de diversos países europeus, que pretendiam estudar ou ensinar antes de se dirigirem para o Oriente ou para outros sítios (por exemplo, o austríaco Grienberger e os italianos Lembo e Borri, que contribuíram para a divulgação das descobertas feitas por Galileu em 1609). Apesar de terem nessa altura sido protagonistas da cultura científica mundial, o seu ensino degradou-se ao cair na neo-escolástica e, em 1759, invocando um conjunto de razões, a Ordem foi expulsa pelo Marquês de Pombal. O amplo edifício do Colégio de Jesus, no qual está inserida a Sé Nova (pertencente à diocese de Coimbra), foi profundamente adaptado a colégio universitário pela Reforma Pombalina, com a instalação no Colégio de Jesus do Gabinete de Física Experimental e do Gabinete de História Natural, no quadro da nova Faculdade de Filosofia, assim como do Hospital Universitário (com um projectado teatro anatómico) e do Dispensário Farmacêutico, no quadro da Faculdade de Medicina. Essa reforma, que pretendeu romper com a neoescolástica então vigente e estabelecer o ensino experimental, criou, além dos referidos Gabinetes e do Laboratório Chimico, o Jardim Botânico e o Observatório Astronómico.
Foi precisamente o património ligado a essa Reforma que está na origem do Museu de Ciência, que pretende valorizar colecções antes dispersas por vários pequenos museus universitários e nalguns casos pouco cuidadas por manifesta falta de meios. Os instrumentos de astronomia, física, química, história natural e medicina do século XVIII documentam bem o modo como foi perseguido o ideal iluminista da procura do conhecimento por via experimental. Por seu lado, o Jardim Botânico de Coimbra ainda hoje se conserva aberto ao público, sendo um dos tesouros da cidade. Infelizmente, do velho Observatório de Coimbra, que começou por ser construído nas ruínas do castelo de Coimbra e que no século XIX passou para um novo edifício no pátio da Universidade, já não resta património edificado (ver foto em baixo). O Estado Novo, a meio do século XX, arrasou-o num acto de lesa-cultura, alegadamente para “limpar as vistas para o Mondego”. Neste século XXI, recuperar e manter o nosso património da ciência é um acto de cultura.
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1 comentário:
Belo artigo de divulgação!
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