quinta-feira, 18 de junho de 2009

Os “anjos cantores”

Comemora-se neste ano o meio século da publicação da Declaração dos Direitos da Criança (assinada em 20 de Novembro de 1959). Recordar acontecimentos e práticas que conduziram à sua redacção é uma forma de continuar a atribuir-lhe significado.

Sabe-se que vários povos antigos recorriam à castração para terem cantores capazes de interpretar músicas religiosas e de entretenimento. Sabe-se também que no século XII esta prática era bem conhecida em Florença, mas foi a partir do século XVI que se ampliou.

Acontece que, por finais desse século, a alta sociedade europeia descobriu e deslumbrou-se com os madrigais entoados por vozes agudas femininas, o mesmo acontecendo à hierarquia da Igreja Católica de Roma. Porém, esta instituição, confrontava-se com um problema: as mulheres, pelo facto de serem mulheres, deviam manter silêncio na igreja. Num primeiro momento, o problema foi resolvido, com o recrutamento de falsetistas mas, por serem vozes raras, não se conseguiam em número suficiente para preencher os muitos coros que os exigiam. A solução foi recorrer a rapazes castrados que, uma vez legitimada por Bula Papal de 1589, permitiu que, no ano seguinte, dessem entrada na Basílica de São Pedro os primeiros cantores de tal condição. Sabe-se, no entanto, que antes, pela década de 1550, havia coros de castrati em igrejas e em capelas particulares.

Por estes tempos, também na Ópera, onde o gosto pelo virtuosismo se aprimorava, despontou um particular fascínio por estes cantores, porquanto o seu timbre vocal, nem masculino nem feminino, permitia interpretar personagens de deuses e heróis fantásticos. Esta extraordinária capacidade levou músicos, como Händel (1685-1759), a comporem especialmente para eles, atribuindo-lhes papéis de grande nobreza.

As vozes “angelicais”, como foram designadas, atraíam, pois, multidões para a Igreja e para a Ópera, que concorreriam para acolher os melhores dos melhores deles e nas maiores quantidades possíveis.

E, assim, à volta destas duas veneráveis instituições, e no momento em que o Iluminismo despontava, organizou-se um circuito comercial, cujo centro era a Itália, destinado a encontrar rapazinhos promissores, castrá-los e educá-los. Tal circuito, que cedo adquiriu um nível de organização exemplar, além de garantir o “abastecimento” do mercado nacional, fazia "exportações" para outros países europeus, incluindo Portugal.

Este empreendimento era composto essencialmente por angariadores – das cortes, de mosteiros, mestres de música ou de capela –, famílias, “cirurgiões” e conservatórios de música.

Os angariadores procuravam avidamente crianças do sexo masculino, cuja sorte ao nascimento havia sido parca, órfãs ou abandonadas, mas também recolhiam todas aquelas que os pais ou outros adultos entregavam ou vendiam. Por outro lado, as pessoas que tinham crianças a seu cargo, percebendo que se tratava dum negócio rentável e dum investimento de futuro, passaram também a agir por conta própria. Movidos pela promessa de as suas crianças poderem vir a ser famosas, ricas ou, pelo menos, protegidas, e, nessa medida tornarem-se o sustento familiar, enviavam cartas suplicantes aos governadores dos conservatórios, propondo a entrega directa de filhos, sobrinhos, netos, por castrar ou já castrados.

Para que as cordas vocais não crescessem e a voz se mantivesse doce e no timbre certo, a “cirurgia” devia fazer-se entre os sete e doze anos. Os procedimentos, cujo desfecho imediato para muitos rapazinhos eram sequelas corporais sérias ou, mesmo, a morte, são, aos nossos olhos, inqualificáveis. Numa altura em que a infância tinha um valor reduzido, a “cirurgia” era praticados aos milhares (estima-se que se fizessem cerca de 4.000 castrações por ano só em Itália) e à luz do dia (diz-se que muitas barbearias de Nápoles tinham no seu letreiro Qui si castrano ragazzi).

Após o restabelecimento físico, as crianças sobreviventes eram levadas para os conservatórios, onde aprendiam, ao longo de vários anos, as técnicas do canto e aumentavam a capacidade pulmonar, de modo a adquirirem desenvoltura e agilidade vocal que se esperava delas. Estas escolas, frequentes em Itália – Nápoles dispunha de quatro, que foram durante séculos as maiores e as mais prestigiadas da Europa –, funcionavam normalmente como internatos religiosos, pautados por um regime disciplinar severo, um ensino rigoroso e um treino intensivo.

Juízos de valor à parte, a maior parte dos conservatórios, que também recebia jovens não castrados, proporcionava um ensino de elite. Ali leccionavam músicos conceituados e os melhores alunos conseguiam cantar composições tão complexas e difíceis que, dizem os entendidos, hoje se afiguram impossíveis de executar. Assim sendo, eram requisitados para cantar em festas nas cortes e no teatro, ou para, vestidos de anjo, velar o corpo de crianças mortas.

Este seria o melhor cenário e também o menos comum, pois a maior parte dos pequenos cantores ficava pelo caminho, dado que a voz pressagiada acabava por não se confirmar. No que à Ópera diz respeito, conjectura-se que, daqueles que entravam nos conservatórios, apenas 10 a 15% subsistam como cantores, e que apenas 1% chegava a conhecer a verdadeira glória, uma minoria considerada excêntrica e de feitio difícil, que teve o seu apogeu no período barroco. Assim, muitos jovens e adultos, com menor capacidade vocal acabavam como coristas em igrejas menores e os que a perdiam desapareciam do mundo da música, entrado com frequência na vida monástica. São frequentes os casos daqueles que, não conseguindo resistir ao fracasso e à insatisfação social e pessoal, entravam numa vida marginal e se suicidavam.

O leitor que queira ficar com uma ideia mais precisa da origem, apogeu e queda dos "anjos cantores", poderá ler o livro de Patrick Barbier abaixo referido.

Livro: Barbier, P. (1989/1991). História dos castrados. Lisboa: Livros de Brasil.
Imagem: Grupo de jovens cantores castrati. In http://mol-tagge.blogspot.com/2009/05/historia-dos-castrati.html

4 comentários:

Anónimo disse...

Os autores deste blogue já conhecem isto?

http://blog.fundacaorespublica.pt/?p=853

Anónimo disse...

Convém recordar que não existe nada,na Bíblia, que sugira que as mulheres não devem cantar nas Igrejas e que a castração de meninos é a melhor alternativa.

Pelo contrário.

O problema da Igreja Católica e de muitas outras igrejas não católicas foi, muitas vezes, afastar-se da Bíblia e começar a "inventar".

Isso dá sempre mau resultado.

Em todo o caso, regista-se o facto de a Helena Damião acreditar que existem padrões morais objectivos à luz do qual o comportamento da própria Igreja

Se existem padrões objectivos, então isso é porque Deus existe. É que só ele pode ser o padrão objectivo.

Se Deus não existe, toda a moral é subjectiva, não havendo nenhum padrão moral pelo qual a propria castração dos meninos possa ser avaliada e declarada errada.

Se Deus não existe, e se os seres humanos são acidentes cósmicos sem valor intrínseco, apenas podemos dizer que, em nosso opinião, a castração de meninos não pode ser levada a cabo.

O problema é que, se não existe um padrão objectivo de moralidade e se os meninos são acidentes cósmicos sem valor intrínseco, essa opinião não terá mais valor moral do que a opinião contrária.

Jesus disse: deixai vir a mim os meninos e não os impeçais, porque dos tais é o reino de Deus.

Anónimo disse...

"Convém recordar que não existe nada, na Bíblia, que sugira que as mulheres não devem cantar nas Igrejas..."

1 Coríntios

14:34 as mulheres estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas estejam submissas como também ordena a lei.

14:35 E, se querem aprender alguma coisa, perguntem em casa a seus próprios maridos; porque é indecoroso para a mulher o falar na igreja.

http://por.scripturetext.com/1_corinthians/14.htm

António Daniel disse...

Anónimo das 12.19, mal seria se esse relativismo imperasse. É certo que existem práticas diferentes, mas pode haver padrões morais objectivos ou, se quisermos, universais. Qual a relação entre a existência de Deus e a objectividade da moral? Não podemos pressupor que existem valores morais independentes de Deus? Não ficamos indiferentes à castração no sentido de criar tenores para deleite de alguns. Como não podemos ficar indiferentes à mutilação genital. São práticas relativas a certas culturas? São! São boas? Não! São moralmente aceitáveis? Não! Porquê? porque os seres humanos têm valor intrínseco independentemente de existir ou não Deus.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...