segunda-feira, 29 de junho de 2009

Ainda o evangelho segundo Albino Almeida


Novo post de Rui Baptista (na imagem a família dos Simpsons):

“Deus fizera a natureza, mas não a regulava; ao homem de prover à sua acomodação”
– Aquilino Ribeiro (1885 – 1963)

O vibrante apelo de Ramalho ao acompanhamento da educação dos filhos posiciona-se num século em que o progenitor era o único a providenciar o sustento da família, e à mãe estava destinado o simples (mas difícil, ressalve-se o paradoxo!) papel de dona de casa.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, coube à mulher o papel de trabalhadora nas fábricas de material de guerra, enquanto os maridos combatiam na frente de batalha. Este “statu quo” projectou-se para os tempos de paz de uma forma lenta, mas evolutiva. Primeiro foram os estratos económicos mais baixos, em que o escasso ordenado do marido não chegava para o sustento das necessidades básicas da família, a darem seguimento a esta nova realidade. Hoje, mesmo nas famílias mais abastadas, é rara a mulher que não trabalha fora de casa. A entrada no mercado de trabalho das mulheres diplomadas começou por se fazer no então chamado ensino primário e nos liceus femininos que só admitiam professoras. Julgo que a opção por esta profissão se ficou a dever ao facto de o ensino desse tempo deixar horas livres para elas acompanharem a educação dos filhos. Só mais tarde se deu o acesso maciço das mulheres a profissões como a medicina ou a advocacia.

Deparamo-nos, actualmente, com um ensino que escraviza os docentes com trabalhos administrativos de verdadeiros mangas-de-alpaca, preenchimento de fichas de auto-avaliação, redacção de actas que mais parecem relatórios intermináveis com muita parra e pouca uva, ou seja, tarefas que não visam prioritariamente a melhoria do ensino, mas em manter os professores amarrados às escolas, em reuniões sem fim e, por vezes sem finalidade, algumas delas para receber pais que se dirigem ao director de turma, unicamente, em final de período ou de ano lectivo, não para detectar males que ainda estejam a tempos de serem corrigidos, mas, muitas vezes, para arranjarem desculpas para o mau comportamento dos filhos assacado ao mau exemplo dos companheiros de turma, ou para se queixarem das más notas que lhes são destinadas e que eles atribuem a simples embirração ou mesmo mania da perseguição dos professores.

Entretanto, encontra-se a escola portuguesa divorciada da realidade que representa a diminuição da natalidade, tornando-a numa espécie de elefante branco com a abertura de escolas superiores de educação, em competição com as faculdades formadoras de professores numa altura em que uma percentagem considerável dos licenciados universitários com destino à docência se encontrava já no desemprego ou em vias disso. Para agravar uma situação já de si difícil abriram-se escolas privadas de formação de professores que lançaram licenciados na via de ensino através de complemento de habilitações, “à la minute”, para antigos professores do ensino primário que de posse desse grau académico procuraram novos horizontes profissionais em escolas do 2.º ciclo do ensino básico deixando as escolas do 1.º ciclo onde leccionavam com carência de professores devidamente habilitados e os alunos mal preparados para o resto da vida.

Este excesso de formação de docentes, que supera gravemente as necessidades do mercado, deu azo a clamores de milhares de professores no desemprego, ou em risco disso por um emprego precário, o que patenteia o desnorte estrutural da governança por total ausência de um estudo devidamente planificado na área da educação, como se esta situação se resolvesse aleatoriamente pelos seus próprios meios.

Quiçá, esta uma das razões para as queixas dos docentes universitários de que os alunos lhes chegam às mãos sem serem capazes de redigir um pequeno e simples trabalho sem erros de ortografia ou de concordância gramatical. Para além da minha experiência docente neste “statu quo”, surgem, agora, os testemunhos de orientadores de teses de doutoramento que se dizem obrigados a corrigir o respectivo português. E não se julgue que se tratam de doutoramentos no âmbito das ciências e em certas universidades privadas. Nada disso! São doutoramentos das chamadas humanidades, em universidades estatais.

Marcel Proust ensinou-nos que “a vida é um pouco mais complexa do que se diz, e também as circunstâncias; há uma necessidade premente de mostrar essa complexidade”. Ora, a proposta de Albino Almeida não se destina a fazer parte da solução do problema de uma escola que não dá ao aluno a oportunidade de viver em plenitude uma vida em que há mais vida para além dos muros escolares. Faz-se ela própria parte do problema transformando a escola num depósito em que os pais deixam os filhos para que os professores se substituam ao papel dos pais, com a agravante de uma autoridade relacional em que lhes é atribuído o papel de maus da fita de um ensino a que se não pode exigir milagres de desmultiplicação: ensinar é, essencialmente, a missão do professor; educar deve ser, essencialmente, a função dos pais. Acessoriamente, será uma obra que deve ser levada a efeito por uma conjugação de esforços de ambos.

Não querer compreender isto é justificar, “à outrance”, a existência da escola-armazém como “componente de apoio à família para que as crianças possam ficar na escola quando os pais não podem estar com elas”. Tão simples como isto!

9 comentários:

Fartinho da Silva disse...

Caro Rui Baptista,

A tal escola armazém é já um facto consumado, infelizmente e graças às pieguices dos "cientistas" e "especialistas" da educação com a sua conversa de venda da "banha da cobra" foi-se interiorizando a ideia que a escola deveria ter como missão substituir a família e esta conversa pegou!

É deveras surpreendente como a família se viu substituída pelo pai Estado e nada fez para o evitar, chegou mesmo ao ponto de considerar que a escola antes de ensinar deve educar! Espantoso!

O problema central, julgo eu, é que uma parte muito significativa dos professores que hoje trabalham nas escolas já foram devidamente doutrinados na "banha da cobra" e como tal cientificamente são medíocres, pedagogicamente são românticos e auto denominam-se "técnicos de educação"...!

Quando uma parte significativa dos professores já foram doutrinados e já cantam o "eduquês" de memória, quando uma parte substancial das famílias acredita que a escola os pode substituir com eficácia, quando o lobbie das "ciências" da educação depende da manutenção do status quo e quando os principais partidos políticos lutam ferozmente pelas estatísticas do sucesso pelo sucesso, temo que talvez já não se encontre forma de dar a volta a isto.

Espero estar enganado...

José Ricardo Costa disse...

Assino por baixo. Resta saber durante quanto tempo vai durar este modelo de escola e de educação que tão caro irá ficar ao país e às pessoas. Ao país, pois são gerações e gerações que saem da escola completamente carenciadas no que diz respeito a competências básicas e essenciais e, sobretudo, maculadas por uma mentalidade que rejeita o esforço, o método, a persistência, a atenção, a memória. Portugal, enquanto país, irá continuar a reflectir tal mentalidade com elevados custos sociais e económicos. Mas a situação é também grave de um ponto de vista moral, na medida em que impede as crianças e jovens de aproveitar o seu potencial de desenvolvimento, tornando-se adultos menos inteligentes e menos cultos (comparem-se os nossos alunos com os de leste).

Acontece que os cientistas da educação e seus pastores têm um enorme peso simbólico e ideológico dentro das escolas. Acabam por ser os ideólogos que alimentam "espiritualmente" os conselhos executivos (actuais directores, tendo um discurso de tal maneira armadilhado(lembra as seitas religiosas)que os próprios professores acabam também por ser evangelizados.

O engraçado no meio de tudo isto é o facto de haver cada vez mais pais em linha de ruptura com esta ideologia. Muitos pais me dizem que os professores perderam a autoridade (há pais que me dizem, juro, para dar uns tabefes no filho se for preciso) que os filhos não estudam porque não precisam, que não sabem nada. Ainda ontem, no acto de matrícula (mais um trabalho administrativo...) uma mãe me dizia que o filho devia ter chumbado há anos atrás e não agora como veio acontecer.

Para terminar, o seguinte: haverá algum partido político que defenda um modelo de escola e de educação completamente livre de eduquês. A desgraça começou, sobretudo, a partir da reforma Roberto Carneiro (alinhado com o CDS)e tem sido conformadíssima pelos Bloco Central. Mas imaginemos ainda um ministro da Educação do BE ou da CDU. Não seria de temer o pior?

José Ricardo Costa, professor de Filosofia - Torres Novas

Rui Baptista disse...

Prezados Fartinho da Silva e José Ricardo Costa:

Obrigado pelos vossos lúcidos comentários que dão a esperança de que nem tudo está perdido no mundo de perdição em que se transformou a educação portuguesa. Enquanto houver vozes que se levantam para denunciar este "statu quo", a esperança renasce em cada um de nós. Um bom diagnóstico é meio caminho andado para uma boa terapia.

Infelizmente, também eu penso (e tenho escrito) que tudo o que se está a passar tem a sua génese em anos de desvario com culpas para todos os ministérios que têm tutelado a Educação. O mal começou com a Reforma Veiga Simão ao "matar" um ensino técnico espinha dorsal de um corpo profissional actuante que não pode ser desempenhado por "engenheiros" de faz-de-conta. Que pensar de um exército com generais de opereta e sem um exército constituído por soldados, sargentos e oficiais de patente menor? Hoje temos soldados das Novas Oportunidades com os olhos postos no Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos que lhes dará acesso ao corpo de sargento.Depois, em escolas universitárias ou politécnicas de duvidosa qualidade terão acesso ao oficialato. Ou seja, Portugal transformou-se de pé para a mão num exército de ignorantes com diplomas de gargalhada.

Anónimo disse...

Caro Rui Baptista e restantes comentadores:
Já há tempo era para dizer umas "laraxas" sobre o tema, mas o tempo é curto. Sem mais demoras e de uma forma breve:
1) Um dos maiores erros do nosso ensino foi o de acabar com as Escolas Industriais e Comerciais. Há tempos foi-se dando conta do erro e foram sendo criadas Escolas Profissionais, etc. Ter colocado o ensino "todo por igual" é um erro de oportunidades e objectivos. A Escola deve formar (no verdadeiro significado do termo) alunos que no final do percurso escolar possam seguir a via universitária ou a vida laboral, com aptidões e conhecimentos adequados à área de formação. (continua)

Anónimo disse...

Continuando...
2) Outro ponto aqui focado: as escolas são um repositório de alunos o que veio desequilibrar a função de agremiações, clubes desportivos, etc. Por exemplo, como pode um clube desportivo possuir uma actividade de formação, se os alunos abandonam a escola às 18.30? Há noite? Como não há meios nas escolas públicas para disponibilizar actividades desportivas ou culturais, este processo é um meio de despejar os alunos nas escolas, que os leva rapidamente à saturação e ao desinteresse. É cómodo e eeconómico para os pais. É péssimo para a formação e maturação dos alunos.

Outro ponto é o da Escola como meio de saber e do professor como mestre. Hoje, a Escola é um espaço de entertenimento e de convívio. A imagem é negativa. Enquanto a Escola não conseguir (re)transmitir para o exterior a imagem que teve e a ocupar o lugar e a função que representou, dificilmente poder-se-á voltar a ter um Ensino com "E" maiúsculo.

João Moreira

Rui Baptista disse...

Prezado João Moreira:

Seja-me permitido transcrever parte do seu comentário:"Um dos maiores erros do nosso ensino foi o de acabar com as Escolas Industriais e Comerciais. Há tempos foi-se dando conta do erro e foram sendo criadas Escolas Profissionais, etc. Ter colocado o ensino "todo por igual" é um erro de oportunidades e objectivos. A Escola deve formar (no verdadeiro significado do termo) alunos que no final do percurso escolar possam seguir a via universitária ou a vida laboral, com aptidões e conhecimentos adequados à área de formação".

Os responsáveis pelo ensino em Portugal, sempre tão lestos em chamarem a si os exemplos vindos da estranja, esqueceram-se, não leram, omitiram, ou fizeram vista grossa, à opinião de uma figura socialista, com larga e respeitosa audição no sistema educativo francês: "O 'collège' único é uma ficção, um igualitarismo funcional que nada tem a ver com a igualdade real" (Jean-Luc Melénchon, "L'Express, 22.03.2001).

A propósito, escrevi, anos atrás, em artigo de opinião: “Entretanto, teimosamente, persiste em Portugal uma escola única para o ensino secundário, que levou à extinção dos liceus e escolas técnicas. Daqui resulta uma corrida desenfreada (em que, a maior parte das vezes a conta bancária dos pais conta mais que a massa cinzenta dos filhos) no acesso à Universidade – para o qual Carlos Reis, professor catedrático de Letras da de Coimbra, preconiza ‘um modelo exigente e elitista’ - , por todos se julgarem com direito à sua frequência sejam ou não alunos aplicados” (“Diário de Coimbra”, 26.Julho.2001).

Desta forma, passou-se a vulgarizar cada vez mais a instituição universitária que, apesar de tudo, desperta a cobiça das escolas do ensino politécnico. Assim, por exemplo, em anúncio publicado num jornal diário (28/06/2001), a página inteira e a cores, o Instituto Politécnico de Castelo Branco fazia propaganda das escolas nele integradas. Ainda que correndo o risco deliberado de induzir em erro a opinião pública não hesita o referido instituto em lançar a confusão “ espalhando, “urbi et orbi”, que “uma universidade politécnica é assim!”

Ou seja, é assim anunciada uma terceira via de ensino superior , nem peixe nem carne, como se não bastasse a já indesejável promiscuidade entre ensino universitário e ensino politécnico (os dois únicos subsistemas de ensino superior com existência legal) que tanto desprestigia aquele e nada lustra este.

Anónimo disse...

Caro Rui Baptista,
Mais uns pontos:
a) O ensino tem de valorizar e encaminhar as aptidões de cada aluno e ter - não sei se é a palavra mais adequada - a coragem de criar turmas com desafios e objectivos diferentes: os que têm mais aptidão intelectual para um ensino universitário, os que têm mais capacidade e destreza para actividades manuais e por aí adiante, valorizando, cada um, nos objectivos que atingiu. quando se pretende levar tudopor igual, cai-se no facilitismo e cria-se desinteresse, o que leva a nivelar por baixo para garantir o sucesso da escolaridade obrigatória (que concordo, mas com graus de exigência diferentes e adequados).
b) Sobre um post de um senhor canadiano:
Antes de entrar no "magalhães". Se pedir a um aluno que determine a raiz quadrada de 44, provavelmente irá a máquina de calcular (hoje, ao telemóvel) e diz-lhe o resultado, que tanto pode ser 6,6... como 8,34... Foi o que a máquina deu! É este o problema: não há um poder crítico sobre os resultados por que há um desconhecimento de como se determina. Voltando ao exemplo do post, quando se pediu para procurar o significado de "equinócio". (continua)

João Moreira

Anónimo disse...

(continuação)

Os alunos foram dando a resposta...
A utilização da Internet para realizar buscas e trabalhos a este nível tem de ser ponderado. Não basta fazer copy/paste dos conteúdos (o que é usual). O conteúdo dos temas tanto é para o "leigo" como para o conhecedor. Que possibilidades têm estes miúdos de sintetizarem o que foram procurar? Que bases têm para explicar este tipo de fenómenos? Será este o melhor meio de criar pessoas com capacidade de poder crítico e interpretativo do que encontram/procuram?

joão Moreira

Rui Baptista disse...

Caro João Moreira: Plenamente de acordo. Um dos males do nosso ensino reside numa tentativa de clonagem. Pega-se num aluno aplicado e genial que terminou com elevadas classificações uma licenciatura universitária (antes de Bolonha), e, a partir daqui, temos um Portugal prenhe de licenciados ao mais alto nível.

Viveu Fernando Pessoa em século sem estes avanços científicos "dollyanos", daí, talvez, ter escrito: “É preciso violentar todo o sentimento de igualdade que sob o aspecto de justiça real tem paralisado tantas vontades e tantos génios, e que, aparentando salvaguardar a liberdade, é a maior das injustiças e a pior das tiranias”.

Suponhamos que obrigavam Cristiano Ronaldo atirar uma licenciatura. Independentemente de o conseguir ou não, seria o genial jogador de futebol que é? Suponhamos, ainda, que o nosso festejado internacionalmente neurocientista António Damásio tinha sido obrigado a seguir a carreira de futebolista. Um disparate, não é? Pois é essa verdadeira aberração que se passa no nosso ensino em que chega a ser tido como mais importante ter uma licenciatura universitária (ainda que obtida a martelo ) do que ser responsável pelos destinos políticos de um país.

Ou seja, Portugal não se consegue libertar do fascínio dos diplomas como atestado de valores culturais e científicos de faz de conta por não serem alcançados com o esforço de um estudo aturado, apenas com a finalidade de servir de dados estatísticos de exportação que deixem boquiabertos os países mais desenvolvidos no âmbito da educação. Mas não nos deixemos iludir: Oliveira Martins e Alexandre Herculano (sem qualquer diploma de ensino superior)) realizaram uma obra cultural ímpar que muito honra a cultura portuguesa.

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