terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Dois ministérios em luta

O diário As Beiras de hoje, dia 17 de Fevereiro, publicou mais uma crónica de João Boavida na qual se tocam aspectos relativos à língua portuguesa que têm vindo a lume no De Rerum Natura.

As culturas devem exigir que não lhes enferrujem propositadamente os êmbolos. Isto é, devem ser obrigadas a responder aos níveis mais exigentes dos problemas que são para elas essenciais. E a língua é nisto condição e força, motor e combustível.

O facto de o inglês hoje dominar a política, a economia e a ciência não nos obriga a transformar o português numa língua de párias, porque ela não é uma língua de párias. Está aí a literatura para o mostrar, e também muita publicação científica e filosófica. E se em termos científicos não somos hoje uma língua com peso, tal como acontece à maioria das línguas, não é fatal que assim continue eternamente. Porque as pessoas e as situações podem ir qualificando o português como língua científica e de pensamento, ou impedi-lo.

O Ministério da Ciência falou, há dias, na grande evolução que tem havido em doutorados, investigações e artigos científicos. Ou seja, assim que se começou a investir mais na investigação científica, as produções começaram a subir e a melhorar. Se prosseguirmos nesta política continuaremos a evoluir. Estranho é que o Ministério não veja que tirando ao português ocasião para se desenvolver como língua científica e de cultura, nos está a dar, com uma mão, e a tirar muito mais, com a outra.

O português não é uma língua local nem residual. Pelo contrário, é uma língua em expansão, quantitativa e qualitativamente. É pois inaceitável que sejamos nós próprios a cortar-lhe as pernas e a impedir que cresça nos níveis de exigência científica e de pensamento abstracto. E como a língua materna não se pode deitar fora, como as cobras fazem à pele, desqualificá-la cientificamente equivale a matar o pai e a mãe. Ao não considerar as publicações científicas em português, mesmo as boas, Mariano Gago está a fragilizar o cimento das nossas estruturas culturais e o óleo das nossas funções intelectuais. Está a empurrar-nos, a prazo, para um linguajar de carapau e sardinha. Se a especificidade e as possibilidades da língua portuguesa não se sentem ainda tanto como seria desejável, na ciência ou na filosofia, nada impede que isso possa vir a acontecer. A língua portuguesa tem essas possibilidades, mas acabará por perdê-las se continuamente inibirmos a sua expressão nesses domínios.

Atenção, porém. Não é por ser nossa que a língua portuguesa deve ser fortalecida, mas por ser aquela em que nós somos. E fomos e seremos. E isto é muito mais sério do que um cientista possa pensar. Não se trata de a conservar, a evolução linguística rebenta as cadeias; nem de a defender, ela não precisa. Mas não a proíbam de desenvolver as suas capacidades. Que não se sabe até onde vão, é certo, mas que sabemos que definharão se lhe retirarmos as condições de desenvolvimento.

Se, por hipótese, o português tivesse desaparecido, nenhuma outra língua teria hoje o Eça ou o Saramago que temos, e menos ainda o Mia Couto ou o Eugénio de Andrade que temos. Leia-se Aquilino, ou Luandino, e é evidente que estamos perante especificidades expressivas de natureza linguística, que são produtos de uma certa língua e que nas outras não funcionariam de igual modo. Não quero dizer que não funcionem, mas não da mesma maneira. Em arte isto é determinante. Há especificidades, expressões, soluções que as outras línguas não sabem traduzir. Mesmo que, noutros casos, seja verdadeira a inversa. E como o pensamento não é indiferente à língua em que é pensado, não temos o direito de reduzir à indigência uma língua que já produziu o que produziu. E que pode muito mais e muito melhor. Não lhe cortem as pernas, deixem-na andar. Quem ainda não viu que há aqui uma guerra entre o Ministério da Ciência e o da Cultura anda muito distraído.

João Boavida

27 comentários:

Vitor Guerreiro disse...

"Não é por ser nossa que a língua portuguesa deve ser fortalecida, mas por ser aquela em que nós somos. E fomos e seremos. E isto é muito mais sério do que um cientista possa pensar."

Ou seja, a língua portuguesa tem de ser fortalecida porque é a língua que aprendemos desde o berço e que provavelmente os nossos netos falarão.

Ou seja, porque é nossa.

Queime-se então o Kafka por ser um traidor à alma nacional checa, ou talvez devesse escrever em hebraico para ser "mesmo, mesmo" genuíno.

Queime-se as partituras de todos os compositores que registam as alterações dinâmicas em italiano. Genuíno genuíno era o Copland, por exemplo, que foi um dos primeiros a escreve-las em ingles. É que, percebem... um "very fast" não é exactamente um "presto", porra. É como a porra, por exemplo, que não é o mesmo que um vibrador. Há toda uma "alma", todo um frissom, todo um "geist" especificamente, particularmente, idiossincraticamente nacional, todo um "ethos" não sei quê prontos coiso... que o "presto" simplesmesnte não capta. Nenhum maestro que siga a indicação "presto" poderá alguma vez captar toda a subtileza de um "very fast"

... tal como os cámones, pá... os cámones nunca compreenderão o que é a subtileza de sentir "saudades". Não como nós, que até do futuro sentimos saudades.

Peço desculpa a sátira, mas não me contenho.

Vitor Guerreiro disse...

Eis como melhorar a língua portuguesa:

traduzir o Penguin Dictionary of English (ou outro melhor) para português e mandar para o contentor do lixo irreciclável os dicionários nacionais.

... é um começo.

Se o fizermos será um genocídio. Milhões de espermatozóides jamais alcançarão os óvulos da alma nacional... milhares de portugueses nascerão espanhóis ou pior... camónes! Quantos poetas do Ser se tornarão cientistas da esterilidade! Quanto talento desperdiçado. Quantos ladainhas ficarão por cantar.

Livre-nos disso deus nosso senhor.

Desidério Murcho disse...

É perfeitamente possível — e até comum — defender ideias correctas com base em argumentos maus. Ou seja, defender conclusões plausíveis com base em premissas erradas. Eu concordo com o João nisto: não se deve asfixiar a língua portuguesa por via política. Mas não pelas razões nacional-místicas que ele invoca, mas simplesmente por haver pessoas que querem escrever em português e as pessoas são mais importantes do que as políticas e os desígnios nacionais. Ao passo que o João é favorável a Grandes Desígnios Nacionais que Lixam Quem não Gosta Deles, desde que esses desígnios sejam nacional-místicos, eu sou contra quaisquer Grandes Desígnios Nacionais, sejam eles para defender ou para atacar uma língua, porque lixam sempre alguém.

É um delírio confundir o número de pessoas que falam a língua portuguesa com a força cultural de uma língua. A língua portuguesa é falada por muita gente, mas se alguém quiser saber alguma coisa de história, filosofia, química ou matemática um pouco mais sofisticado do que as tontices que se dão no ensino pré-universitário, não pode fazer isso em português. Pelo menos, em obras originalmente escritas em português.

Poderia isso mudar, com o tempo? Sim. Mas é um lirismo insustentável pensar que isso poderia acontecer se desatarmos a publicar física ou matemática ou filosofia de ponta em português. É um lirismo porque a força cultural das línguas é algo que depende de muitos factores, entre os quais factores militares, económicos e sociais.

O mais importante, todavia, não é o facto de ser um lirismo, mas o facto de o João estar a favor de qualquer política que incentive isso, por ser um Desígnio Nacional Fixe, ao passo que não gosta do Desígnio Nacional Gago. O meu pensamento radical e anárquico é pura e simplesmente contra qualquer Desígnio, porque em qualquer Desígnio se deixa de ver o que as pessoas concretas realmente querem e desatamos a conceber as pessoas como meios para os fins políticos — que ainda por cima seriam incoerentemente irrelevantes se não fosse pelas pessoas. Que diferença faz se há ou não há produção científica em português, se não for por causa de as pessoas desejarem isso? Que diferença faz se somos um país cientificamente e academicamente desenvolvido ou não se não for por causa das pessoas que almejam legitimamente à ciência e ao conhecimento? Donde se infere que para a maior parte das pessoas, como dizia um comentador há dias, esta discussão não tem qualquer interesse porque a maior parte das pessoas só se interessa por futebol e telenovelas e telemóveis e mal sabem escrever ou ler uma página do Correio da Manhã, quanto mais um tratado de astronomia ou de epidemiologia.

Em conclusão, opõe-me duas coisas ao João. Primeiro, a ideia nacional-mística de que a língua portuguesa é melhor do que o suaíli ou qualquer outra porque é nossa. Esta ideia é a raiz do racismo linguístico. Segundo, porque o João não se opõe aos Grandes Desígnios Linguísticos, sejam eles quais forem, mas apenas ao tipo de Grande Desígnio Linguístico de que ele não gosta, sendo favorável a qualquer Grande Desígnio Linguístico de que goste, mesmo que outros não gostem desse Desígnio e prefiram outro. Ora, eu sou é contra quaisquer Desígnios que instrumentalizem as pessoas porque considero as pessoas mais importantes do que as abstracções políticas.

Anónimo disse...

ora nem mais, Desiderio! creio mesmo que a razao de AS Beiras incluirem esse artigo do Boavida é o apelo dele ao Grande Designio.

Anónimo disse...

"não nos obriga a transformar o português numa língua de párias, porque ela não é uma língua de párias." Como assim? Então vá de turista e verá que, com grande probabilidade, lhe darão um guia que fale castelhano. Porque sabem que o português é uma ligeira distorção do castelhano.
E com os diplomatas de certos países; enviam para Portugal um que fale castelhano e já sabem que eles começam a falar português logo que percebam quais as terminações das palavra que devem ser alteradas. Por acaso saudade nem é a palavra mais difícil de traduzir do mundo, vem só em sétimo lugar. Mas muitos potugueses "patriotas" têm a mania que falam uma língua muito especial. É só mania...

joão boaventura disse...

Apesar de respeitar a opinião do autor na matéria em epígrafe, não posso deixar de a compaginar com o empolamento dos defensores da língua portuguesa, nos idos de 40 e 50, para a manutenção da sua aparente pureza, e erradicação dos anglicismos e galicismos, que levaram à implantação da Sociedade de Língua Portuguesa.

Aquilo constituiu um acordar das consciências face à invasão dos signos estrangeiros, e essa defesa estava ínsita no nacionalismo inculcado pela ideologia do Estado Novo.

Hoje, a Sociedade de Língua Portuguesa está reduzida à sua quase insignificância, e a luta contra o estrangeirismo corrosivo da língua portuguesa, morreu com o Estado Novo.

A porta abriu-se às escâncaras para os múltiplos signos técnicos internacionalizados do inglês e introduzidos, depois de trajados à portuguesa, pela Academia das Ciências de Lisboa, no contestado Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea.

Não encontro melhor comparação, sem ofensa para o autor, mas a luta que João Boavida trava em três frentes (a conservação da pureza linguística, o desejo de a ver inscrita "língua científica", e a aversão à apresentação de trabalhos em inglês), afigura-se desatempada, e fora da realidade.

O Programa Erasmus/Sócrates, de que a Universidade de Coimbra foi também fundadora, contrapõe-se às ideias de João Boavida, quando no mesmo se estabelece que aos estudantes de licenciatura e pós-graduação se oferece a oportunidade de experimentar e conhecer formas e processos de estudo em diversas Universidades do Reino Unido e Irlanda.

Recentemente doutorou-se uma socióloga no ISCTE, e um elemento do júri era inglês. E aí temos uma tese escrita em português, e inglês, por força das circunstâncias.

O ser europeu é passar o Rubicão. É ser português, espanhol, francês, italiano, inglês, alemão... É derrubar a nossa fronteira mental, o acrisolamento do regresso, a fixação ao mar.

E quanto à literatura científica em língua portuguesa, mais do que solicitá-la, mais do que clamá-la, é fazê-la, apresentá-la, divulgá-la.

Não me parece haver impedimentos para que o português continue a ser "uma língua em expansão, quantitativa e qualitativamente", como diz, e nunca "uma língua de párias", nem "uma língua local nem residual", como teme.

A única maneira de a fortalecer é escrevê-la, e deixar os fantasmas recolhidos nos seus antros.

Cordialmente

Anónimo disse...

note-se, contudo, que a salazarenta Sociedade de Lingua Portuguesa continua a viver num último reduto, nomeadamente o site Ciberduvidas, financiado em parte pelo dinheiro dos contribuintes (tem dois professores destacados pelo Ministério da Educação)e arauto da ideologia nacional-linguistica.

Anónimo disse...

Eu nem estou com João Boavida nem com o Desidério, estarei talvez a meio caminho. Tal como o Desidério, não gosto desse "desígnio nacional-místico" (gostei da expressão). Tal como o João Boavida, acho contudo que se pode fazer algo mais pela publicação dos artigos em português e nisso os alemães e chineses são exemplos.

O alemão foi, no início do séc. XX a língua por excelência da publicação científica. Hoje em dia, com o inglês a tomar essa posição, o alemão não deixou de ser usado, mas passou a ser adaptado. O Angewandte Chemie, por exemplo, tem hoje duas edições: uma em alemão e outra em inglês, sendo que são idênticas (à excepção um ou outro artigo sobre livros em alemão que não está presente na edição em inglês).

Não vejo razões para não criar jornais sobre filosofia, química, biologia, antropologia, etc, etc, etc, que possuam duas edições, uma em inglês e outra em português. Seria um pouco oneroso? Sem dúvida, mas o mais caro até seria garantir a qualidade, mas do que garantir as traduções. E abrir-se-ia a possibilidade de publicação em português.

Quanto a haver muita gente que apenas lê o Correio da Manhã e não se interessar por mais nada, esse argumento é, muito simplesmente, estúpido e estupidizante. É o mesmo argumento que manteve as universidades sem mulheres ("não têm cabeça para estas coisas, ficam melhor em casa"), guetizou minorias ("são inferiores, devem estudar coisas mais simples e não competir connosco") e manteve os estudos superiores abertos apenas às elites ("são uns pobres diabos, têm é que saber escrever o nome e ir à missa, mais nada"). Continuar a tratar as pessoas como ignorantes nada fará para lhes retirar essa ignorância. Bem pelo contrário, mas manterá as elites pensantes como tal, uma vez que não têm ninguém que lhes possa fazer frente. Por esta lógica, Abraham Lincoln ter-se-ia mantido como lenhador, ou algo do género...

joão viegas disse...

Caros,

A lingua não é mais, nem menos, do que aquilo que é falado pelas pessoas. Não ha intrumentlização nenhuma das pessoas quando procuramos fazer com que a educação e a ciência feitas por instituições publicas utilizem a lingua falada pelas pessoas.

Agora é verdade que uma pessoa, considerada individualmente, não escolhe a sua lingua, esta é-lhe imposta por realidades sociais que a ultrapassam. Se cada individuo fosse completamente livre de escolher à nascença a maneira como vai ser educado, sem ser guiado ou influenciado por nada nem por niguém, o proprio conceito de educação deixaria de ter sentido.

Isto é um dado basico constante em qualquer sociedade.

Mas para além disso, a inserção de um individuo numa comunidade politica implica cedências que não se retringem ao campo da lingua. Se determinados individuos portugueses tiverem a possibilidade de trabalhar para a Mafia ganhando muito dinheiro traficando droga, isto obviamente sera benéfico para eles e eles podem ter razões legitimas de dedicar-se a essa actividade. Mas, ao mesmo tempo, não se pode dizer que estejam a prestar um bom serviço à comunidade e, por essa razão, a comunidade dotou-se de regras penais que acabam por restringir a liberdade das pessoas em causa, isto em nome do "interesse publico" de cariz fascista estigmatizado pelo Desidério.

Passa-se o mesmo com as regras que regem o funcionamento das universidades publicas. Estas regras são decididas, por autoridades com legitimidade democratica, tendo em vista o interesse comum das pessoas que constituem o Estado português e que, por acaso, até falam Português e tudo.

Pode ser que um ou outro cientista veja no facto de a sua actividade estar orientada para a utilidade da comunidade um empecilho intoleravel. Este cientista pode então fazer ciência fora da universidade publica, ou mesmo numa universidade publica de um pais cuja lingua ele considera mais comoda.

O que não pode é exigir que o seu interesse egoista - ainda que derive da sua sede de saber - se sobreponha ao interesse dos outros.

Portanto a unica questão que merece ser debatida é se a comunidade fica a ganhar ou a perder com universidades que ensinam em Português. O Desidério acha que não com os argumentos seguintes : para mim e para as pessoas verdadeiramente interessadas por ciência seria mais comodo que o ensino fosse em Inglês, e as outras pessoas que se lixem.

Eu ja não me espanto com isto, mas apenas pergunto : passara pela cabeça do Desidério que são as tais outras pessoas que financiam o ensino publico, e que elas não o fazem por puro altruismo, de maneira que é legitimo que elas possam ter alguma coisa a dizer sobre a questão ? Ou so têm que pagar e calar-se...

Ora se ele se preocupasse minimamente com esta questão, depressa decobriria que as regras que ele não percebe não diferem das que existem em todo o lado e que elas não resultam de imposições fascistas.

Mas procurar compreender esta realidade, pelos vistos, não é considerado ciência. E isto apesar de haver livros dedicados ao assunto em Inglês (e mesmo, em Inglês técnico)...

Vitor Guerreiro disse...

Tudo isso é um rol disparatado de mentiras porque as pessoas podem sim fazer escolhas, podem aprender as línguas que quiserem, nem todas as pessoas falam só português em casa, tal como há crianças bilingues aqui e noutros pontos do mundo e não são melhores nem pior do que as outras, mas têm mais opções. Nem a educação é uma fatalidade de lavagens ao cérebro e acomodação aos preconceitos locais ou familiares. Há opções sim senhora, os miúdos não têm de ser obrigados, como se faz em certos países, por exemplo, a serem tirados da escola pelos pais por pertencerem a uma comunidade amish ou outra parvoíce qualquer. Tal como não é inevitável que as escolas tenham símbolos religiosos nas paredes nem é inevitável que se ensine isto ou aquilo aos meninos.

A cultura tem duas acepções, caraças: ou é o conjunto do conhecimento e das artes, e é indiferente à ao paroquialismo tal como é indiferente à cor dos olhos, ou então estamos a falar das "culturas locais" e isso resume-se a algo muito simples: o conjunto dos preconceitos que, por acaso, são muito populares aqui. Por que raios é que as "culturas" têm de ser importantes ou mais importantes do que a cor dos olhos?

Ponto: as pessoas em geral NAO beneficiam da escrita de ciência dura em português. As pessoas em geral beneficiam com colecções como as da ciência aberta da Gradiva, por exemplo, e não com livros que só um grupo reduzido de pessoas lê com proveito.

Vamos agora supor por um momento, para fins de argumentação, que era verdade que se o português não tivesse surgido não haveria os bons escritores que tivemos. Então isso significa que por cada mundo contrafactual em que a península ibéria evoluísse de modo diferente, ou seja, para cada história alternativa em que não houvesse uns gajos aqui a querer ser governantes à força no lugar do rei castelhano, o facto de o português se ter desenvolvido seria um crime cultural, pois imaginem as centenas de escritores contrafactuais que não teriam surgido se, por exemplo, continuássemos a falar galego ou alguma variante ou ainda outra coisa qualquer.

Ou seja, o que é importante acerca dos bons escritores em português não é o facto de escreverem em português mas sim o facto de terem feito algo relevante humanamente. Tal como é perfeitamente irrelevante que Kafka não tenha escrito em checo ou que os compositores americanos depois de Copland não registem os dinamismos na partitura em italiano.

Qual é a parte desta trampa toda que é assim tão difícil de perceber?

Vitor Guerreiro disse...

uma experiência mental:

península ibérica, sec. XIII, a história segue um rumo alternativo. Ao fim de 800 anos todos falam galego até ao Tejo e uma variante qualquer com mais arabescos para sul. Não há dois países na península mas apenas uma federação ou qualquer outra organização política diferente da que existe.

Ponto: continuou a haver pessoas durante estas centenas de anos, continuou a haver vidas e histórias, quem fizesse ciencia e artes e no sec XXI continuava a haver as mesmas coisas que há, mas as pessoas falavam de modo diferente. Vamos até supor que os escritores eram todos diferentes do que realmente foram. Os clubes de futebol tinham nomes diferentes e a distribuição do poder paroquial era ligeiramente diferente.

Pergunta: O que raios é que se "perdeu" aqui? Neste cenário alternativo. Perdeu-se as pessoas? Evidentemente que não.

Perdeu-se o QUE então? Qualquer coisa "acima de nós" que supostamente tem, e tem, e tem, e prontos, coiso, de REGER a vida das pessoas e de determinar o modo como pensam, como escrevem e como sentem?

Oh pa, que maravilha seria nessa história alternativa não haver fatalismo putanheiro em sol-e-dó e outras pérolas da "cultura portuguesa" e da alma pátria.

Desidério Murcho disse...

João Sousa André, repara que não vejo mal algum em fazer seja o que for com a língua, desde que não se obrigue ninguém a fazê-lo. É incoerente queixarmo-nos de sermos obrigados a escrever em inglês senão não temos financiamento do estado, mas defendermos que o estado deve obrigar a escrever em português para dar financiamento. O estado nada deve obrigar, excepto à qualidade académica, e cada académico deve ter a liberdade de escrever na língua que lhe der na gana. De modo que se as pessoas quiserem dar-se ao trabalho absurdo de traduzir para português coisas para as quais há trinta leitores em todo o mundo, não vejo problema nenhum nisso. É tempo perdido, e é pura tolice, mas não vejo problema. Problema vejo em não se dar atenção à publicação de livros de qualidade que ensinem e divulguem a física, filosofia, história, etc. Pois sem isso nunca terás em Portugal, à excepção de uns poucos privilegiados pessoas que podem compreender textos de investigação de ponta de filosofia, física, etc.

Vitor Guerreiro disse...

"E como o pensamento não é indiferente à língua em que é pensado..."

Este é o tipo de associaçõa livre de ideias que nos inculcam na universidade, pelo menos no curso de filosofia é o pão nosso de cada dia. É um tipo de raciocínio falacioso que consiste em confundir correlações com relações causais. Assim, o facto de a telenovela começar às 21 horas e o comboio para o Algarve sair às 21 horas, depreendemos que há uma relação causal entre a televonela e os comboios, quando há apenas correlação. Mas a falácia não se fica por aqui, é que a correlação aqui não pretende propriamente sugerir uma relação causal mas sim a verdade de uma ideia que nada tem a ver com a) a afirmação da correlação, b) com a verdade ou falsidade da afirmação da correlação.

Em primeiro lugar, não é claro o que se pretende dizer com "o pensamento não é indiferente à língua". É o tipo de afirmação que ou é trivialmente verdadeira ou é grotescamente falsa porque apela a entidades ou relações cuja existência se toma como garantida sem necessitar de explicitação ou esclarecimento. Assim, é trivial que o pensamento não seja indiferente à língua, porque seja qual for a língua em que me exprimo, tenho de me preocupar que as minhas frases sejama gramaticais nessa língua, por exemplo. Há mais preocupações, claro, mas esta é mais básica.

Mas o que o autor pretende afirmar (presumo) é diferente: a língua que falamos limita aquilo que podemos dizer, assinala as "fronteiras" da nossa vida mental, por assim dizer. Ou seja, há um tipo específico de vida mental subjacente a cada língua nacional e há coisas que só são exprimíveis nessa língua. O exemplo mais famoso deste tipo de raciocínio é a ideia de que só os portugueses compreendem a "saudade", seja lá o que se queira dizer com a "saudade". Num sentido é trivialmente falso: todos os seres humanos têm experiência da carência. Noutro é grotescamente falso: os portugueses não sentem coisa alguma do que se fala porque isso não existe, é apenas exaltação política de uma propriedade imaginada que na realidade ninguém consegue explicar o que é... porque não existe. Só parece que existe por causa dos delírios fadistas e outras palermices.

Mas este argumento acaba por ser autoderrotante. Mesmo que fosse verdade que a língua assinala as fronteiras da nossa vida mental (isto é falso, todavia, porque qualquer língua pode ser burilada, a sua flexibiliadde lexical pode ser ampliada, manejada, como procuro mostrar nas minhas reflexões sobre o uso dos prefixos, por exemplo, e nas adaptações a partir do latim, que os ingleses fazem sem ansiedades e que nós somos incapazes de fazer sem consultar a nossa nomenklatura lexikográfica.) Se o português impussesse fronteiras específicas ao nosso raciocínio metafísico, por exemplo, isso seria mais um motivo para aprender mais línguas e romper essas fronteiras. O raciocínio que o nacionalista linguístico faz é algo perverso: porque as fronteiras existem (partimos do princípio que existem, sem argumentar isso) são automaticamente boas e têm de ser exaltadas.

Pensar outra vez urge... há aqui demasiado preconceito enalatado. O melhor é mesmo parar e escrever um artigo sobre esta porcaria toda, para reflectirmos mais no que se insiste em manter implícito.

Vitor Guerreiro disse...

no comentário anterior, "se o português impusesse fronteiras específicas..." - "Se" devia estar em minúscula, pois é o seguimento do que vem antes do parentesis. Desculpas.

Anónimo disse...

Vítor Guerreiro: duas notas.

No cenário "contrafactual" da Península Ibérica, eu também posso dizer que as coisas foram completamente diferentes. É tão "contrafactual" como o seu. Por isso mesmo não me parece relevante para o assunto.

Quanto à questão da influência da língua no pensamento, eu não irei ao ponto de dizer que é fundamental, mas afirmo com covicção que a influência existe. Note o caso das línguas eslavas, que não possuem artigos. Quem as fala tem que usar termos para contornar esse facto. Fá-lo de forma natural, obviamente (tal como quem fala alemão use as regras mais rígidas da língua sem pensar no assunto), mas existe essa adaptação.

Experimente escrever a frase »É esse o ponto da questão» sem o artigo. Fica diferente, não é verdade? Tem então que existir uma pequena mudança na forma de pensar a frase. É um pormenor, sem dúvida nenhuma, mas importante. Exemplo ainda melhor. Diferenciar entre «Essa é a questão importante!» e «Essa é uma questão importante!». Como vê, ainda que não seja o ponto fundamental, a língua em que se pensa é um ponto importante.

Vitor Guerreiro disse...

A exaltação das supostas fronteiras do pensamento, apenas porque se pensa que existem, só parece defensável se pressupormos duas coisas:

a) que as fronteiras específicas ao nosso raciocínio que nos são impostas pela nossa língua em particular são boas só porque derivam da nossa língua, por ser nossa. (a língua em que "somos" - ou seja a língua que limita a nossa vida mental)

b) temos de aceitar o relativismo. Pois se acreditarmos que a verdade é apenas a verdade, em qualquer língua, se os nossos estados mentais e as nossas afirmações são acerca do mundo objectivo, não temos maneira de racionalmente aceitar que as supostas fronteiras metafísicas da língua são boas só porque são. A única maneira de aceitarmos isso é pensarmos que não há verdade nem realidade objectiva e que as línguas nacionais, pelo simples facto de imporem fronteiras ao raciocínio (premissa que o nacionalista linguístico nunca prova ou argumenta, porque é ridiculamente falsa. É como um dogma religioso no qual falamos como se fosse verdadeiro, mas quando alguém nos diz frontalmente que estamos a defender isso, ficamos ofendidos e chamamos "ingénuo" ao acusador) têm de ser exaltadas e são valiosas meramente porque existem.

Ora: as doenças mentais também afectam o raciocínio, ou seja, poderíamos dizer que o pensamento não é indiferente às doenças mentais. Daqui não resulta que as afirmações de um doente mental tenham de ser exaltadas só porque são o resultado de limites específicos impostos ao seu raciocínio por certos estados cerebrais que ele não escolhe nem controla.

A tese do nacionalismo linguístico ainda é mais ridícula. Porque no caso do doente mental essa limitação pelo menos existe de facto e não é difícil mostrá-lo. No caso das línguas nacionais, o PRÓPRIO facto de o nacionalismo se preocupar com o cosmoplitismo e a "contaminação" cultural DENUNCIAM a falsidade da sua tese principal: a de que as fronteiras metafísicas e epistémicas impostas pelas línguas são incontornáveis e intransponíveis.

Vitor Guerreiro disse...

João,

As particularidades da gramática não impõem limites epistémicos ou metafísicos ao nosso pensamento. Os checos por exemplo, ao contrário de nós, usam quase exclusivamente metáforas fecais para expressões em que nós usamos termos sexuais "foder o juízo" por exemplo. Mas isso não significa que não seja possível superar essas particularidades. Foi o que tentei mostrar com toda a história da "psicofoda".

Agora, o que não podemos aceitar sem argumentação é a tese que considero palerma, de que como existem particularidades gramaticais, logo daí decorrem fronteiras epistémicas e metafísicas irredutíveis. Essa é uma tese atraente e que fascina muitos estudantes de 20 anos que em vez de estudarem filosofia da religião nas aulas de filosofia da religião, estudam os delírios poéticos do professor acerca do véu da Maia, do hinduísmo e da santa trindade. Mas o facto de ser fascinante não a torna verdadeira.

Esse é um dos motivos, por exemplo, que faz de autores como Feyerabend (que aceita essa ideia dos limites epistémicos e metafísicas da lingua) sejam tão apreciados de uma forma automática pelos estudantes nessa fase: aquilo é tão atraente, tão irreverente, por comparação a outras teses, que TEM de ser verdadeiro. É demasido "fixe" para não ser verdadeiro. E é este modo de pensar que anima os nacionalistas linguísticos: a tese de que a nossa língua nos impõe limites dessa natureza é demasiado fixe para ser falsa.

Mas além de falsa, essa teoria tem corolários morais e políticos inaceitáveis. Estes corolários associam-na intimamente ao que está errado e imoral no multiculturalismo, que é colocar os interesses das pessoas e a própria noção de indivíduo abaixo das etiquetas étnicas e "culturais" que são meramente arbitrárias. É a tese de que a nossa identidade está fora de nós, fora da nossa pessoa, da nossa vida mental, fora dos nossos corpos, fora da nossa existência. Essa é essencialmente a tese fascista da identidade.

Vitor Guerreiro disse...

Por outras palavras, João, MESMO que fosse verdade que a língua impõe limites epistémicos: isso não seria automaticamente BOM. Mas o próprio facto de o nacionalista se preocupar com a contaminação da "cultura" denuncia que as fronteiras não são inelutáveis nem intransponíveis. Logo, podem ser transpostas.
Mas se o podem, então, caso fosse verdade que há fronteiras epistémicas impostas pela língua, teríamos o DEVER de praticar a promiscuidade cultural, porque a posição do promíscuo seria a mais abrangente e permitiria avaliar com maior objectividade e imparcialidade as afirmações mais limitadas do monoculturalista barricado no seu enclave linguístico.

A única maneira de evitar este imperativo de ética epistémica, seria aceitar o relativismo radical e a pura arbitrariedade fascista: não há verdade a não ser a verdade arbitrária das afirmações motivadas pelas fronteiras epistémicas impostas pela NOSSA língua, só porque é nossa.

Também é ingénua, porque faz às línguas o mesmo que o nazismo faz aos organismos: deixa de os ver como coisas que evoluem ao longo do tempo. As línguas passam a ser "essências" eternas, algures alojadas no seio do pensamento divino. É de disparates deste calibre que se faz a dita "filosofia portuguesa" com que se lava o cérebro aos estudantes nas universidades, infelizmente.

Vitor Guerreiro disse...

Se vires o texto que traduzi do Baggini, o "paradoxo do pão indiano", para a crítica, podes até adaptar uma ideia a esta discussão: a personagem desse texto pensa que o empregado branco anglo-saxónico que lhe serve o pão indiano no restaurante indiano está a perverter a autenticidade da experiência "cultural" (ela queria ser servida por um escurinho com uma túnia de açafrão). Mas isto significa que para ela ser multiculturalista, outros têm de ficar presos no seu enclave cultural. É o que os nacionalistas querem fazer a quem transpõe as imaginárias fronteiras epistémicas da língua.

Vejamos: se o empregado anglo-saxónico não é genuíno, e se há fronteiras epistémicas impostas pela língua, então um "pensador indiano" que rejeite a "metafísica implícita" que a sua língua supostamente lhe impõe, está a carecer de autenticidade. Depois é só aplicar as ideias feitas multiculturalistas sobre o "ódio a si mesmo" que um indivíduo rotulado como "pertencente à cultura x" supostamente manifesta porque rejeita os dogmas da sua "cultura".

Ou seja, o nacionalista linguístico quer que seja imoral os pensadores nacionais transgredirem as imaginárias fronteiras epistémicas impostas pela língua. Mas essas fronteiras não existem, são apenas uma ideologia feita com ingredientes como a saudade e outras parvoíces, que alguma besta considera "genuíno pensamento português". Mas isso é tão arbitrário como afirmar que o fado é a "canção portuguesa".

Música portuguesa é apenas uma etiqueta neutra para música feita por portugueses. O facto de usar ou deixar de usar referências à música tradicional regional é irrelevante, porque as particularidades da música local não são uma fatalidade metafísica. Podiam ter sido outra coisa qualquer e resultam quase sempre de misturas de coisas que não são locais. Se um compositor usa um tema de uma canção popular húngara em vez de uma melodia retirada de um canto alentejano a música é "menos genuinamente portuguesa"?. Até é... porque tal coisa não existe sequer.

Vitor Guerreiro disse...

O exemplo contrafactual, João, é relevante porque mostra a arbitrariedade do nacionalismo: a história em que a língua portuguesa se afasta do castelhano e do galego, etc, a história efectiva na qual estamos, implica que não houve efectivação histórica de outro curso possível de acontecimentos no qual todos continuássemos a falar galego. Claro que se isto tivesse acontecido, teríamos literatura, poesia, artes, etc, em galego (ou até noutra variante qualquer).

O facto de as coisas terem ocorrido de outra maneira significa que essa história alternativa não se efectivou. Mas então se deixar de ter "Os Maias" escrito em português é um crime cultural, também a efectivação da nossa "cultura" é um crime cultural pois custou a não efectivação de outro rumo alternativo em que haveria muito mais literatura galega.

Se Eça de Queiroz tivesse de deixar de existir pelo facto de não haver estado português e sim um território mais vasto onde se falaria galego, não seria certamente por causa da língua mas pelo facto de os seus antepassados não terem procriado entre si devido a essa história alternativa. Se mantivéssemos na mesma a linha genética que leva ao Eça, mesmo que ele falasse galego, é de crer que se tornaria na mesma escritor e que faria em galego coisas admiráveis com a caneta, tal como fez em português. O que é importante no Eça como em todos os autores, não é a língua em que escreveu mas a qualidade do que fez. Kafka podia ter escrito em checo e é de crer que o resultado seria notável. Mas escreveu em alemão. E daí? Um nacionalista ainda mais maluco podia argumentar que a sua obra só seria genuína se a tivesse escrito em hebraico, porque há limites epistémicos impostos pelo hebraico aos seus utentes e que alguma coisa misteriosa no romance "O Processo" só poderia ter sido expressa com idiomatismos hebraicos. Isto é marcadamente idiota de se defender.

Agora imagine-se o crime que foi ter-se impedido a efectivação histórica de um Eça ou de um Camões galegos. Por outro lado, NAO TEMOS ABSOLUTAMENTE QUALQUER INDICIO de que nessa história alternativa a "nossa" literatura galega não iria ter mais qualidade e quantidade do que a que temos agora. Não podemos simplesmente pressupor que a literatura que se efectivou é simplesmente melhor do que a que se teria efectivado se o Afonso Henriques não quisesse ser rei à força e não houvesse afastamento artificial da língua, afastamento que também se fez noutras partes do mundo, por exemplo, na Rússia soviética, com a paranóia anti-cosmopolita.

No fundo, a literatura é tão universal como a música. Só parece que não por causa dos chiliques emocionais dos nacionalistas.

Vitor Guerreiro disse...

O que faz Beethoven ser um bom músico? O facto de ser músico alemão ou o facto de ser um bom músico? Se a língua "não é indiferente ao pensamento", significa isso que o pensamento musical de Beethoven foi afectado pela sua germanidade? Ou talvez pelo facto de os avós serem flamengos? Talvez se houvesse ali algures um antepassado andaluz, a nona sinfonia tivesse uns dedilhados à sevilhana a ritmar os poemas do Schiller.

Assim, o que faz a boa literatura não é a língua me que esta é escrita mas a qualidade da própria escrita. Se a qualidade dependesse da língua então tudo o que seria preciso para ser bom escritor era escrever numa determinada língua. Mas o que acontece com os bons escritores é que eles são bons em qualquer língua que dominem. É porque aquilo que escrevem é relevante que são bons, não por escreverem em alemão ou grego.

Em resumo: a língua em que um bom escritor escreve é tão importante como o tipo de papel que usa ou a tinta, ou o laptop onde introduz o texto pelo teclado: é um MERO INSTRUMENTO e não a fonte mística da sua qualidade como escritor.

Vitor Guerreiro disse...

Os nacionalistas podem gritar-te que não a plenos pulmões, mas jamais te darão argumentos sólidos para mostrar que aquilo que acabei de dizer é falso. Porque eles confundem as suas próprias reacções emocionais à ideia da língua com factos e argumentos, ou seja: as suas crenças são demasiado fixes para não serem verdadeiras. A língua não pode ser um "mero instrumento" porque "mero instrumento" não é fixe. Não porque haja argumentos que o mostrem. Em geral, vão insistir numa versão da falácia naturalista: saltar de observações da natureza para juízos morais. A sua versão particular é saltar da observação empírica de práticas e hábitos locais, para afirmações metafísicas e epistémicas que em lado algum são sustentadas por argumentos.

João Vasco disse...

Excelentes os textos do Vitor Guerreiro sobre este assunto.

joão viegas disse...

Caros,

Acho que ninguem disse que o Portugues seria "superior" as outras linguas. Apenas estamos a dizer que um cientista, ou um escritor, ou um engenheiro ou um medico portugues tornar-se-a interessante (para os Portugueses e para os outros) na medida em que souber compreender a realidade que o rodeia, a sociedade, em que se insere, etc.

Beethoven tornou-se um grande artista porque nao se limitou a papaguear o que ja existia antes dele, mas procurou dar a sua musica um cunho novo que tinha a ver com a sua personalidade e, inevitavelmente, com o mundo que havia a sua volta.

Em vez disso, poderia ter feito como muitos e ter-se virado exclusivamente para a Italia, onde era suposto acontecer a musica "nobre" da epoca, e ter-se limitado a copiar obras de Salieri ou de outros.

O mesmo aconteceu com Berlioz, com Falla, com Villa Lobos e com Copland.

Obviamente, o que faz o interesse intrinseco de um grande escritor nao pode ser intraduzivel, e acho que ninguem defendeu esta tese absurda. Mas radica no que ele conseguiu trazer de novo, que deriva de a sua compreensao peculiar do mundo que o rodeia. E isto tem obviamente muito a ver com a sua cultura.

Nenhuma lingua, nem nenhuma cultura e "superior" as outras. Apenas ha obras superiores, e essas se-lo-ao precisamente por falarem a todos.

So que ninguem fara obra de interesse se estiver de costas voltadas para a sua cultura. Se nao fosse assim, a educaçao nao serviria para nada.

E so isto.

Desidério Murcho disse...

Portanto, Beethoven é bom porque em vez de imitar os músicos italianos imitou os padeiros alemães.

Vitor Guerreiro disse...

Beethoven é bom porque precisamente superou os limites da localidade e fez algo que é universalmente válido. Caso contrário teria sido como tantas outras dezenas e centenas de bons músicos que nunca se destacam acima da média. Os compositores medíocres são-no porque nunca se libertam da localidade. É como um gajo que nunca viu mais além da própria rua.

Quer então dizer que se Beethoven tivesse emigrado para a Holanda, como fizeram os pais de Espinosa, não poderia ter sido um grande músico. Porque só é possível ter boas ideias a interpretar o que está à nossa volta. Assim, os melhores raciocínios musicais são apenas traduções livres da atmosfera envolvente.

Ou seja: só posso ser um bom músico se imitar os taxistas portugueses e não as putas espanholas. De Falla só foi bom porque frequentou as mesmas casas de putas que o Picasso... ou o De Falla era paneleiro? Ah, talvez a genialidade do "noches en los jardines de españa" seja apenas um reflexo das tabernas andaluzas.

Para os nacionalistas a educação só parece valer a pena para inculcar os "valores" locais na cabeça dos meninos. Não é por causa dos meninos como fins em si mesmos... porque não se livram da ideia de que os indivíduos são instrumentos de um "não sei quê prontos coiso, maior do que nós e acima de nós"... o tal desígnio nacional.

Vitor Guerreiro disse...

O que acontece é que De Falla teria feito coisas fantásticas se desatasse a estudar as raízes musicais de qualquer local, ou se se borrifasse para os estudos etnomusicológicos. A cultura musical local é apenas um instrumento para o compositor, tal como os outros instrumentos que usa, tal como a língua é apenas um instrumento para o bom escritor. Os maus limitam-se a, como referiu o desidério, por à frente umas das outras as expressões da moda, ideias feitas, etc... precisamente, a estreiteza provinciana, os que são limitados pelo local.

Os compositores nacionalistas pimba, como o foram o Ruy Coelho (o da "caça aos coelhos" do jovem Lopes Graça) limitavam-se a fazer colagens das coisas que iam agradar aos mentecaptos do seu tempo, amantes de ideias feitas. As "rapsódias portuguesas" deste gajo são colagens atrás de colagens de kitsch nacional. Limitam-se a espelhar o que está à sua volta e precisamente por isso é que não têm qualquer interesse universal, como a música de Beethoven ou Bartok, que também estudou a tradição local musical da Hungria (onde nasceu) e da Roménia e Bulgária.

Alguém tem coragem de comparar as peças do "microcosmos" para piano e as chanfanadas do Ruy Coelho? O que torna um bom e o outro horrível? A cultura local? Por favor!

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...