O número 59 da revista O tempo e o modo, de Abril de 1968, publicou uma extensa entrevista a Jorge de Sena, à qual o engenheiro, ficcionista, poeta, dramaturgo, tradutor, professor, investigador, ensaista, crítico literário havia respondido dois meses antes, de Madinson, Wisconsin, Estados Unidos da América, onde residia e ensinava.
A sua difícil relação com Portugal e o seu meio intelectual constitui o cerne dessa entrevista, da qual reproduzo algumas passagens:
"3. Pensa voltar brevemente a Portugal?
Essa pergunta não sei francamente como respondê-la, porque não sei ao certo que água leva no bico. Se se entende por ela querer saber a razão de, durante estes anos todos, não ter voltado a Portugal, devo dizer que a razão se desdobra em várias, mais ou menos óbvias, e uma delas a falta de dinheiro. Esta será obviada no fim do ano corrente, quando a minha universidade me premeia com uma viagem à Europa, que tenciono concluir em Portugal, antes de regressar aos Estados Unidos. Se pergunta se tenho planos para regressar a Portugal, em caracter definitivo, isso é uma questão, cuja plena resposta na verdade não depende de mim. Eu sou catedrático efectivo na Universidade de Wisconsin, uma das maiores e melhores da América. Que sou eu em Portugal? Voltar, para fazer o quê? O meu maior medo, ao planear uma ida a Portugal ao fim de nove anos de ausência, é precisamente fazer a descoberta definitiva de que ele existe, por enquanto, mais e melhor, no meu coração e na minha cabeça, com perdão para o povo português e de V. Ex.as.
5. Há quem o acuse de susceptível e agressivo. Concorda que o é?
Realmente? Julgava eu que esse mito já havia passado, por se ter revelado inoperante para neutralizar-me e destruir-me. Mas, se acaso sou susceptível, tenho a susceptibilidade dos exigentes e dos afáveis, honestamente afáveis. E se sou agressivo, é só a agressividade do muito amor. Eu não perdoo a ninguém a mediocridade, a estupidez, a vileza, a malignidade, a incultura, a suficiência, a intolerância, o espírito de compromisso, a cobardia moral, etc. Será que estas coisas ainda existem em tão grande escala em Portugal, que eu pareça necessàriamente agressivo e susceptível?...
6. Não é novidade para ninguém que V. é um dos seus maiores e mais seguros admiradores. Mas a frequência com que proclama o seu talento, ou a “obrigação” e necessidade que parece sentir em proclamá-lo não denunciarão uma certa insegurança, a par, naturalmente, de recusa a falsas modéstias?
É um engano total.
Não sou. A única razão pela qual parece que eu proclamo a cada instante o meu talento é porque, até muito recentemente, se eu não o fizesse, ninguém o faria. E, se eu sou agudamente sensível a todas as formas de injustiça haveria de deixar que ela se exercesse impunemente comigo? Poucos escritores portugueses de relativo mérito deverão tão pouco à crítica como eu. De todos os sectores, ou o amesquinhamento foram de regra durante quase trinta anos (…) Dado que eu não acredito em nenhuma forma de imortalidade, e tenho erudição bastante para saber que cemitérios são as bibliotecas e as histórias literárias; e dado ainda que não me dou a participar em partidarismos que me ofereçam, por substituição, a ilusão da imortalidade, será bem clara a razão de exigir o reconhecimento que me cabe por muito e bom que tenho feito. Tenho horror de falsas modéstias, de facto. Mas tenho ainda mais horror da mediocridade que se compraz em recusar-se a reconhecer o que a excede. Não, não sou um dos meus mais seguros admiradores (…) O problema não está em eu me considerar muito grande – mas sim em os outros serem, na maioria, tão pequenos. De resto, devo acrescentar uma palavra de justiça e de grato reconhecimento: foram muitos dos pequenos que não se julgam grandes, e aos quais durante muitos anos não dei nem uma palavra de correspondente louvaminha, quem honestamente, e com isenção, se ocupou mais de mim do que a crítica oficial das várias chafaricas individuais e colectivas. A eles devi, por muito tempo, um comovente incentivo que muitas vezes não recebi de amigos. E, ainda, quero fazer uma pergunta: quantos escritores de categoria se têm ocupado tão largamente e tão numerosamente dos outros seus contemporâneos, como eu fiz durante trinta anos? Quantos? O mais que fazem é louvar às vezes um medíocre ou desenterrar um morto, com medo da sombra que lhes seja feita. A diferença entre mim e eles é que não temo o juízo do futuro, e não procuro tapar o sol com uma peneira.
Não: a minha segurança é total e absoluta: ninguém pode destruir-me senão eu mesmo."
Sobre essa relação de que acima falei, escreve Eduardo Lourenço, num ensaio publicado na mesma revista, intitulado Jorge de Sena e o Demoníaco, que precede as perguntas e as respostas e que, por assim dizer, as elucidam.
"Esta «resistência» a Jorge de Sena é, em parte, merecida, e, as coisas sendo o que são, de certo modo, justa. Jorge de Sena não é um autor fácil. É um autor, e um autor nunca é fácil (...). Esse tom leccionante de Sena tem-se e tem-no feito pagar caro e estabelecido entre o autor de O Indesejado e o seu público (sobretudo «crítico») uma atmosfera de cortar à faca, que aliás tem o seu encanto, e mesmo, as suas vantagens. Parece até que Jorge de Sena se compraz nessa situação de «mal amado» que uma dialéctica fatal sempre acaba por inverter. E os tempos estão próximos, ou já chegaram, em que o urso mal lambido das nossas letras receberá as flores tardias da admiração com salário redobrado (...).
O momento cultural presente, momento pop, é o da glorificação do material bruto, da evacuação da História e sua sombra excessiva, da apoteose do arcaico ou arquetípico, hostil não só a «dramas de consciência» e ao seu refinamento psicoligista, como a «dramas de espirituais» de qualquer ordem. É o não-cultural ou o anti-cultural que solicitam este momento (...) Que laço pode unir uma obra como a de Jorge de Sena, toda penetrada pela Cultura até aos ossos a esta aparência (ou realidade) de grau zero cultural das manifestações ou «proposições» artísticas nas quais se exprime desdem ou furor por tudo quanto seja herança humanística?
(...) o que realmente distingue a sua obra, não só no panorama nacional, onde o seu caso tem foros de insólito, como no contexto mais geral da cultura contemporânea, é o facto dela constituir uma meditação a que a História da Cultura, mormente a literária e espiritual, serve de mediador privilegiado e, por vezes, único (...) a relação de Sena com a Cultura. Esta é a vida simbólica, a experiência ardida mas ardentes dos homens, o fogo sob a cinza a que conhecimento, vigília e honesto estudo permitem aceder (...). Por mais que a obra de Jorge de Sena se manifeste a omnipresença de uma consciência superior à matéria que informa, por mais que uma dialéctica irónica, nos mostre um autor hiper-consciente dos seus dons e do domínio que sobre eles exerce, num virtuosismo sem imitadores pátrios, o jogo prodigioso que se desenrola nas suas páginas nada tem de artificioso."
Estávamos, como acima assinalei, em 1968. Passaram quarenta anos, mas algo de muito actual perpassa nas palavras de Jorge de Sena e Eduardo Loureço.
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1 comentário:
No princípio dos anos 70, salvo erro (o Eugénio Lisboa é capaz de ter a memória mais fresca), Jorge Sena apareceu em Lourenço Marques, onde então me encontrava em serviço, e proferiu uma palestra interessante, abordando vários temas, sendo um deles a preocupação lusa da ortografia e as sucessivas reformas, de que dou agora testemunho.
Contava a história do comandante de um barco holandês que se afundou e, mantendo a tradição de com ele morrer, pronunciou ainda as palavras:
- E assim morre um marinheiro bátavo...
Mas, dada a incerteza de que a palavra fosse grave, e a posteridade não lhe perdoasse o erro, num assomo, ainda conseguiu, com a cabeça à tona, declarar
- ... ou batavo.
Para uma explicação sobre a Batávia e os batavos ler aqui.
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