sábado, 16 de agosto de 2008

História à pressão

O debate que actualmente tem lugar em torno do ensino da História já não se centra na necessidade de justificar o seu lugar no currículo escolar, mas sim de evitar que ela o perca. De facto, nas últimas reformas educativas que têm tido lugar no nosso país, ainda que se lhe atribua uma nobre e ampla função, o seu tempo lectivo foi drasticamente reduzido e a tarefa de a ensinar deslocada para a periferia.

Concretizemos esta questão no 3.º ciclo de escolaridade, onde situamos a nossa análise.

O Currículo Nacional do Ensino Básico imputa à História a responsabilidade de construir “esquemas conceptuais que ajudem [os alunos] a pensar e a usar o conhecimento histórico de forma criteriosa e adequada, e que contribuam para o perfil de competências gerais” (ME, 2001, 88). A análise deste e doutros documentos curriculares indica que os propósitos orientadores do seu ensino deixaram de se limitar à comunicação e conhecimento da herança civilizacional, alargando-se à explicação do presente, à compreensão dos problemas actuais, à procura de soluções para esses problemas, ao entendimento da conjuntura internacional, à valorização de civilizações, à preparação para a democracia participativa… Tão ambiciosos propósitos não se afiguram muito compatíveis com a carga horária semanal que lhe está destinada, a qual varia consoante a escola e o ano de escolaridade: as Ciências Humanas e Sociais (História e Geografia) dispõem, no sétimo ano de dois blocos de noventa minutos e nos oitavo e nono anos de dois blocos de noventa minutos e um de quarenta e cinco minutos. Sendo esta carga horária distribuída pelas duas disciplinas, à História pode ser atribuído apenas um bloco de noventa minutos ou um bloco de noventa minutos mais um quarenta e cinco minutos.

Este problema confirma-se quando passamos para os conteúdos, revelando-se o cumprimento do extenso Programa – com a profundidade adequada aos propósitos enunciados – uma tarefa difícil, se não mesmo impossível. Daí que os professores se vejam confrontados com o seguinte dilema: deixar por tratar temas, quer da História de Portugal, quer da História Contemporânea ou tratam todos os temas, mas de modo superficial. Independentemente da opção que tomem, não podem deixar de se debater com a circunstância de haver demasiada História para ensinar e aprender convenientemente no tempo disponível para tal.

O problema agrava-se quando chegamos às propostas metodológicas que atribuem ao professor, responsável pela concretização dos objectivos e pela aquisição dos conteúdos, o papel de “mero guia” das aprendizagens, uma vez que é aos alunos que cabe a procura e descoberta dos conhecimentos, em função do seu contexto social, económico, étnico… Assim sendo, vê-se confrontado com vários outros dilemas: deve planificar a partir dos documentos curriculares, que têm um carácter prescritivo ou do que desperta atenção e motivação aos seus alunos? Deve transmitir e dirigir as tarefas, de modo a gerir e optimizar o tempo horário, ou proporcionar actividades de pesquisa, que tornem os seus alunos mais autónomos e activos, sob o ponto de vista comportamental? Deve usar uma linguagem adequada, sob o ponto de vista da História, ou ajustada ao modo de falar dos seus alunos para que estes encontrem sentido no que se pretende que aprendem?

Sem conseguirmos encontrar resposta para estes dilemas nos inúmeros discursos educativos que (des)orientam os professores, ironizamos ao afirmar que filmes como o que se segue, podem ser o futuro da disciplina de História – melhor, área curricular disciplinar de História, na nova terminologia da tutela:



Ora, dê o leitor atenção a algumas características deste documento, onde se conta a História de Portugal em sete minutos e dezassete segundos:

(1) Vai de encontro àquilo que se pensa serem os interesses de todos os alunos: “D. Afonso Henriques expulsou a mãe de casa para poder jogar Play Station todo o dia, mas como estávamos no século XII e ainda não havia Play Station, a brincadeira teve de ser mesmo a sério”;

(2) Abdica do rigor da abordagem histórica, em favor de uma abordagem simplista que supomos que todos os alunos preferem: “com os nosso vizinhos de Castela com quem nos dávamos muito mal”;

(3) Estabelece ligações com o presente, pois entende-se que as aprendizagens devem partir da vida quotidiana dos alunos e ligar-se a ela: “… que os espanhóis invadissem e pilhassem o país que nem hooligans quando Portugal venceu a Inglaterra no futebol”;

(4) Utiliza as novas tecnologias, que se crê bastarem para captar a atenção de todos os alunos e os fazer aprender. Além disso, como o ritmo de passagem das imagens e da mensagem é muito rápido, torna a situação “dinâmica” e evita que eles se macem;

(5) Pode ver-se e explorar-se de forma autónoma e/ou em colaboração, permitindo a auto-descoberta e a discussão que o professor orienta sem impor de modo que os alunos encontrem os seus próprios significados;

(6) É conciso mas integral, podendo ser tratado numa aula de quarenta e cinco minutos e arrumarem-se, de uma vez, dez séculos da nossa História;

(7) Bom… é superficial, mas não serve a educação escolar mais para despertar do que para instruir? Mais para “aprender a aprender” do que para “aprender”?

Deixando a ironia e passando para um registo sério, afirmamos que o conhecimento histórico contribui para a perpetuação da memória dos povos e da humanidade, bem como para a inteligibilidade do presente e preparação para o futuro. Assim, o ensino da História assume uma dimensão formativa que deveria passar pelo desenvolvimento de competências cognitivas (de aquisição de informação, de compreensão da mesma, de análise e de critica…) e não pelo doutrinamento, que é apenas e só o que nos arriscamos obter com boas intenções programáticas impossíveis de concretizar e com materiais aparentemente apelativos, ainda que sem substrato científico e pedagógico.

Aurora Viães e Maria Helena Damião

Referências bibliográficas:
-
http://www.dgidc.min-edu.pt/curriculo/Programas/programas_3ciclo.asp
- Ministério da Educação. Decreto-lei n.º 6/2001, 18 de Janeiro (apresenta a reorganização curricular do Ensino Básico.
- Ministério da Educação (1991). Organização Curricular e Programas do Ensino Básico. Ministério da Educação/Departamento da Educação Básica.
- Ministério da Educação (2001) Reorganização Curricular do Ensino Básico: Princípios, Medidas e Implicações. Lisboa: Ministério da Educação/Departamento da Educação Básica
- Ministério da Educação (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais. Lisboa: Ministério da Educação/Departamento da Educação Básica.

3 comentários:

Armando Quintas disse...

Isto nãi é história, é lixo!

É assim que o ministério vê a história, é assim que o país a vê tambem, não passa de meras curiosidades para decorar e logo esquecer, é engraçado e nada mais.
A história é uma das ciências a abater a par da sociologia e da filosofia, como venho avisando aqui neste blog, há uma politica concreta de destruição da história como disciplina do ensino publico, não através da sua supressão mas através da diminuição da sua qualidade e importancia no curriculo escolar.
A sociedade orwelliana, para a qual caminhamos exige que se sacrifique a história, para poder ser reescrita ao gosto dos déspotas.
Isto é o pós modernismo no seu melhor, vamos bem, vamos.

Unknown disse...

O problema do ensino da história e da desaquação entre a carga horária e a extensão dos programas já é antigo.
Fiz o 7º ano, o 8º ano e o 9º ano no final da década de 70. Tive sempre professor de história, no entanto, quando terminei o 9º ano não tinha chegado ao final do livro do 8º, embora quase o tivesse terminado, ficando pelo aparecimento das teorias do socialismo científico e do socialismo utópico.
Quanto à história do século XX, que fazia parte do 9º ano, nem um "cheirinho".
Tenho um filho que vai para o 9º ano e, ao comprar os manuais, fiquei na dúvida se valeria a pena adquirir o de história. Como não chegaram a meio do que deveriam dar até final do 8º, tenho quase a certeza que o livro do 9º ano irá ficar intacto.
Não sei onde está o problema. Programas longos? Tempos lectivos reduzidos? Falta de compet~encia dos docentes?
Se alguém tivesse interesse em resolver o problema já o poderia ter feiro. 30 anos de persistência do erro já não é burrice. É o completo desinteresse.

Paisano disse...

Afinal a História pode não ser aquilo que mais convém.

Especialmente se mostrar que nem todos os líderes foram os melhores, porque é que o actual o seria ???

Se não houver muito conhecimento histórico o mundo Orweliano estará mais facilitado, pois será mais fácil de dizer que aquela versão (a última e mais conveniente)é a Única.

Não haverá muitas memórias para contrariar.

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