sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Clima e gerações futuras

No meu post “Debate Quente Sobre o Aquecimento” comentei que há um aspecto filosófico curioso sempre que se fala de clima: o facto de se presumir sem discussão que temos deveres para com as gerações vindouras. Mas não expliquei por que razão acho isso curioso e algumas pessoas poderão ter ficado a pensar coisas estranhas. O que considero curioso é o desconhecimento do que implica aceitar que temos deveres para com as gerações vindouras.

Em primeiro lugar, implica o abandono da ideia de que o egoísmo pode ser a base da ética. Alguns filósofos defenderam esta posição no passado e por algum motivo as ideias filosóficas das pessoas costumam andar desfasadas umas valentes décadas, e às vezes séculos, em relação ao trabalho que hoje se faz em filosofia. É um pouco como se, no caso da física, fôssemos todos ainda newtonianos, ignorando alegremente Einstein. Se o egoísmo for a base da ética, como explicar a aparência de altruísmo no comportamento e nas instituições humanas? Recorrendo à ideia de contrato social: decidimos fazer contratos entre nós que cheiram a altruísmo, parecem altruísmo, sabem a altruísmo, mas na verdade são meros acertos matemáticos de interesses próprios, mero calculismo amoral. Esta perspectiva das coisas é dificilmente compatível com a ideia de que temos deveres para com as gerações vindouras, dado que nada perdemos rigorosamente se lhes lixarmos o meio ambiente, para nós termos uma vida melhor.

Em segundo lugar, implica o abandono de outra ideia muito popular: a de que só temos deveres perante um qualquer agente moral quando temos empatia moral com esse agente. A generalidade das pessoas pode nunca ter formulado este princípio, mas age segundo ele porque nunca fez a ponta de um corno para ajudar quem quer que fosse que não conheça directamente — e é por isso que há tão poucas pessoas a contribuir para combater a fome em África, por exemplo. Quem pensa que é para si importante o que vai acontecer às pessoas que viverem dois séculos depois de si dificilmente pode pensar que é coerente agir sem dar qualquer importância ao que acontece hoje às pessoas que vivem a vinte mil quilómetros de si.

Estas são as razões pelas quais acho filosoficamente curiosa a posição politicamente correcta de exprimir muita preocupação pelo ambiente que os nossos descendentes terão de enfrentar.

16 comentários:

Pedro Galvão disse...

"Quem pensa que é para si importante o que vai acontecer às pessoas que viverem dois séculos depois de si dificilmente pode pensar que é coerente agir sem dar qualquer importância ao que acontece hoje às pessoas que vivem a vinte mil quilómetros de si."

Não é assim tão difícil. Basta pensar que é muito pior infligir um mal a alguém do que simplesmente nada fazer para evitar que alguém sofra um mal. Lixar o ambiente é estar a infligir um mal àqueles que viverão depois de nós; não ajudar os necessitados, pelo contrário, não é maltratá-los -- é somente não impedir que eles sofram um mal. É claro que esta distinção actos/omissões ou fazer/permitir pode ser eticamente irrelevante -- mas talvez seja relevante. A questão é complicadíssima.

PG

Jorge Oliveira disse...

Quando se tem filhos e netos esta questão filosófica nem sequer se coloca.

Relativamente à problemática do chamado "aquecimento global", que é o que está aqui em causa, só estará preocupado quem for suficientemente crédulo para acreditar na propaganda de Al Gore e restantes profissionais do alarmismo climático, verdadeiros especialistas no mais velho negócio do mundo.

Não, o mais velho negócio do mundo não é esse em que estão a pensar. Muito mais simples. Consiste em levantar uma barreira, ou uma qualquer dificuldade, para depois aparecer o salvador que levanta a barreira, resolve a dificuldade e, claro, factura pela medida grande, muito mais do que as pobres coitadas em que estavam a pensar.

Ao longo dos tempos este negócio passou por várias fases (ou paradigmas, se quisermos dar oportunidade à apelativa expressão “mudança de paradigma”) até chegar aos sofisticados métodos actuais.

Em épocas remotas, os bandidos, estúpidos já se sabe, assaltavam a caravana, matavam toda a gente e desapareciam com os bens roubados. Depois apareceram os antepassados dos primeiros consultores, que sugeriram uma alternativa muito mais proveitosa. Bastava colocar uns troncos na estrada para impedir a passagem da caravana. Mediante o pagamento de uma certa quantia, os troncos seriam removidos. Poupando os viajantes, promovia-se a repetição da passagem e garantia-se o encaixe de futuras receitas. Bastava o medo de ser roubado e morto para o viajante pagar a portagem. Excelente.

Mas a cabecinha dos consultores não pára. O paradigma foi mudando para tudo ficar na mesma, ou seja, garantir o negócio. Meter medo aos crédulos, fazendo-os acreditar que o céu lhes pode cair em cima da cabeça, constitui a versão moderna do mais velho negócio do mundo.

O veículo do actual terror internacional é o inocente dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa. Excepto o vapor de água, olha quem, de longe o mais importante gás com efeito de estufa da nossa atmosfera, mas de que eles se esquecem com especial habilidade. De facto, o “greenhouse gravy train” proporciona bons rendimentos a uma legião de habilidosos, sejam cientistas, sociedades de advogados, consultores, burocratas ou políticos.

Aqueles que o brandem o dióxido de carbono à frente dos olhos assustados do gentil público, em tudo quanto é jornal, televisão, ou revista, esses mantêm a mesma atitude dos seus longínquos antepassados salteadores de estrada : quem lhes descobre a careca sujeita-se a ameaças ferozes, que só não chegam à eliminação física dos oponentes porque os tempos são outros.

Desidério Murcho disse...

Pedro, o teu comentário parece-me incoerente. Repara, se dizes ao mesmo tempo que a distinção entre actos e omissões é complicadíssima (e é), não podes dizer que não é difícil compatibilizar a ideia de que temos obrigações morais relativamente a quem vai viver dois séculos depois de nós com a ideia de que não temos obrigações morais relativamente a quem vive a vinte mil quilómetros de nós. Precisamente porque a distinção entre actos e omissões é tão complicada, se essa for a única via para compatibilizar as duas coisas, então é difícil compatibilizar as duas coisas precisamente porque é difícil mostrar a plausibilidade da distinção actos/omissões.

O objectivo dos meus dois comentários é mostrar que a ideia de que temos obrigações morais para com quem vive dois séculos depois de nós, se fosse levada a sério, implicaria uma revisão séria de muitas atitudes e ideias que são hoje comuns. O facto de haver maneiras filosoficamente sofisticadas de tentar compatibilizar as coisas é um tanto irrelevante, pois tentar compatibilizar essas coisas filosoficamente já é admitir que há uma tensão que precisa de ser resolvida, ao passo que as pessoas comuns nem se apercebem de tal coisa. E o objectivo dos meus post é pôr à mostra essa tensão de que as pessoas nem se apercebem. Ser ecológico é politicamente correcto, mas pode ser um dogma tão tolo quanto não o ser. O problema não é ser ecologicamente correcto ou deixar de ser, mas o modo como se é qualquer uma dessas coisas.

Desidério Murcho disse...

Jorge, se a questão só não se coloca para quem tem filhos e netos, então as pessoas solteiras e sem filhos deviam baldar-se completamente para o problema, o que não acontece de facto.

Além disso, quem tem filhos e netos enfrenta as mesmas dificuldades: se essas pessoas pensarem que as únicas razões para parecer altruísta são contratualismos egoístas, então nenhuma razão têm para aceitar um contrato com o qual nada vão lucrar. E se pensarem que só devemos “cuidar dos nossos”, então nenhuma razão têm para se preocuparem com a qualidade de vida dos seus bisnetos distantes, porque em nenhum sentido relevante do termo essas pessoas são “os nossos”.

j disse...

"Se o egoísmo for a base da ética, como explicar a aparência de altruísmo no comportamento e nas instituições humanas?"

A explicação melhor que encontrei (pelo menos para não biólogos) está descrita no livro "o gene egoísta".

José Simões

Jorge Oliveira disse...

Caro Desidério

Dizer, como eu disse, que “a questão não se coloca” não é mesmo que dizer, como diz o Desidério, que “a questão só não se coloca”. O “só” faz toda a diferença.

Mas eu apenas transmiti o meu sentimento. Pai de cinco filhos, avô de cinco netos (por enquanto) e engenheiro desde os oito anos de idade, estou-me um pouco borrifando para dúvidas existenciais. Existo, logo existo.

Por isso passei à frente a abordei a questão que me parecia mais importante. Mas não tenho a pretensão de pensar que a minha perspectiva é a mais importante.

Pedro Galvão disse...

"Pedro, o teu comentário parece-me incoerente. Repara, se dizes ao mesmo tempo que a distinção entre actos e omissões é complicadíssima (e é), não podes dizer que não é difícil compatibilizar a ideia de que temos obrigações morais relativamente a quem vai viver dois séculos depois de nós com a ideia de que não temos obrigações morais relativamente a quem vive a vinte mil quilómetros de nós."

Olá!

Não disse que a distinção actos/omissões é complicada. Levanta dificuldades de análise, claro, mas de um modo geral aplicamo-la com facilidade. Disse (ou quis dizer) que é complicado determinar se essa distinção é eticamente relevante.

Eu acho que é. De um modo geral, provocar um mal é pior do que não impedir que um mal ocorre. Por exemplo, de um modo geral é pior matar uma pessoa do que não salvar uma pessoa; é pior maltratar do que nada fazer para ajudar, etc.

Outro esclarecimento: acho que temos obrigações morais tanto em relação às pessoas temporalmente distantes como em relação às pessoas espacialmente distantes. O que penso é que, tanto num caso como no outro, essas obrigações são sobretudo negativas: são sobretudo obrigações de não prejudicar, e não obrigações de ajudar.

Portanto, eu posso afirmar consistentemente: não tenho nenhuma obrigação (ou tenho uma obrigação muito fraca) de ajudar as pessoas espacialmente distantes a satisfazer as suas necessidades, mas tenho uma obrigação forte de não prejudicar as pessoas temporalmente distantes infligindo danos ao ambiente.

Claro que isto não é uma crítica aos teus dois posts no seu todo; a crítica é só ao que dizes (se te percebi bem) no penúltimo parágrafo do segundo. Em suma, contrariamente ao que pareces sugerir, não é difícil uma pessoa que não faz a ponta de um corno para ajudar quem vive longe defender coerentemente que temos obrigações de não prejudicar os que viverão no futuro. Essa pessoa só tem de dar peso moral à distinção actos/omissões e de defender assim que temos sobretudo obrigações negativas para com os outros.

PG

Desidério Murcho disse...

Não, Pedro, a coerência moral não me parece assim tão fácil para quem segue o politicamente correcto pensamento ecológico. A distinção entre actos e omissões não resolve de modo algum a coisa. Porque tanto num caso como no outro se trata de mudar de modo de vida, de fazer algo, para permitir que outras pessoas tenham uma chance — sejam pessoas do futuro ou de um país distante. Em nenhum dos dois casos estás a matar directamente essas pessoas distantes; apenas as consequências do que fazes ou deixas de fazer tem um ou outro resultado para elas.

Na verdade, não penso que as questões ecológicas sejam uma trapaça. Mas penso que é uma trapaça a adesão que as pessoas tendem a ter aos ideais ecológicos. Analogamente, não penso que o altruísmo seja uma trapaça — penso que é o egoísmo que é uma trapaça. Mas penso que é uma trapaça a adesão que as pessoas tendem a ter a ideais altruístas. Nos dois casos — ideais ecológicos e altruístas — parece-me que as pessoas tendem a fingir que aceitam essas ideias só para se sentirem bem consigo mesmas, mas depois não põem os actos onde põem as palavras. Mas isto, claro, é apenas o resultado da minha observação assistemática do comportamento das pessoas, e não o resultado de qualquer estudo empírico sobre isso. Mas seria muito interessante ler estudos empíricos sobre isto, se é que os há, ou fazê-los, caso não existam.

José, uma boa refutação cuidadosa das ideias de Dawkins acerca de genes egoístas está no livro "Darwin's Cathedral":

http://criticanarede.com/html/lds_catedraldarwin.html

Ludwig Krippahl disse...

Desidério,

Penso que estas coisas são mais fáceis de perceber se considerares que grande parte da filosofia ética é tentar racionalizar aquilo que intuitivamente nos parece certo, e que o que intuitivamente nos parece certo é consequência de heurísticas não necessariamente coerentes que herdamos em virtude de corresponderem àquelas que permitiram aos nossos antepassados deixar mais descendentes que os seus contemporâneos.

Isso inclui, entre outras coisas, ter mais consideração pelas gerações vindouras do que pelos competidores a vinte quilómetros dali.

alf disse...

Eu fiz uma experiência há algum tempo atrás, quando me comecei a aperceber da possibilidde de cocorrência de um fenómeno que tenho referido no «outramargem» com o nome misterioso de «Evento».

Expunha o assunto a pessoas conhecidas e dava um prazo para a ocorrência - 800 anos. A reacção imediata era: que interessa isso? A seguir analisava a margem de erro do meu cálculo e concluía: "mas não é impossível que aconteça na geração dos vossos filhos ou netos". Aí o interesse das pessoas mudava.

isto confirma o que o Desidério sustenta; mas a questão não acaba aqui.

Como insinua o Ludwig, é fácil sentirmos empatia por seres imaginários, como as gerações futuras; muito diferente é sentirmos pelos miseráveis deste mundo - nem vale a pena pensarmos nos de África, eles vivem aqui, neste país. É que quando pensamos nas gerações futuras pensamos em pessoas lindas, simpáticas, generosas, com tudo para serem felizes - uma imagem muito diferente dos esfomeados cobertos de sofrimento e de moscas. Esta imagem não desperta a nossa empatia, apenas a nossa solidariedade racional.

Mas há ainda uma outra razão: as pessoas precisam de causas! Quando se levanta a bandeira das gerações futuras está-se a erguer a oportunidade de uma causa. Não interessa se a causa é válida ou não, interessa apenas que seja uma causa!

As pessoas estão «esfomeadas» por causas. A necessidade de ter uma «causa» é muito mais forte do que a necessidade de justiça, por exemplo.

Quando se contesta o CO2 está-se a combater uma «causa», por isso as pessoas reagem violentamente - estão a querer roubar-lhes a «causa». Que interessa se isso é verdade ou não?

Para tirar esssa «causa», só arranjando outra melhor.

Desidério Murcho disse...

Caro Ludi, há uma diferença muito grande entre racionalizar — no sentido de apresentar desculpas esfarrapadas para o que queremos sustentar independentemente de ser ou não realmente sustentável — e procurar justificar as nossas crenças mais básicas. As pessoas que querem à viva força acreditar que foram criadas por um deus barbudo que planeou o universo inteiro para elas podem estar a racionalizar os seus desejos mais primários, mas nem por isso estão a justificar adequadamente a sua crença. A ética será racionalização das nossas crenças quando for mal feita, e como tudo o que os seres humanos fazem é natural que grande parte seja realmente mal feita, mas nos seus melhores momentos isso está longe de acontecer. Qualquer ser humano pode aprender a pensar objectivamente sobre a realidade das coisas, para lá dos seus desejos e crenças mais instintivas. Presumivelmente, todos os seres humanos são instintivamente racistas, mas nem por isso o racismo é realmente justificável — apesar de haver muitas racionalizações que procuram justificar o injustificável.

Desidério Murcho disse...

Caro Alf, parece-me que acertou num aspecto importante, mas penso que vale a pena sublinhar o seguinte: as “causas” mais populares são sempre causas em que as pessoas basicamente nada têm de fazer de especial para as levar a cabo — basta conversa fiada politicamente correcta. Ecologistas a conduzir Jeeps e a comer bifes é o mais comum. O factor mais importante aqui penso que é o seguinte: as pessoas menos reflectidas gostam de manter uma imagem ampliada de si mesmas. Não querem assumir que são umas bestas, como eu e a maior parte da humanidade; são seres humanos perfeitos. E, claro, como de facto não o são, entram em pura negação da realidade e em contorcionismos conceptuais genuinamente fantasiosos, e filosoficamente interessantes precisamente por serem tão transparentemente incoerentes. A incoerência é a marca mais visível de racionalização hipócrita.

Ludwig Krippahl disse...

Desidério,

« A ética será racionalização das nossas crenças quando for mal feita, e como tudo o que os seres humanos fazem é natural que grande parte seja realmente mal feita, mas nos seus melhores momentos isso está longe de acontecer.»

Concordo em princípio. Na prática, no entanto, há o problema de só sabermos se está bem ou mal feita em retrospectiva, e por vezes décadas ou séculos mais tarde...

Desidério Murcho disse...

Tal e qual como na ciência, Ludi. Isto é assim pela singela razão de que nenhum de nós é omnisciente, nem está livre de ser tendencioso, cego aos seus preconceitos e de uma maneira geral palerma.

De Rerum Natura disse...

Muito interessante, atento, oportuno, filosoficamente arguto o texto do Desidério.

Mas, por outro lado, em que grau são «pensados», assumidos, o egoísmo ou a indiferença dominantemente praticados?

E esse altruísmo não poderá ser visto com um egoísmo numa outra escala, ou melhor, num outro registo?

Desajustada (não encontro outra palavra para, numa palavra, dizer o que implicaria uma reflexão com muitas palavras) parece-me a ligação ou a referência ao «politicamente correcto». Ligação sobre a qual o Desidério faria para nós, seguramente, outra reflexão muito interessante...

O que me parece verificável é que, na ordem do efeito prático, dos comportamentos, é efectivo que o conhecimento suscita, gera, a solidariedade. É por isso que a escola que temos é um pesadelo.

Guilherme Valente
(comentário recebido no blogue vindo do editor da Gradiva)

José M. Sousa disse...

A ideia de que as consequências do AG só afectarão as gerações vindouras não é verdadeira. Se as tendências que se registam continuarem ao mesmo ritmo, as consequências far-se-ão sentir para a maior parte das pessoas hoje vivas, e não daqui a dois séculos!

Recomendo, mais uma vez, que deixem de lado a obsessão com o Al Gore e façam o esforço para ler alguns cientistas que investigam e publicam, nomeadamente estes:

www.realclimate.org ou

James Hansen ( na minha humilde opinião, este senhor é que deveria ter ganho o Prémio Nobel):
http://www.columbia.edu/~jeh1/

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