quarta-feira, 23 de julho de 2008
"THÍASOS" OU A EDUCAÇÃO CLÁSSICA
Thíasos é o nome de um grupo de teatro universitário vocacionado para a representação dos clássicos, que está sedeado no Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
No ano em que se comemoram quinze anos de vida do grupo, falei com um dos responsáveis pelo seu surgimento, Delfim Leão, que é também encenador e actor. Na presente entrevista fala-nos da origem e percurso deste grupo, do trabalho desenvolvido e das pessoas que o constituem.
P: Comecemos pelo princípio, pelo nome do vosso grupo, o que significa Thíasos?
R: É um termo grego, que designa um grupo de adoradores de Diónisos ou, se preferirmos, os "companheiros de Diónisos", geralmente Sátiros e Ménades, que o acompanham na suas deambulações míticas. Sendo Diónisos o deus do teatro, o Thíasos acaba por ser também a "companhia teatral" por excelência.
P: Como é que o vosso Thíasos surgiu? Penso saber que o Delfim, ainda estudante, teve responsabilidade na sua criação…
R: Alguma terei tido, de facto, se bem que, inicialmente, nem eu nem os meus colegas finalistas fizéssemos ideia de que poderíamos vir a criar um grupo de teatro. Estávamos nos inícios dos anos 90. O nosso curso era muito unido, a ponto de termos criado já um grupo de música (o Carpe Diem), que, durante vários anos, deu espectáculos em Grego e Latim um pouco por todo o país, e ainda um jornal trimestral (o Sic Itur). Para comemorar um trajecto formativo que a todos nos envolvera muitíssimo, resolvemos realizar, no último ano, um congresso sobre O Amor desde a Antiguidade Clássica. Tínhamos pouquíssimos meios, mas com a adesão franca dos docentes e de outros colegas, conseguimos reunir cerca de 600 participantes. Entre os trabalhos do congresso, havia um espectáculo musical pelo Carpe Diem e uma apresentação parcial da peça O soldado fanfarrão de Plauto. A encenação esteve a cargo do Dr. Carlos Alberto Louro Fonseca, um docente já falecido que nos marcou muito a todos e teve um papel determinante neste despertar para o teatro. Entre as pessoas envolvidas na experiência, estavam três colegas de curso, que viriam a reencontrar-se alguns anos depois, como Assistentes, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: eu próprio, o José Luís Brandão e a Luísa Ferreira. A partir de então, a pragmática teatral passou a fazer sempre parte da nossa existência profissional e lúdica. A agregação de outros colegas docentes e o apoio de todo o Instituto de Estudos Clássicos foram determinantes para que o Thíasos surgisse formalmente e se afirmasse, mas também é correcto distinguir o empenho entusiástico que o Doutor José Ribeiro Ferreira colocou nesse projecto e na criação do Festival Internacional de Teatro de Tema Clássico, que acaba de cumprir, este ano, a décima edição.
P: Os actores são estudantes, professores e funcionários da Faculdade de Letras de Coimbra, mas também aceitam pessoas de fora. Os únicos critérios que impõem são o gosto pelo teatro e algum tempo livre. Têm tido muitos candidatos?
R: Temos tido os candidatos necessários para garantir a manutenção do projecto nos moldes em que foi criado. A ideia é juntar, precisamente, todas as forças da academia, sem distinção de estatuto, e o Thíasos sempre funcionou dessa forma. Geralmente, estão envolvidas nas produções cerca de trinta pessoas e todos os anos é necessário substituir elementos que, entretanto, iniciaram a actividade profissional. Os docentes e funcionários ajudam a dar estabilidade ao núcleo central do grupo, mas há também antigos alunos que colaboram com o Thíasos há quase dez anos, contribuindo grandemente para firmar a sua identidade.
P: O grupo não se limita a encenar e representar as peças, faz também traduções e adaptações, trata dos cenários e dos adereços, concebe e executa os trajes… Há uma razão pedagógica para que assuma tantas tarefas?
R: Há, essencialmente, duas razões, ambas com incidência pedagógica. Em primeiro lugar, parece-nos muito importante que os elementos conheçam todas as frentes do espectáculo e alguns percorreram mesmo toda a “escola” – desde apoiar a logística do espectáculo, até trabalhar como actor, bailarino e, em alguns casos, traduzir a partir do original uma peça e testar as próprias ideias na encenação. Por outro lado, desenvolver todo o trabalho permite não apenas integrar pessoas que não têm apetência pela representação, como ainda ajuda a poupar recursos e estimula, igualmente, a própria investigação. Uma das linhas de investigação do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos corresponde, precisamente, à pragmática teatral, ao esforço para estudar e compreender o teatro antigo enquanto fenómeno cultural e lúdico no seu próprio tempo.
P: No que respeita à adaptação das peças, como espectadora tenho percebido que introduzem elementos contemporâneos, alguns deles populares, que obviamente não constam do original… Isso não incomoda os mais “puristas”?
R: O equilíbrio entre uma visão mais “arqueológica” do espectáculo ou uma abordagem mais livre e receptiva a fracturas é uma questão que se pondera sempre na altura de iniciar a dramaturgia e encenação. Cada produção é independente das restantes, mas a linha orientadora do Thíasos privilegia uma abordagem que procura aproximar-se do contexto de produção original. Ainda assim, há sempre um esforço de actualização, mais visível, de resto, na vertente “política” da comédia antiga. No entanto, também isso não deixa de estar de acordo com as características do teatro clássico, que não era um tipo de produção estática, dobrada à seriedade da palavra dita, mas antes um espectáculo em todas as frentes, com muita cor, canto e coreografias visualmente complexas. Não nos esqueçamos de que o termo theatron nos remete para a ideia de “ver” e que a orquestra (um ponto central na arquitectura do teatro antigo) ou o coro acentuam, na própria etimologia, a presença da música e da dança.
P: Ao longo de uma década e meia, quantas peças já representaram?
R: Cerca de dezena e meia. Geralmente, temos em cena duas ou três peças ao mesmo tempo, mas o usual é manter em cartaz a produção do ano anterior e conceber um espectáculo de raiz cada ano, que serve de ocasião, precisamente, para dar mais formação e integrar novos elementos no grupo.
P: Neste ano apresentaram as Vespas, numa tradução de Carlos Jesus, cujo enredo é actualíssimo. A ligação com o presente é um dos critérios de escolha das peças que levam à cena?
R: Não propriamente, nem isso é necessário. Por norma, o teatro clássico tende a ser intemporal e, por conseguinte, é sempre possível ao público fazer uma leitura da representação que, uma vez despida de alguns referentes de época mais datados, nos surpreenda pela evidente actualidade. Foi isso que permitiu aos autores clássicos continuarem a ser representados e apreciados ao longo de vinte e cinco séculos de existência.
P: Diria que a cultura clássica é sempre actual?
R: Sem dúvida. Constitui um património cultural que faz parte da nossa própria identidade e quem visita com frequência os autores antigos está constantemente a ser surpreendido pela sua espontânea modernidade. Os meios à disposição do ser humano conheceram grandes inovações, mas a humanidade em si continua basicamente a mesma e, pesem embora as inegáveis conquistas, em alguns aspectos até está pior. Mas o Mito das Cinco Idades de Hesíodo já dizia isso mesmo – há quase trinta séculos!
P: O grupo tem um autor preferido?
R: Não, pois já encenámos Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes e Plauto. Fizemos também algumas adaptações, como por exemplo da obra poética de Marcial, e já abordámos por duas vezes o grande clássico português – Gil Vicente. Todavia, entre os grandes autores dramáticos, ainda nos faltam Menandro, Terêncio e Séneca, de maneira que o Thíasos pode continuar a propor novos espectáculos durante várias dezenas de anos, sem nunca repetir nenhuma obra. Procuramos, sobretudo, intercalar, em termos de produções, a comédia com a tragédia, de forma a termos sempre em cena espectáculos com natureza bastante distinta.
P: Sendo muito débil a cultura clássica da nossa população e apostando o grupo na representação, não só em cidades onde há um público mais escolarizado, mas também em terras do interior, como têm sido recebidas as vossas peças?
R: Ao longo destes anos, as nossas produções já foram vistas por cerca de 25.000 espectadores. Se juntarmos as performances integradas no Festival Internacional de Teatro de Tema Clássico, então o número mais do que duplica. Há, portanto, uma receptividade bastante boa e que aumenta de ano para ano, fidelizando público. Em média, cada performance tem cerca de 200 espectadores, o que é um número bastante elevado para teatro. Se atendermos a que, por norma, distribuímos também um livro-bilhete com o texto representado, dá para ter uma ideia do esforço formativo que o grupo tem vindo a desenvolver junto da população em geral.
P: Desde há muito que apostaram também nos palcos internacionais. Nesse contexto, como são recebidos?
R: Até agora, demos por várias vezes espectáculos em Espanha, França e Itália. É certo que a língua é uma barreira, mas o retorno do público tem-nos mostrado que, apostando num espectáculo bem ritmado e expressivo, o resultado pode ser muito bom.
P: Além do teatro, o grupo dedica-se também à poesia… Quando e porque é que a poesia surgiu no vosso projecto?
R: No mundo antigo, o teatro, a música, a dança e a poesia são expressões artísticas extremamente próximas e conviventes. Assim, a aposta em recitais surgiu como uma expansão natural das actividades do grupo, sendo que alguns elementos se dedicam, em particular, a essa vertente. Seria incorrecto não reconhecer, porém, que a motivação para os recitais tem partido muitas vezes do Doutor José Ribeiro Ferreira (ele próprio poeta e leitor entusiasta da poesia), em articulação com iniciativas várias, em especial as chamadas Terças-feiras de Minerva.
P: Como professor e investigador, como encara o Delfim a tendência para afastar a cultura clássica dos currículos escolares?
R: A obsessão por valorizar estatísticas que disfarcem o insucesso decorrente de más políticas educativas leva a que os programas se concentrem excessivamente na actualidade mais recente ou nas tecnologias de informação e comunicação. Desta forma, tudo o que remeta para um passado mais remoto ou pressuponha uma aprendizagem mais exigente (as línguas clássicas, tal como a literatura ou a própria matemática) tende a ser desvalorizado ou mesmo suprimido. É um erro enorme confundir sucesso com facilitação excessiva ou o acesso rápido à informação com superficialidade na aprendizagem. A antiguidade clássica, na vertente cultural e linguística, pode, a par de outras matérias, dar um auxílio precioso na criação de estruturas identitárias estáveis e no desenvolvimento de métodos de trabalho e de reflexão. Também é necessário adaptar metodologias, matérias e objectivos, mas essa é a resposta que os classicistas estão dispostos a dar à sociedade, desde que a sociedade não seja impedida de aceder a este tipo de conhecimento fundacional.
P: Partilha a opinião de George Steiner de que uma civilização sem os seus clássicos não tem futuro?
R: Uma civilização que não tenha consciência do seu passado, das suas raízes linguísticas, do seu património cultural, em suma da própria natureza matricial, não pode obviamente ter futuro, pois está condenada a andar numa constante deriva identitária. Já Homero nos dizia isso, ao fazer Telémaco sair de Ítaca, em busca do pai. Não bastaria ao jovem ser Telémaco, para se afirmar como pessoa: precisava de ser Telémaco – o filho de Ulisses.
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