sexta-feira, 4 de julho de 2008

Formalismo no ensino

O post da Helena “Exames sem Erros, Porém Erróneos” suscitou alguns comentários muito interessantes que apontam para o facto de algumas pessoas terem começado a dar-se conta do fenómeno a que chamo “formalismo”. O formalismo é a marca distintiva do ensino português, mas não se pense que isso é surpreendente. Todo o ensino tende para o formalismo e só professores realmente competentes e cientes da tendência podem combatê-la. O formalismo surge quando o ensino está desligado de tudo, não está integrado na vida, surge como uma excrescência que nada tem a ver com coisa alguma: uma mera formalidade para ter notas e ir à vida que a morte é certa.

As ideologias do “eduquês” que invadiram o Ministério da Educação procuram combater este conhecido fenómeno, mas combatem-no mal. Assim, em vez de se procurar estratégias para mostrar a verdadeira natureza e importância da matemática ou da geografia, eliminam-se quase todos os conteúdos destas disciplinas reconhecíveis como tal, e enche-se o currículo dos estudantes de vacuidades escolares que têm muito a ver com a vida… mas só aparentemente. Isto porque o problema é o modo como se aborda seja o que for na escola, e não os conteúdos em si. Por exemplo, os estudantes não precisam que lhes ensinem a usar o “chat” na Internet, nem precisam que lhes ensinem as abreviaturas usadas nos “chats” e nos telemóveis. Mas se tal coisa começasse a ser ensinada, seria o maior dos tédios para os estudantes e eles nada aprenderiam, apesar de ser algo ligado à vida, se, como é previsível, a abordagem fosse formatada pelo formalismo prevalecente.

Não é fácil fazer um diagnóstico iluminante do formalismo, mas pelo menos as seguintes parecem propriedades dominantes:

1) Incapacidade para explicar realmente a razão de ser das coisas. Em vez disso, afirma-se categórica e autoritariamente que é assim e pronto. Por exemplo, em vez de se explicar cuidadosamente por que razão a multiplicação de um número positivo com um negativo dá um número negativo, limitamo-nos a fazer os estudantes decorar que “mais com menos dá menos”. É por causa deste aspecto que muitos partidários do “eduquês” se insurgem contra a memorização, mas isto é um disparate (que resulta precisamente de formalismo, ironicamente). Aquilo que qualquer especialista competente da educação sabe e afirma é que a memorização não pode substituir a compreensão, e não que a memorização tem de ser eliminada do sistema de ensino. Mas como os maus técnicos de educação sofrem eles mesmos de formalismo, não sabem muito bem por que razão devemos “ser contra” a memorização, e acabam por trocar as tintas.

2) Incapacidade para escolher os conteúdos relevantes. Em qualquer área de estudos há pormenores que nunca mais acabam. E que são irrelevantes no seguinte sentido: se um estudante for correctamente exposto às matérias e métodos realmente fundamentais, poderá descobrir por si as outras ou poderá compreender um livro que as explique. É crucial escolher os conteúdos que têm uma ligação maior ao estádio cognitivo dos estudantes e que ao mesmo tempo são centrais. Caso não se faça isto, mais uma vez temos uma memorização acéfala de pormenores completamente irrelevantes. O exemplo que melhor conheço disto é a lógica aristotélica. Em si, esta lógica estuda apenas 256 formas argumentativas válidas, com apenas 4 formas proposicionais (não interessa agora explicar o que são formas argumentativas e proposicionais). Ora bem, ao longo dos séculos de mau ensino medieval, transformou-se esta lógica minúscula num bicho-de-sete-cabeças, com inúmeras falsas subtilezas e conteúdos. Resultado: os professores que decoraram várias irrelevâncias querem depois transmiti-las aos alunos, e são capazes de andar um semestre inteiro a leccionar pormenores sem qualquer interesse. No final, os alunos decoraram várias coisas, mas não aprenderam o que realmente conta. Em contraste, eu ensino esta lógica apenas numa semana (quatro horas de aulas), depois de os alunos saberem lógica de predicados. Nada há de fundamental nesta lógica que eles não saibam ou não compreendam se forem ler um livro que fale dos vários pormenores que não estudaram; porque estudaram o que conta.

3) Incapacidade para fazer perguntas com elevado grau de discriminação cognitiva. (Por “grau de discriminação cognitiva” refiro aqui a capacidade para distinguirmos os estudantes que compreendem realmente as coisas dos que não as compreendem mas as memorizaram.) Ao fazer exames o formalismo reaparece. Como? Fazendo-se perguntas que não testam realmente a compreensão que o estudante tem das matérias ou das metodologias, mas antes a mera memorização acéfala. O que significa que os alunos podem acabar os seus estudos com óptimas classificações sem no entanto fazerem a mais pequena ideia da realidade do que estudaram: aprenderam apenas a memorizar e repetir mantras sem sentido. No caso da lógica isto é particularmente evidente, como sublinhei no livro O Lugar da Lógica na Filosofia. Pensemos no seguinte: uma definição correcta de argumento dedutivamente válido é que se trata de um argumento no qual é impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Se fizermos perguntas do género “Defina argumento dedutivamente válido”, não saberemos distinguir um aluno que realmente compreende a definição de um que apenas a decorou. Solução? Fazer perguntas que exijam que o aluno domine realmente a noção; por exemplo, se perguntarmos “Pode um argumento dedutivamente válido ter conclusão falsa? Porquê?”, a probabilidade de um aluno que não domina a noção conseguir responder adequadamente é mínima. E é possível fazer perguntas de resposta múltipla com o mesmo grau de discriminação ou com um grau aproximado.

4) Transposição para o ensino do formalismo herdado. Muitos de nós fomos educados no formalismo, nomeadamente académico: dissertações de mestrado e doutoramento que nada realmente dizem, que são meros resumos do que outros escreveram, sem que o autor compreenda realmente o que está a resumir; aulas intermináveis na faculdade em que o professor só está preocupado em fingir-se superior mas quase nada do que diz ele compreende cabalmente; repetição acéfala dos chavões académicos da moda ("paradigma", "construção", "identidade", etc.) sem que se pare para pensar no que estamos realmente a dizer. Como quase todos fomos vítimas deste ensino, é natural que ao ensinar perpetuemos a fraude. Para impedir isso é preciso um envolvimento activo tanto nas matérias da nossa especialidade como na actividade de ensinar, coisa que exige trabalho, amor e profissionalismo. Quando se ensina não podemos esquecer que estamos a lidar com pessoas, e se tivermos um profundo desprezo por quem estamos a ensinar é natural que não tenhamos qualquer motivação para tentar fazer melhor do que nos fizeram a nós.

Comecei por afirmar que todo o ensino tende para o formalismo. Esta afirmação é uma especulação empírica que resulta da minha observação assistemática das coisas, tanto no presente quanto na história do ensino. A ser verdadeira esta especulação, importaria tentar descobrir porquê. Penso que há uma boa hipótese de trabalho: isso acontece porque as sociedades humanas são tipicamente profundamente hierárquicas e autoritárias; a liberdade é uma coisa relativamente nova; a tradição e a autoridade sempre modelaram as relações humanas, e por isso também o ensino. Acontece que a filosofia grega introduziu novidades cruciais no mundo, novidades que deram origem à ciência: a liberdade de pensar, a paridade entre seres humanos, a substituição da tradição e da autoridade pela prova e pela argumentação. É essa revolução que custa a ser feita, mas enquanto não for feita o ensino não poderá atingir a qualidade que todos desejamos.

7 comentários:

Anónimo disse...

Uma das razões pela qual este formalismo acontece, para além da “tradição e autoridade” que o Desidério referiu, é a preferência do governo por números a qualidade. O governo gosta de mostrar números, isso já não é novidade nenhuma, mas quando as suas políticas começam a ter grande impacto na qualidade do ensino, as pessoas começam a ficar atentas ao que se passa. O facto dos professores terem sido ensinados, à nossa semelhança, com formalismo, também não irá ajudar na altura de dar as matérias. Criando, desta maneira, uma corrente entre gerações de ensino formal. A pouca margem que as escolas dão aos professores para ensinar, na altura de leccionar também não vai ajudar os alunos. Lembro-me perfeitamente de um grande professor que eu tive, lamentar-se com o facto de dar matérias que não iriam servir para coisa alguma, no nosso futuro. A escolha de matérias a serem dadas, também devem ser cuidadosamente escolhidas, uma vez, que precisaremos de bases sólidas para o nosso futuro. A preferência à memorização do que ao entendimento, já não é de agora, muito dificilmente os professores que ensinam na base da memorização irão mudar agora, sendo que este método de ensino faz parte deles. Os pormenores em vez do que realmente conta, já não é de agora e, como eu disse anteriormente, para mudar isso, devem ser rigorosos os critérios de escolha de matérias.

Carlos Pires disse...

Esse formalismo e a ausêncya de autêntico debate não ocorrem apenas nas aulas. É frequente também no trabalho de equipa entre professores. Já me aconteceu, por exemplo, fazer planificações e exames em conjunto com colegas e eles ficarem incomodados e até ofendidos com discordâncias e críticas às suas propostas. Depois, em vez de argumentarem a favor da sua posição e de rebaterem os meus argumentos, dizem coisas do género: "isso é a tua opinião", "isto é um assunto muito subjectivo", etc. Aparentemente, consideram que defender uma opinião com argumentos é uma manifestação de arrogância. Não é por isso surpreendente que depois se limitem a pedir aos seus alunos para memorizar e repetir. Do ponto de vista desse género de relativismo, a memorização e a repetição acrítica parecem ser menos arrogantes que a reflexão.
Carlos Pires

susskind disse...

Bom post!

alvares disse...

Confesso que já não há paciência para tanta hipocrisia...
As ideologias do “eduquês” não nasceram do nada... Com certeza foram desenvolvidas e estudadas no "nosso brilhante ensino superior". Se o senhores professores universitários estivessem menos preocupados em "defender" as suas aldeias e a criar licenciaturas e mestrados vazios de conteúdo muito provalvelmente estas ideologias do “eduquês” no teriam chegado a este nível...

Sérgio O. Marques disse...

Bom artigo...
Só estranho é que, sendo esse um fenómeno de longa data, só se comece a fazer notar agora.
De qualquer forma, identificado o problema (e já é um começo), ainda se tem de pensar numa solução.

Rui Peres disse...

Pensar numa solução ? Deixar a ignorância, a teimosia, o orgulho e o folclore de lado. Pode ser que assim cheguemos a algum lado.

Desidério Murcho disse...

Caro Sérgio, não é só agora que várias pessoas começaram a denunciar os erros colossais que têm sido feitos em educação. Desde há pelo menos dez anos que eu e outras pessoas o fazemos. E quanto a soluções, desde há pelo menos dez anos que eu as apontei também -- e as pratiquei: publicar bons livros para professores e estudantes, publicar bons manuais escolares, boas traduções de bons livros estrangeiros, dar formação de qualidade aos professores. Não há solução política para os nossos problemas educativos. O que há é trabalho humilde, mas real, a fazer. E muitas pessoas fazem-no há anos.

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