domingo, 9 de setembro de 2007

Uma mistura explosiva

Sherlock Jr é um filme de 1924, em que Buster Keaton é um aprendiz de detective que nesta cena foge a bolas de bilhar explosivas.

Na noite de sábado várias explosões abalaram os arredores de uma fábrica da Nobel Enterprises em Stevenston, Escócia. A explosão, que envolveu cerca de 1 500 toneladas de nitrocelulose, foi acompanhada de chamas de mais de 30 metros de altura. Os bombeiros conseguiram controlar rapidamente o incêndio que não causou danos para além dos materiais.

A fábrica foi instalada em 1870 por um químico famoso, Alfred Nobel. Em 1926, a Nobel Explosives integrou a Imperial Chemical Industries (ICI) tendo posteriormente recuperado o nome do fundador mantendo a parte explosiva se não no nome pelo menos nos produtos que fabrica.

De facto, embora a nitrocelulose tenha sido criada para substituir o marfim, cada vez mais raro devido ao abate sistemático de elefantes provocado pela grande procura dos produtos manufacturados com as suas presas, rapidamente se descobriu que, para além de muito inflamável, é explosiva e uma tacada um pouco mais vigorosa numa bola defeituosa podia ter as consequências inesperadas exploradas por Buster Keaton.

A nitrocelulose foi um dos primeiros polímeros «artificiais» utilizados pelo homem. A primeira versão de sucesso foi sintetizada por John Wesley Hyatt, como resposta à oferta de 10 000 dólares por um substituto do marfim feita pela Phelan & Collander, uma companhia americana que fabricava bolas de bilhar. Aparentemente Hyatt nunca reclamou o prémio e utilizou a sua descoberta para fundar a Albany Billiard Ball Company.

Hyatt trabalhou o processo desenvolvido por Alexander Parkes que tinha ganho uma medalha de bronze na feira Mundial de Londres de 1862, que consistia em tratar celulose com ácido nítrico e um solvente. O marfim sintético obtido, comercializado com o nome «Parkesine», tinha pouco interesse comercial uma vez que se deformava e estalava ao fim de muito pouco tempo de utilização.

Pensando que o problema da «parkesine» estaria no solvente, Hyatt utilizou cânfora para esse fim e conseguiu obter um polímero que não só era perfeito (com alguns óbices explosivos) para as ambicionadas bolas de bilhar como para muitos outros fins. Percebendo as potencialidades de um material barato e plástico, isto é, fácil de moldar, Hyatt desenvolveu a maquinaria necessária para a produção de diversos objectos feitos do que baptizou como celulóide.

Em 1870, Hyatt e o irmão criaram a Albany Dental Plate Company que manufacturava placas dentárias, francamente mais baratas que as existentes na altura. Como o polímero fabricado por Hyatt era um termoplástico com uma temperatura de transição vítrea não muito acima da temperatura ambiente, beber chá, por exemplo, com uma destas novas dentaduras era uma experiência que podemos imaginar interessante.

Hyatt, que entretanto transferira a sua empresa para Newark, New Jersey, com o nome Celluloid Manufacturing Company, descobriu uma forma de produzir fatias finas e transparentes de celulóide a pedido de John Carbutt, um fotógrafo inglês que emigrara para os Estados Unidos e procurava um suporte flexível para substituir as placas de vidro então utilizadas.

Carbutt começou a usar estas fatias de celulóide antes de 1888 mas o seu uso em fotografia (e cinema) só se generalizou depois de George Eastman descobrir, após muitas tentativas, que adicionando óleo de banana (acetato de amilo) à mistura de algodão e ácido nítrico obtinha uma folha transparente e flexível que se assemelhava ao «fillem» que se forma no leite estragado. O «fillem» foi abreviado para «film» e nascia o filme flexível de celulóide em que foi gravado para a posteridade este clássico de Buster Keaton, talvez o melhor que o cinema mudo nos tem para oferecer.

7 comentários:

Carlos Medina Ribeiro disse...

Talvez seja, então, por as películas de cinema levarem óleo-de-banana, que apareceu uma anedota ilustrada muito curiosa:

Mostrava as traseiras de um estúdio cinematográfico onde se amontoavam velhas bobinas de filmes que um rebanho de cabras estava a comer.

Dizia uma delas para a do lado:

- É bom, não é?

- Esta não é má - reponde a outra - Mas gostei mais do «Tudo o Vento Levou»

Joana disse...

Jogar bilhar nesses tempos devia ser uma emoção :)))

Então as dentaduras postiças de nitrocelulose deviam ser o máximo :)

Anónimo disse...

Para André Mycho, o espírito é "l'enfant terrible de l'intelligence". Carlos Medina Ribeiro apropria-se, com rara felicidade, desta máxima para fazer um comentário feliz a um post muito interessante. Parabenizo ambos: a autora do post e o autor do comentário.

Carlos Medina Ribeiro disse...

Rui Baptista,

Obrigado! A anedota ilustrada que refiro é muito antiga, mas já não sei onde a vi.

Ando agora, a pouco e pouco, a fazer um arquivo "online" dos vários milhares que tenho por aqui, e que remontam, para já, a 1904.
http://humorantigo.blogspot.com/

Anónimo disse...

Professora Palmira, não haverá aí qualquer erro de transcrição?
É que o "Concise English Dictionary" diz o seguinte:
Film (A.-S. filmen, membrane, prepuce, cogn. with fell)
Vêm a seguir os significados de "film".
Nota: A.-S. - Anglo-Saxon; cogn. - cognate.

Palmira F. da Silva disse...

Caro Daniel de Sá:

É certo que todos os que trabalharam em fotografia/cinema em finais do século XIX reclamavam a introdução do termo filme :-) portanto deveria ter indicado que para além de Eastman há mais candidatos ao título de "inventor" do termo.

De todas as histórias de polímeros e de cinema e fotografia esta é aquela que para mim faz mais sentido (isto e, explica como o termo foi introduzido) e devê-lo-ia ter referido.

Anónimo disse...

Cara Palmira Silva
Obrigado pela resposta. Assim ficam as coisas realmente mais claras. E que saudades dos "Westerns" da década de 1950 com a indicação "Eastmancolor"...

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...