domingo, 9 de setembro de 2007

Grandes embustes



O grande embuste lunar, muito provavelmente perpretrado por Richard Adams Locke, preencheu o léxico do imaginário dos nova-iorquinos durante a última semana de Agosto de 1835.

O embuste, que catapultou as vendas do New York Sun, supostamente reproduzia o suplemento do Edinburgh Journal of Science e descrevia em suaves prestações a «descoberta» por Sir John Frederick William Herschel, um reputado astrónomo inglês, de vida na lua. Essa descoberta teria sido possível devido ao desenvolvimento de um telescópio tão poderoso que permitiria estudar «até a entomologia da Lua, no caso de esta ter insectos à sua superfície». O artigo indicava que o astrónomo teria encontrado vida na Lua e vida inteligente na forma de homens-morcego que construiam templos (pagãos certamente) e tudo. Segundo rumores da época, a notícia deu origem a colecta de dinheiro por um grupo de baptistas que pretendia enviar missionários para a Lua para salvar as almas dos ditos homens-morcego.

Esta moda de falsas notícias científicas fez escola e o século XIX foi fértil em notícias científicas falsas, nomeadamente nos Estados Unidos.

Alguns deste embustes são descritos na Hoaxipedia, mantida e criada por Alex Boese, que é igualmente curador do Museum of Hoaxes. Alex Boese interessa-se igualmente por experiências científicas bizarras, o tema do seu próximo livro, «Elephants on Acid», que estará à venda em 5 de Novembro próximo e promete ser uma leitura interessante.

Segundo Lynda Walsh, autora do livro «Sins Against Science: The Scientific Media Hoaxes of Poe, Twain, and Others», escritores como Mark Twain, Edgar Allan Poe e outros ressentiram-se do facto de a ciência estar a afastar os americanos da influência até aí absoluta de eclesiásticos, poetas e filósofos. A sua reacção ao peso cultural crescente da ciência foi uma série de guerrilhas que explorava o fascínio e confiança do público na ciência através de histórias falsas. Depois de os leitores as terem aceite como verdade, as histórias eram reveladas como embustes que pretendiam deixar no público a mensagem de que se não sabiam o suficiente de ciência para distinguir uma notícia falsa de uma verdadeira como é que poderiam ter a certeza de que os cientistas não os aldrabavam?

Já em tempos transcrevi o «Soneto à Ciência» de Poe que deixava entrever um pouco deste ressentimento e escondia o fascínio que simultaneamente a ciência exercia no mestre do romance negro e que continuava a ambivalência em relação à ciência sentida por outros artistas, por exemplo William Blake, que escreveu:

Mock on, Mock on, Voltaire, Rouseau,
Mock on, Mock on, 't all in vain...
The Atoms of Democritus
And Newton's Particles of light
Are sands upon the red sea shore
Where Israel's tents do shine so bright.


Dan de Quille, pseudómino de William Wright, não foi o único mas foi certamente o mais prolífico escritor da época no que respeita a notícias científicas falsas, sendo de sua autoria pelo menos 13 destas. A atestar a «qualidade» do escritor na produção de falsas notícias de ciência reproduzo uma proposta de epitáfio de Dan de Quille que apareceu no The Virginia Daily Union em 2 de Dezembro de 1864:

Here lies the famous Dan de Quille
He lied on Earth, now lies still
His F-lying soul somewhere did soar
There to lie foremover


Estes embustes nos media, numa altura em que Darwin abalava as certezas de muitos dirigidos especialmente às ciências da vida, para além de criticarem a credulidade do público em geral pretendiam criticar o poder da ciência na sociedade americana da época. Isto é, num passado não muito distante a ciência tinha um papel tão central na cultura da época que motivou estes embustes. Uma situação que contrasta com a actual e confirma o prefácio do livro que reúne as comunicações apresentadas no simpósio «When science becomes culture»:

«No passado, o pequeno grupo de cientistas, que, com grande dificuldade, examinaram as primeiras leis do nosso universo, estava circundado pela sociedade. Com a expansão do conhecimento, nas palavras de Pierre Fayard, houve 'uma revolução coperniciana que tende a fazer com que a ciência gire em torno do público, e não o contrário'.»

Retomando a questão do jornalismo científico, que considero determinante para uma melhor compreensão pública de ciência, e como recorda Lynda Walsh no «The Scientist», estes embustes e a forma como o público os recebeu são um poderoso lembrete de que todos consumimos as notícias, de ciência ou outras, com o filtro dos nossos valores, crenças e conhecimento.

Alguns dos comentários no nosso espaço de debate debitados por adeptos de misticismos New Age ou leituras literais do Genesis reflectem exactamente isso, isto é, quando o conhecimento científico é pouco sólido, são vulgares as distorções de notícias de ciência de forma a conformá-las com as crenças respectivas. Para além disso, notícias obviamente falsas mas que suportam determinada crença, deram origem a movimentos que persistiram mesmo depois de se saber que essas notícias eram falsas. Por exemplo, lembro-me de algumas sátiras da Onion, nomeadamente a sátira que deu origem ao mito do «satanismo» da série Harry Potter.

O que levanta a questão: se o conhecimento de ciência for insuficiente, isto é, o filtro for de má qualidade, será que a divulgação de notícias de ciência pode ser contraproducente no sentido em que o público as consumirá à luz de crenças e pseudo ciências sortidas, fortalecendo essas crenças e pseudo ciências? Fará sentido apostar em divulgação de ciência sem cimentar simultaneamente o conhecimento científico básico, nomeadamente nos curricula escolares?

8 comentários:

Carlos Medina Ribeiro disse...

Nos "Anos 20" do século passado, houve quem dissesse que a pesquisa de vida em Marte não ia por bom caminho.

A verdade, é que todo o planeta era um único ser vivo (eventualmente "morto" - passe o paradoxo...).

Imagem e texto podem ser vistos em:
http://humorantigo.blogspot.com/2007/07/1923-curiosidade-delirante.html

numa publicação que, em Portugal, teve lugar em 1923.

Joana disse...

A resposta da última pergunta está no post "OS ERROS PAGAM-SE CARO" e em muitos posts do Desidério.

Ciências Vivas e que tais são completamente inúteis quando não se investe na formação dos professores e nos currículos. São areia para os olhos não sei de quem e só servem para dar lustro a alguns egos.

Ou se investe a sério em formação de ciência e aí fazem sentido, se não se investe estas medidas avulsas não servem para nada, só para o pessoal tomar contacto com termos como "quântica" e que tais que depois são explorados por vendedores de banha da cobra sem escrúpulos.

É a minha opinião, posso estar enganada, mas acho que contacto com ciência pela rama, sem descer ao básico é completamente inútil se não for pior a emenda que o soneto.

Já me vi envolvida em discussões de ciência com gente que tinha lido umas coisas "sofisticadas" sobre investigação de ponta que tinha colado com saliva numa coisa sem sentido. As discussões eram tão surreais como discutir com criacionistas...

Anónimo disse...

A Palmira tem razão em achar que a ciência está um pouco na mó de baixo. Mas já não tem ao verberar tão intensamente contra aqueles que filtram os seus saberes através de crenças: algo que é perfeitamente natural, e até impossível de reverter em quem não é cientista profissional.
Em meu entender, precisamos de facto de ciência para podermos lidar melhor com inúmeros problemas que a própria ciência (mas não só ela) fez com que surgissem.
Adelaide Chichorro Ferreira

Joana disse...

A Adelaide confunde ciência com aplicações de ciência.

A ciência não cria inúmeros problemas; quem cria problemas são pessoas.

Depois tem outra atravessada que é a questão dos transgénicos. Devia ler um post do Miguel Portas que é exemplar a mostrar como se pode manifestar contra o que não se concorda sem prejudicar terceiros e sem violência. Democraticamente!

Também não percebo o que é essa da ciência estar na mó de baixo. Quem está na mó de baixo é a sociedade com pessoas que escrevem o que escreveram no post da água "mágica" :(

Escrevem coisas daquelas porque filtram os seus "saberes" (eu chamava-lhes ignorância) através de crenças...

Anónimo disse...

Os transgénicos não causam potencialmente violência? Se, num aquário em que nadam (muito poucos) peixes transgénicos conjuntamente com (muitíssimo mais) peixes não transgénicos, os não transgénicos são completamente dizimados ao fim de 40 gerações devido ao comportamento mais agressivo dos transgénicos - reporto-me a um documentário que passou na semana passada na Sic, à 1.20 da manhã -, então estes factos, se por qualquer motivo (um temporal, etc.)sairem do laboratório e passarem para o oceano (que é de nós todos) não podem constituir-se em violência sobre as pessoas que vivem dos recursos piscícolas? Pelo menos?
Apenas achei que alguma informação veiculada pelos media portugueses não tinha sido rigorosa. Mesmo que o Público tenha tido o cuidado de, num destes últimos dias, escrever que foi um ha de milho transgénico (e não «uma plantação de milho transgénico»), o facto é que foi um ha *em cerca de 50*. A diferença, sublinho, é relevante. Claro que distingo entre ciência e aplicações da ciência. Mas também tem sido dito que a ciência é em regra vista como tanto melhor quanto mais facilmente dá azo a aplicações tecnológicas, a «produtos».
Adelaide Chichorro Ferreira

Anónimo disse...

Obviamente que concordo com o texto do Miguel Portas. É uma maneira de fazer as coisas, sim.
Quanto ao facto de a ciência estar na mó de baixo, eu explico o que (provavelmente) quereria dizer: desaparece a olhos vistos o objecto do conhecimento, em algumas áreas, pelo menos. E se desaparece o objecto do conhecimento, também esse ramo do conhecimento poderá inexoravelmente desaparecer, ou não?
Ainda há dias me lembro de estar num dado sítio deste Portugal «profundo» e de alguém comentar que estranhava não se ouvirem ali os pássaros, ao contrário daquilo a que essa mesma pessoa se habituara naquele mesmo local, onde já não ia há uns tempos.
Quantos taxonomistas biológicos existem hoje em dia, daqueles que realmente conhecem as espécies? Quase só se estuda a célula, ou isso é impressão minha e as coisas entretanto mudaram?
Adelaide Chichorro Ferreira

paulu disse...

Um conhecimento científico básico é essencial há muitos anos, e espanta-me (e assusta-me) que ainda se fale, em 2007, na necessidade de cimentá-lo nos curricula escolares! Todavia não creio que este conhecimento seja, de per si, vacina que baste contra Astrologias, paranormalices e quejandos. É imensa a diferença entre o estado da arte nas ciências fundamentais e o que destas pode ser ensinado num ensino básico, o que faz com que expressões como «mecânica quântica» ou «teoria da relatividade» ganhem facilmente uma conotação mítica favorável à exploração por lunáticos e embusteiros.

Parece-me igualmente importante, ou mais importante ainda, uma educação que ajude qualquer pessoa, jovem ou não, a saber avaliar criticamente uma qualquer asserção. Por exemplo, aprendendo como o conhecimento científico é construído, em que consiste o método experimental, ou porque vale mais tentarmos rebater as nossas próprias hipóteses contra a realidade, em lugar de procurar formulações que as tornem inverificáveis. Não sou professor, mas não creio que estejam em jogo conceitos transcendentes, ou mais difíceis que aprender do que o que é uma derivada, a tabela periódica, ou a diferença entre mitose e meiose. (Presumo que estas coisas que ainda façam parte do que hoje se ensina...)

Bom, talvez nem o próprio conhecimento de como o saber científico é construído seja ainda vacina suficiente. Mas lendo os comentários de leitores que se fazem na imprensa on-line a artigos em que está em jogo uma vertente científica relevante, acho que ajudaria um bom bocadinho. Não só a sermos mais resistentes à palermice pseudocientífica, como a tornarmo-nos mais exigentes com os nossos agentes políticos. Ou seja, a sermos mais exigentes connosco próprios.

Anónimo disse...

1. A questão que formulei é pertinente, ou não? Há estudos sobre isso? Vi há tempos uma notícia no Público (duas páginas inteiras) sobre a falta de taxonomistas biológicos (colectores de plantas pelos campos, por exemplo; identificadores de pássaros, etc.). Mas baseei-me também num comentário (subjectivo) ouvido a uma pessoa que até foi professor de biologia muitos anos. Na zona em questão há muitos eucaliptos e acácias em redor, por sinal.
2. Perguntar ofende, de facto, em muitas culturas. Mas ofende em ciência?
Adelaide Chichorro Ferreira

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