Parece-me que Samuel Langhorne Clemens, o notabilíssimo escritor americano que usou preferencialmente o pseudónimo Mark Twain (na pintura reproduzida), não teve grandes preocupações “pedagógicas” quando criou, à imagem e medida de muitos miúdos que conhecia ou que ele próprio foi, os eternos Tom Sawyer e Huckleberry Finn.
Na verdade, eles não eram, na altura em que vieram ao mundo, nem são hoje, numa primeira abordagem, propriamente bons exemplos. Sublinho “numa primeira abordagem” porque, claro, numa segunda abordagem, e depois de se pensar nisso, descobre-se que o são. Por seu lado, as aventuras em que se meteram (sendo isso mesmo, aventuras), dão voltas e mais voltas, envolvem perigos, dilemas, hesitações, despertam sentimentos vários (alguns dos quais não estarão muito de acordo com certas exactidões morais imediatistas) e desencadeiam, umas vezes, comportamentos recomendáveis, e outras nem por isso…
Estas devem ser, conjecturo eu, algumas das razões que remeteram As Aventuras do Huckleberry Finn para o Index Librorum Prohibitorum, como, aliás, a Palmira um dia destes lembrou neste blog. Ou seja, nas escolas norte-americanas, o grande amigo de Tom Sawyer é persona non grata, talvez porque o desejo de liberdade que o levou a fugir numa jangada Mississipi abaixo, para fugir a um pai irremediavelmente bêbado, não se coaduna com as preocupações “pedagógicas” de alguns educadores mais zelosos.
Mas, o Aventuras de Tom Sawyer, publicado em 1876, também tem os seus “perigos pedagógicos” (espero que ninguém veja nesta minha ironia um pretexto para o fazer constar num qualquer Índex daquele género).
Um desses “perigos” é dar a entender que (todos) os alunos são, por vezes (ou sempre), mal-comportados:
“O professor, um homem idoso e grave, interveio, mas, mal virou as costas, Tom puxou o cabelo a um rapaz do banco seguinte e mostrou-se absorto na leitura, quando ele se virou para trás; passados uns momentos espetou um alfinete noutro, para o fazer gritar e apanhar uma reprimenda do professor. Todos os companheiros de Tom eram do mesmo modelo – irrequietos, barulhentos e maçadores. Quando os chamavam para recitar a lição, nenhum sabia bem os versículos e tinham de ser ajudados a todo o tempo.”
Outro perigo é dar a entender que os professores podem não se comportar à altura da sua elevada função:
“As senhoras professoras ‘exibiram-se’ curvando-se ternamente sobre os alunos a quem acabavam de esbofetear, ameaçando graciosamente com o dedo os rapazinhos maus e acariciando os bons. Os senhores professores ‘exibiram-se’, dando pequenas repreensões e fazendo outras demonstrações de autoridade e amor à disciplina.”
Tenho percebido que uma das grandes preocupações de alguns educadores e pais é darem a ler às crianças (só) livros “pedagógicos”, sendo que com isto se quer dizer livros que passem directa, linear e instantaneamente uma “mensagem positiva”… de tudo: de “tolerância face à diversidade”, de “respeito pelo meio ambiente”, de “interesse pelo mundo que nos rodeia”, “de paz no mundo”, “de amizade e solidariedade” etc.
Sem qualquer critério científico – este é um texto de opinião que, nessa condição, vale o que vale –, mas com alguma curiosidade, tenho lido alguns desses livros, o que me tem feito perceber algumas coisas, por exemplo:
- as personagens com quem supostamente as crianças se devem identificar, assemelham-se mais a anjos do que a gente de carne e osso;
- as situações são simples e óbvias, não apresentam desvios em relação ao fim em vista, contém as componentes necessárias e nada mais.
Não tenho, obviamente, nada contra as “mensagens positivas” – de facto, acho que elas devem constituir um ponto de referência, tanto para educadores como para pais –; só me parece que, para serem críveis, nada perdiam em ter uma ligação mais forte com a realidade. Só que a realidade – não me refiro necessariamente àquela realidade restrita em que o sujeito vive, e de que muito se fala no presente – tem “muito que se lhe diga”, como, de resto Twain dá a entender na sua escrita.
Post Scriptum:
Não terá muito a ver com o texto, mas gostaria de acrescentar, caso não tenha ficado claro, que da palavra “pedagogia” e “pedagógico/a” se usa e abusa, em muitos casos, para justificar o contrário do que se encontra teorizado e investigado cientificamente na Pedagogia.
Aproveito também para notar que dar a ler o Huckleberry Finn e apresentar o seu autor a fumar cachimbo com um ar radiante é que não seria, na perspectiva dos defensores de uma certa “pedagogia” nada, mas mesmo nada, “pedagógico”!
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10 comentários:
ainda assim, está a milhas de uma vulgar «lição do tonecas»...
Sugestão:
Corrigir, logo no início, a gralha Mark Tawin
Também a nossa Mesa Censória inquisitorial proibiu, não só a leitura de "Some Thoughts corcerning Education", de John Lock, como também a sua tradução. Há mentes e mentes, rocas e fusos. Quem o quiser ler clandestinamente, sem me denunciarem, podem fazê-lo neste link
http://en.wikisource.org/wiki/Some_Thoughts_Concerning_Education
No post anterior a tecnologia dos novos tempos comeu a última palavra do link:
Education.
Mas Deus é grande e quando somos crianças e jovens passamos por cima das "mensagens positivas" e só damos atenção mesmo à aventura e divertimento. Pelo menos era o que me acontecia a mim ao ler coisas como os livros dos 5, que só mais tarde me apercebi que tinham muitas "mensagens positivas", que felizmente ignorei completamente. Na verdade eu acho que a educação não deve ter mensagens subliminares positivas ou negativas. Deve ter ideias interessantes e divertimento e conteúdos histórica e cientificamente correctos. Ponto. Se queremos "passar mensagens morais", é porque somos umas bestas e estamos a educar mal. Para ensinar uma criança de 11 anos que não se deve ser racista devemos dizer-lhe isso explicitamente e explicar-lhe porquê. Enfim, esta é a minha opinião radical e nada científica.
o mais importante, a meu ver, é estimular a imaginação.
Eram, há mais de 50 anos, livros oferecidos a rapazes.
Li-os, assim como os de J.Verne, admitindo que estava a prevaricar e isso já era estimulante.
A corrente de aventuras, encantamentos, deambulações e devaneios nunca mais deixou de me empurrar para os rios da descontraída imaginação.
Livros soberbos que ofereci, desde cedo, aos filhos/as.
Os meus filhos ainda não têm idade para ler mas já vão vendo em DVD, e gostando, felizmente, das Aventuras de Tom Sawyer em desenhos animados, exactamente aqueles que há 20 e tal anos fizeram as minhas delícias.
Pronto, confesso: e que ainda fazem.
Gaspar.
Olá Helena:
Muito precioso seu texto.
Abraço
Marta Bellini
Brasil
Partilho em absoluto com a opinão expressa por Desidério Murcho. E congratulo-me por alguém chamar a atenção para a anormalidade dos amnuais escolares.
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