Além disso, em terceiro lugar, versada no mal, gerou a Hidra
de Lerna, onde a criou a deusa de alvos braços,
Hera, terrivelmente irada com a força de Héracles.
E matou-a o filho de Zeus, Héracles, com o implacável bronze,
junto com Iolau, dileto de Ares, descendente de
Anfitrião, pelos desígnios de Atena.
Hesíodo, o poeta grego que se pensa ter vivido há cerca de 2700 anos no início do Período Arcaico, pede às Musas que lhe contem o que existiu antes de tudo nos versos da sua obra mais conhecida, a «Teogonia» ou o nascimento dos deuses. Com o auxílio das musas e a inspiração dos deuses - na realidade mais do Enuma Elish, a «Epopeia da Criação» mesopotâmica -, Hesíodo sistematizou antigos mitos da criação e catalogou deuses e heróis no mais antigo tratado de mitologia grega que chegou até nós.
Os doze trabalhos de Hércules incluem os mitos relatados na Teogonia, o segundo dos quais exigiu a destruição da Hidra de Lerna, um monstro aquático com várias cabeças que flagelava os pântanos perto de Lerna. A mitológica filha de Equidna e Tífon - e irmã de Cérbero, o cão de Hades; Ortro, o cão monstruoso de Gerion, e da Quimera - exalava um poderoso veneno contra o qual não existia antídoto. Para além disso, sempre que uma cabeça era decepada, duas cresciam no seu lugar. Com o auxílio do seu sobrinho Iolau, que impedia a regeneração das cabeças cauterizando os locais de onde eram cortadas, Hércules conseguiu destruir o monstro apesar da tarefa ter sido dificultada por Hera que enviou um caranguejo gigante para morder Hércules ( e que este despachou igualmente).
Como nota de curiosidade, em versões mais tardias da mitologia grega, a hidra e o caranguejo mortos por Hércules foram colocados nos céus em duas constelações próximas uma da outra. Este mito esteve assim na origem do nome das constelações Cancer e Hydra - a maior das 88 constelações conhecidas actualmente que já estava presente no catálogo estelar de Ptolomeu mas era desconhecida de Hesíodo. Aliás, outras constelações nomeadas pelos gregos assentam nas mitologias desenvolvidas em torno de Hércules, nomeadamente nos míticos animais que teria morto.
Nas obras de Homero e de Hesíodo (datadas aproximadamente de VIII a.C.), aparecem apenas menções às constelações Orion, Ursa Maior, Plêiades, Híades e a duas estrelas (Sirius e Arcturus). Uns séculos após os poetas, um dos primeiros astrónomos gregos, Eudoxo de Cnida (390 - 338 a.C), sistematizou e organizou em constelações o conhecimento - em grande parte mesopotâmico - sobre os céus, num catálogo intitulado «Phainomena». Os Fenómenos de Eudoxo - e a observação de uma explosão de supernova - influenciaram Hiparco (190 - 126 a. C.), o filósofo que desprezava a astrologia e as teorias heliocêntricas da época, que escreveu o catálogo das estrelas em que se basearia uns séculos mais tarde o Almagesto ou Grande Sistema Astronómico de Cláudio Ptolomeu (que registava 48 constelações).
Muitos historiadores acreditam que foram os povos da Mesopotâmia os primeiros a organizar o céu em constelações, datando os primeiros indícios desta prática de há cerca de 5 mil anos. Os primeiros registos dessas constelações foram encontrados em três placas de argila, que contêm listas com posições e movimentos das estrelas. Essas placas, datadas de 687 a.C até 300 a.C. mas que se pensa representarem o céu de 1300 a 1100 a.C., são conhecidas como placas MUL.APIN. Devemos igualmente aos mesopotâmios o conceito do Zodíaco, embora se pense que, não obstante muitos acreditassem que as constelações do Zodíaco poderiam também influenciar a vida das pessoas, este tenha sido introduzido originalmente por razões mais meritórias que as que actualmente infestam o léxico do nosso quotidiano mediático, nomeadamente para prever as estações do ano e as enchentes dos rios Tigre e Eufrates.
Voltando à Hidra, acabei de regressar de uma conferência em Colónia, onde, a propósito de mitologias sortidas, neste caso as relíquias dos três reis magos que supostamente estão albergadas num sarcófago de ouro na monumental catedral desta cidade, um dos participantes me informou que colegas da Universidade de Hannover tinham conseguido criar uma miniatura deste ser mitológico.
Curiosamente o organismo escolhido para o efeito, a Eleutheria dichotoma, que faz parte da classe Hydrozoa, incorpora o filo Cnidaria que já incluía nas suas hostes organismos com nomes comuns de inspiração mitológica, nomeadamente inclui as próprias hidras - para além das medusas - , assim nomeadas não por possuirem múltiplas cabeças mas pela capacidade de regenerarem partes cortadas. Os cnidários (de knide = urtiga), de que há fósseis desde o Câmbrico, principalmente de corais e anémonas, são assim designados porque os indivíduos deste filo (por oposição aos ctenóforos, muito semelhantes aos cnidários e que em conjunto constituíam os Celenterados) apresentam túbulos urticantes cheios de substâncias tóxicas – os nematocistos de que falei a propósito das armas químicas dos eolídeos.
Manipulando a expressão dos genes Cnox (genes relacionados com aqueles que nos animais superiores regulam o desenvolvimento do esqueleto apendicular, os genes Hox - ver a propósito este post muito interessante no Ciência ao Natural ou este artigo de 1988 no American Zoologist) os cientistas de Hannover e Yale conseguiram produzir uma anomalia rara: animais com múltiplas cabeças, completamente funcionais, à semelhança da mítica prole de Equidna e Tífon.
Não posso deixar de apontar uma diferença significativa entre as duas hidras produzidas pelo engenho e arte do homem: por cada cabeça decepada por Hércules a hidra mitológica regenerava duas outras. Em contrapartida, por decapitação a hidra de laboratório só regenera uma cabeça!
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3 comentários:
saltos "quânticos"...
maria.c
Noossa mt legal *-*
Gostei muito do tópico andai procurando explanações diferentes para internet, achei aqui tá de parabéns...
www.variedades1.com
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