A tradição metafísica ocidental oferece, no dizer de Searle (1999), um conjunto de princípios básicos que nos permitem sustentar o valor e a verdade do conhecimento contra as tentativas pós-modernas de os desvalorizar, e mesmo, de os negar.
Assim, é necessário sustentar que a realidade existe independentemente das representações humanas, contra a perspectiva de que tudo são representações da realidade e como tal, a realidade é sempre e só a realidade apreendida e/ou construída pelo sujeito.
É preciso também reconhecer que a linguagem possibilita a comunicação ao nível do significado e não apenas ao nível do significante, isto é, o que se comunica tem por norma uma relação com objectos e estados de coisas cuja existência é independente da linguagem e até do emissor e do receptor da mesma.
É preciso reclamar, ainda, que a aquilo que designamos por verdade procura traduzir com precisão as representações: “as afirmações procuram descrever como são as coisas no mundo, cuja existência é independente da afirmação, e a afirmação será verdadeira ou falsa em função delas no mundo serem realmente como ela diz que são”(Searle, 1999, 10).
Deste conjunto de princípios, o referido autor retira uma conclusão, a nosso ver, fundamental para inferir o valor do conhecimento: “os padrões intelectuais (…) são critérios de excelência e realização intelectuais objectiva e inter-subjectivamente válidos” (Searle, 1999, 15).
Não nos cumpre, nesta reflexão, discutir todos os aspectos implicados nesta conclusão, mas não podemos deixar de afirmar que negar a verdade do valor intrínseco do conhecimento produz um conjunto de consequências educativas susbstanciais, de entre as quais destacamos as seguintes (v.g. Castillo, 1992; Dennett, 1993; Lipovetsky, 1988; Nozick, 1981; Searle, 1999):
- a educação formal tende a tornar-se medíocre e, de algum modo, paradoxal, porque tudo vale e nada vale; porque tudo é verdade e nada é verdade;
- o valor do conhecimento não se afere segundo citérios gnoseológicos e de verificabilidade, suscitadora de argumentação e de provas, mas obedece a critérios de ordem emocional e vivencial;
- deixa de se considerar o valor intrínseco do conhecimento para sobrevalorizar o seu valor instrumental, ou seja, só se ensina e só se aprende o que tem utilidade imediata e interesse para e no quotidiano dos sujeitos;
- o conhecimento com características universalizantes e abstracto é desvalorizado face a conhecimentos regionais e concretos, relativos ao contexto social, cultural, étnico dos sujeitos;
- a complexidade torna-se o paradigma educativo fundamental, com a inerente opacidade de linguagem, de âmbitos e de finalidades;
- é elogiada a espontaneidade supostamente criadora, não directiva, ao ritmo do bem-estar dos alunos, com o risco da dispersão em detrimento da concentração, do temporário em vez do voluntário;
- a intencionalidade educativa desloca-se para a periferia da vocação escolar e, sobretudo, põe-se ao serviço das dinâmicas sociais culturais e económicas;
- opera-se uma transferência do domínio das ideias, da razão, da objectividade para o das experiências significativas, com o consequente discurso parcial e despretensioso assente numa matriz intimista, narcisista, subjectivista;
- a apresentação dos conteúdos, para serem aceites e reconhecidos, têm de se apresentar de forma inovadora, mediática, agradável e significativa para os alunos, confundindo-se, assim, o pensamento com o lúdico;
- a escola vê-se obrigada a inter-agir com as tendências e modos de organização social vigentes, ganhando sentido em função das respostas que encontra face às exigências da economia e do mercado de trabalho;
- a pedagogia é eminentemente inter e multicultural, numa tentativa de articular os processos educativos com uma sociedade marcada pela pluralidade radical de modelos, de opções de vida individuais e grupais;
- as metodologias são de matriz sócio-construtivista, etnológica, regionalista, não sendo determinadas pela investigação disponível sobre a validade das mesmas, nem pelo educador, mas pelo educando enquadrado sempre no seu contexto social, cultural e geográfico.
Neste panorama, cria-se um círculo vicioso entre o conhecimento e a educação, que empobrece tanto um como outro, pois o conhecimento:
- deixa de ser um conhecimento a longo prazo, para o futuro, para ser um conhecimento imediato, para as questões e problemas do presente;
- aparece fragmentado, desarticulado e pouco sistemático, porque não se centra na procura dos fundamentos mas na tecnologia e na praxis e, ainda, porque se centra na mudança e na inovação e, como tal, é variado, multifocal e polissémico;
- centra-se nos educandos e na individualidade de cada, nos seus gostos e interesses, perdendo o seu carácter totalizante e inserindo-se apenas e só na esfera do pessoal;
- não precisa de ser fundamentado, basta que seja reconhecido como útil e empático, não se aceitando o pensamento como da ordem da razão mas, antes, da ordem da emoção.
João Manuel Ribeiro e Helena Damião
Imagens - Pablo Picasso
Referências Bibliográficas
- Searle, J. R. (1999). Racionalidade e realismo. Disputatio, 7, 3-25.
- Castillo, E. G. (1992). Postmodernidad: valores y educación. Filosofía de la educación hoy - axilogía y educación. In: Actas del Congreso Internacional de Filosofía de la Educación (pp. 349-371). Madrid: UNED.
- Dennett, D. C. (1993). Fé na Verdade. Disputatio, 3, 1-19.
- Lipovetsky, G. (1988). A era do vazio. Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Relógio d’Água.
- Nozick, R. (1981). Philosophical Explanations. London: Clarendon Press.
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10 comentários:
Não tenho comentado muito neste blogue. Estive tentado a fazê-lo várias vezes a propósito de um dos temas nele recorrentes: o Pensamento Crítico e a conveniência de os alunos serem treinados nele.
Concordando eu no essencial com as teses que lia no blogue, ficava-me uma dúvida sobre a disciplina ou disciplinas a que competiria mais directamente esse ensino. Pensei nas línguas, porque achava e ainda acho que uma gramática normativa bem ensinada, se não é ainda Pensamento Crítico, é já uma propedêutica para ele.
Pensei na Matemática, é claro. E pensei sobretudo na Filosofia - mas não quis ter o atrevimento de sugerir a matemáticos e filósofos que elementos deviam incluir os programas das suas disciplinas no ensino básico e no secundário.
Até que Desidério Murcho publicou um post em que reivindicava para a Filosofia um papel central no ensino do Pensamento Crítico - e tendo-o dito ele muito melhor do que eu o poderia dizer, a minha intervenção deixava de se justificar.
Escrevem agora João Manuel Ribeiro e Helena Damião que a questão é bem mais funda do que a presença ou ausência duma dada disciplina do currículo. Isto pode não ser novidade, pode não ser sequer muito surpreendente, mas é uma daquelas verdades que nunca é demais repetir.
Escrevem que a questão, abordada pelo lado da cultura e do sistema, é metafísica. Mais uma vez estou de acordo. Recordo-me, ao ler isto, que Ayn Rand escrevia, já em 1968, que a questão também é metafísica se a abordarmos pelo lado do aluno. Segundo ela o maior crime das pedagogias fundadas em Dewey consiste precisamente em encerrarem o aluno numa prisão metafísica da qual não há saída.
Que pode um professor fazer, seja ele de Línguas, de Matemática, de Química, de História, ou de Filosofia? Ensinar os alunos a pensar?
Como, se pensar não está no programa?
E como, se no elenco de funções docentes estatuído no ECD consta logo em primeiro lugar a execução das políticas educativas do governo, entre as quais não se conta a promoção do pensamento?
Rand, Ayn. The Comprachicos. In: The New Left: The Anti-Industrial Revolution. Nova Iorque: The New American Library, 1975.
Caros João Manuel e Helena,
Vocês põem a mão na ferida. No caso brasileiro, o pensamento hegemônico dos pedagogos é de uma pobreza epistemológica cruel. Continua-se a caminhar na direção de uma escola cada vez mais centrada num problemático saber do aluno. Um saber impreciso, pobre, imediatista, às vezes apenas bobo. No momento,todos esses exageros da Escola Nova ganharam força sob a égide do construtivismo. E os partisans da nova moda pedagógica ignoram uma observação do próprio Piaget quando este esteve nesta Terra de Santa Cruz muitos anos atrás. O grande homem estranhou muito comunicações de escolas brasileiras que declaravam seguir o método piagetino. O professor de Genebra jamais propôs método algum de ensino. Nem creio que ele concordaria com ensino construtivista, pois construtiva é a aprendizagem (não importando o ensini recebido).
Como vocês bem observam, as tendências contemporâneas tendem a esvaziar cada vez mais o ensino de conteúdos significativos em termos de saberes historicamente elaborados pela humanidade. Creio que aí como aqui, uma outra moda favorece tal esvaziamento: a onda das competências.
Abraço grande, Jarbas.
Objectivamente, Searle está um pouco despistado... patinou e a realidade não representou! ;)
A relação da ciência com a realidade - que simplesmente NUNCA pode ser 100% objectiva ou inteiramente independente do observador! - é muito indirecta.
A ciência não descreve sequer a realidade, mas apenas o modo como a percebemos e nada mais! Ora essa percepção é obviamente mediada pela consciência ou a mente ou o cérebro humano, sobre os quais sabemos ainda tão pouco... mas mesmo tão pouco!!!
Negar estas simplicíssimas evidências, em nome de um realismo material que é cientificamente cada vez mais insustentável, nem é científico, nem filosófico, nem metafísico... nem é nada!!!
Ora se existe algo a que podemos chamar o Real... and is there such a thing?... e não existe nenhuma possibilidade de o conhecer objectivamente - deveras, nem sequer de o descrever, seja em que linguagem for!!! - que resta pois senão a mera percepção subjectiva e intuitiva dessa tal Realidade?!
E não vale a pena ir mais longe, o antigo oráculo de Delfos de há muito o proclamou, isto se não amputarmos fraudulentamente essa espantosa injunção que muito poucos parecem deveras compreender... but it's easy!... it really IS!!!
Homem, conhece-te a ti mesmo, e conhecerás o universo e os deuses!
So... ALL knowledge lies within...
Rui leprechaun
(...and what does it really mean?! :))
Terá Searle lido Schopenhauer e, particularmente, a sua obra " O mundo como vontade e representação?
Não vejo por que terão de persistir preconceitos com a ordem emocional e vivencial só para não perder a preciosa razão e manter bem longe os fantasmas “pós-modernistas”. Então que é feito dos trabalhos científicos que mostram a importância das emoções na inteligência e na aprendizagem? Só é real o que é racional? E o sensorial?
Afirma-se neste post “o valor do conhecimento não se afere segundo citérios gnoseológicos e de verificabilidade, suscitadora de argumentação e de provas, mas obedece a critérios de ordem emocional e vivencial”. Então os médicos, que agora andarão pelos 50/60 anos (educados no primado da razão e nada do coração), que digam como seria a medicina que hoje praticam se tivessem de ser estreitos com tudo o que aprenderam nas escolas de medicina há 30 anos. Quase tudo o que aprenderam nessa altura é considerado hoje errado, e ninguém morre ou morreu por isso. Todavia, que se saiba, tanto hoje como dantes, o paradigma de ensino médico é o mesmo e não vale tudo, pelo contrário, as verdades são sempre inabaláveis. Veja-se, só um exemplo, o que aprenderam na área da oncologia é de pasmar…E como será daqui a 40 anos? É de prever que será de arrepiar com tamanha ignorância actual!
É claro que concordo que o que hoje nos querem impingir com o rótulo “pós-moderno” é um disparate pegado. Mas que não nos venha a paranóia preconceituosa e mítica anti…, e a partir daí meter a torto e a direito no mesmo saco o que não alinha com a velha ortodoxia racionalista sem emoções. Em todo caso não dramatizemos, estas antinomias não são de agora. Sempre foram assim desde que o homem começou a pensar e continuarão, ortodoxos contra heterodoxos e vice-versa.
O problema não está nestas antinomias, antes pelo contrário. É assim que se tem avançado, quer com Galileu ou Gil Eanes, quer com Einstein ou Poincaré, Prigogine, Edward Lorenz, Mandelbrot, A Turing, P Bak, JD Murray, SJ Gould, Daniel Dennett, René Thom, Rodney Brooks… O problema está em saber quais são as heterodoxias certas antes do tempo.
É claro que a estrutura mental que está na base das nossas atitudes epistémicas – crer, duvidar, estar certo – e os seus operadores – não implicam nenhuma referência aos contextos e às épocas. Mantém-se invariáveis, independentemente dos seus conteúdos. A crença desdobra-se numa distanciação objectivante relativamente à informação sensorial. A objectividade emerge da interacção do organismo com o mundo. Ela não resulta de uma relação exterior entre sujeito e objecto.
Do ponto de vista da evolução e da psicologia do desenvolvimento, é razoável pensar que a experiência sensorial e as crenças, que são as suas consequências normais, têm a função de fornecer e de organizar a informação requerida para coordenar o comportamento nas suas relações com o meio. É da adequabilidade das condições internas do organismo às condições externas do meio que depende o êxito da sobrevivência, não só através da satisfação das necessidades mas também dos desejos.
Mas isto, de maneira nenhuma, deverá implicar qualquer preconceito contra a historicidade.
leprechaun:
O autocarro que vem ali sem travões pela ladeira abaixo tanto pode ser real como não ser. Portanto, tanto faz que você saia da frente dele, como que não saia.
Eu pela minha parte aposto que o autocarro é real e corro a sete pés para lhe fugir. É com base na mesma aposta que matriculo os meus filhos em escolas em que o conhecimento lhes é transmitido como se fosse real, e é com base nessa aposta que os obrigo, muito autoritariamente, estudar -mesmo que eles, os pobres oprimidos, prefiram ir para a discoteca e aleguem, em defesa dessa preferência, que ao exigir-lhes conhecimento estou a exigir deles o impossível.
Olá,
Os intelectuais fazem parte de uma elite que , na minha modesta opinião, está aí para analisar a história da sociedade, rever posições e compreender que a humanidade sente fome e está doente. A prática é essencial. O presente tem pressa.Futuramente supriremos outras necessidades como a do saber e da arte.
Trabalho em escolas municipais e nunca considerei construção do conhecimento conforme o que foi aqui exposto.
Abraços.
Subjectivamente, é real tudo aquilo que eu percebo, mesmo que tal não exista para mais ninguém senão para mim!
É certo que há um mundo objectivo, como o do autocarro... que é obviamente real para (quase) todos nós! E esse é o universo do estudo científico, mas que não esgota de modo algum a realidade que o transcende enormemente!!!
Logo, não há problema algum com a ciência, claro está, nem com o pensamento lógico e racional... excepto quando se julga detentora de TODO o saber ou da chave única para a compreensão do universo.
É esse o espantoso erro que se defende repetidamente aqui, numa trágica inversão dos papéis de há poucos séculos, quando a Igreja oprimia e abafava o pensamento crítico e racional anti-dogmático.
Agora, pouco séculos volvidos, a incompleta e limitada razão pretende ascender ao privilégio divino de via única para o conhecimento, sem se dar conta do ridículo que uma tal disparatada pretensão pressupõe.
A Filosofia e a Religião não existem para prestar mera vassalagem à Ciência - de facto, é justamente o contrário - mas são-lhe muito anteriores porque provêm de uma necessidade de saber mais essencial ainda que o mero "domar" e compreender a natureza.
Obviamente, este erro momentâneo não irá persistir muito tempo, sobretudo quando começarmos a penetrar melhor nos ainda insondáveis mistérios da mente e da consciência.
Yes, time will tell the wiser... for truth will irrupt like a geyser! :)
Muito boa abordagem. Tomei iniciativa de citá-los. Votos de crescente sucesso.
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