domingo, 29 de abril de 2007
NO DIA EM QUE PRIMO LEVI SE RECORDOU DO CANTO DE ULISSES
Em 1944, Primo Levi tinha 25 anos de idade. Havia sido capturado um ano antes por milícias fascistas e estava preso em Auschwitz. Assistira todos os dias à evidência do “mal absoluto” e todos os dias fizera um esforço, igualmente absoluto, para lhe sobreviver. Era um velho, portanto. E, tal como os velhos, muito velhos, a sua memória estava quase apagada.
Contudo, uma certa manhã, quando iniciava uma caminhava - que sabia durar mais ou menos uma hora - com um camarada de infortúnio, Jean Samuel, o Pikolo, Levi sentiu-se suficientemente livre para se lembrar de um texto clássico: “O Canto de Ulisses” de Dante Alighieri, que antes de toda a tragédia, havia aprendido de cor, interiorizado, tornado uma parte de si, convertido, enfim, numa fracção da sua identidade. É esse assombro pela redescoberta de um poema maravilhoso que ele conta no livro que escreveu entre Dezembro de 1945 e Janeiro de 1947 e ao qual deu um enigmático título: “Se isto é um homem”.
Vale a pena determo-nos nesse exercício de liberdade que a educação possibilita e que, por isso mesmo, transcrevemos de seguida, não sem antes notarmos a aclamação que o próprio Dante faz do destino dos homens através da fala do seu herói, por ela reiterar essa ideia: “Não fostes feitos para viver como brutos / Mas para seguir virtude e conhecimento”. Talvez tivesse sido esta fala que fez com que Levi se lembrasse da Divina Comédia…
“Quem sabe como e porquê me lembrei disto: mas não temos tempo para escolher, esta hora já não é sequer uma hora. Se Jean é inteligente, vai perceber
Da flama antiga o mais alto dos cornos,
Murmurando, tornou-se tremulante
Como por vento archote verdascado.
A crista ele agitava lado a lado
Como se a língua falasse;
Uma voz se formou que até nós veio:
Quando…
A este ponto paro e procuro traduzir. Um desastre: pobre Dante e pobre Francês! Todavia a experiência parece prometer: Jean admira a bizarra semelhança da língua, e sugere-me a palavra apropriada para traduzir «antiga». E a seguir ao «Quando»? O vazio. Um buraco na memória. «Eneias não lhe pusera ainda o nome.» Outro buraco. Emergem alguns fragmentos não utilizáveis, «…Amor por filho jovem, pai idoso, jurado amor de esposo que a Penélope o coração de gáudio preenchia…» será mesmo exacto?
… Ao mar, pois, eu me fiz, mar alto aberto.
Disto sim, disto estou certo, estou em condições de explicar ao Pikolo, de discriminar por que é que «eu me fiz» não é «je me mis», é muito mais forte e audacioso, é uma corrente quebrada, é atirar-se a si próprio para além de uma barreira, nós conhecemos bem este impulso. O mar aberto: Pikolo viajou pelos mares e sabe o que significa, é quando o horizonte se fecha sobre si mesmo, livre, direito e simples, e só permanece o cheiro do mar: coisas doces ferozmente longínquas (…)
«Mar aberto.» «Mar aberto.» Sei que liga com «… dessa companha escoltado que nunca ao meu destino me largara», mas já não me lembro se vem antes ou depois. E também a viagem, a viagem temerária para além das colunas de Hércules, que tristeza, sou obrigado a ter de a contar em prosa: um sacrilégio. Apenas salvei um verso, mas vale a pena meditá-lo:
… Não fosse alguém tal arraia transpor
«Transpor»: tinha de vir para o Lager para me aperceber de que «transpor» está relacionado com a expressão anterior, «eu me fiz». Mas não o revelo a Jean, não tenho a certeza de que se trate de uma observação importante. Quantas coisas mais haveria a dizer, mas o Sol já está alto, o meio-dia está próximo. Tenho pressa, uma pressa furibunda. Atenção agora, Pikolo, abre os ouvidos e a mente, preciso que entendas:
De vossa origem meditai n`altura
Que vos impede a vida como brutos
Mas por saber, por bem, sempre exaltada
Como se eu também o ouvisse pela primeira vez: como um tocar de trompete, como a voz de Deus. Por um momento, esqueci-me de quem sou e onde estou. Pikolo pede-me para repetir. Como é bom Pikolo, apercebeu-se de que está a fazer-me bem. Ou talvez seja mais; talvez, apesar da tradução superficial e do comentário primário e apressado, tenha recebido a mensagem, tenha sentido que diz respeito a todos os homens atormentados e a nós especialmente; e que diz respeito a nós dois, que ousamos raciocinar disto (…)
Os ânimos tão fortes eu excitei…
… e esforço-me, mas em vão, por explicar quantas coisas significa este «excitei». Aqui mais uma lacuna, desta vez irreparável. «… A Lua ao dia a luz já consentia» ou algo parecido, mas antes… Nenhuma ideia (…). Pikolo tem de me desculpar, esqueci-me de pelo menos quatro tercetos
… Quando distante vimos, nebulosa,
Isolada montanha que julguei
Das altas a mais alta que então vira.
Assim mesmo, não «muito alta», «das altas a mais alta» grau superlativo. E as montanhas, quando se vêem de longe… as montanhas… oh, Pikolo, Pikolo, diz qualquer coisa, fala, não me deixes pensar nas minhas montanhas, que apareciam no lusco-fusco ao anoitecer quando regressava de comboio de Milão a Turim! Chega, é preciso ir para a frente, essas coisas que se pensam mas não se dizem Pikolo espera e olha para mim.
Dava a minha sopa de hoje para saber ligar «a mais alta que então vira» com o final. Esforço-me por reconstruir através das rimas, fecho os olhos, mordo os dedos: mas não serve, o resto é silêncio. Dançam na minha cabeça outros versos: «… e a terra só de lágrimas foi vento…», não, é outra coisa. É tarde, chegámos à cozinha é preciso concluir:
Três vezes na voragem o voltou;
A quarta, como de Alguém foi desejo.
Ergueu-se a popa e se abismou a proa…
Detenho Pikolo, é absolutamente necessário e urgente que oiça, que entenda este «como Alguém foi desejo», antes que seja demasiado tarde, amanhã ele ou eu podemos estar mortos, ou nunca mais voltar a ver-nos, tenho de lhe dizer, explicar-lhe que a Idade Média, o tão humano, necessário e porém inesperado anacronismo, e outras coisas mais, algo de gigantesco que eu próprio só agora vi, na intuição de um instante, talvez o porquê do nosso destino, do nosso estar aqui hoje…”.
Correndo o risco de desfeitear ou mesmo mutilar este magnífico texto, acrescentaríamos quatro anotações:
- A poesia é absolutamente fundamental para (sobre)viver, na medida em que se constitui como um conteúdo estruturante do fazer-se e/ou tornar-se pessoa, como sublinha Levi ao escrever: «Transpor»: tinha de vir para o Lager para me aperceber de que «transpor» está relacionado com a expressão anterior, «eu me fiz»;
- A poesia faz bem, não no sentido pós-moderno e hedonista ou epidérmico do termo, mas no sentido universal, isto é, “diz respeito a todos os homens atormentados e a nós especialmente (…) que ousamos raciocinar isto (…)”; a poesia caracteriza e é expressão do universal humano e não apenas, nem primeiramente, narrativa ou história do e sobre o sujeito individual, ainda que, como é o caso, um relato pessoal possa ser expressão da universalidade da condição humana;
- A poesia é alimento para o intelecto e para a condição ética do humano; só assim se compreende a afirmação de Levi: “Dava a minha sopa de hoje para saber ligar «a mais alta que então vira» com o final”. E, na impossibilidade de concretizar esta “ligação”, apesar do esforço, resta a inutilidade e o silêncio; ao invés, a poesia, porque “é outra coisa”, suscita e sacia outras fomes;
- Finalmente, a poesia condensa, num misto de descrição e de expressão, “talvez o porquê do nosso destino, do nosso estar aqui hoje”. A poesia, quando capta a realidade e a expressa, constitui-se como uma instância de racionalidade e de sentido que permite, em simultâneo, perguntar e exclamar, seja positiva ou negativamente, “se isto é um homem”.
Referência Bibliográfica
Levi, P. (2002) Se isto é um homem. Lisboa: Público (Colecção Mil Folhas), 123-127.
Maria Helena Damião e João Manuel Ribeiro
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
3 comentários:
Belíssimo texto, mas só o comento para contestar essa afirmação sem sentido e tantas vezes repetida do "mal absoluto"! O que é isso, afinal, quando até a ciência já afirma... e muito bem!... que nem o tempo nem o espaço são absolutos?!
Quando muito, e até pelo próprio significado do termo "absoluto" - independente; livre; ilimitado; soberano - ontologicamente ele poderia aplicar-se ao Primeiro Ser, vulgo, Deus.
Alás, em Filosofia o "absoluto" é também a verdade prima ou fundamental, logo enquadra-se bem nessa noção do Deus absoluto.
Para além do mais, é especialmente perversa e muito perigosa essa apropriação de uma designação, já de si incorrecta, para designar um acontecimento histórico concreto, já que tal pode marcar um precedente gravíssimo e instrumentalizar um conceito que, repito, é absolutamente descabido nesse contexto histórico. Bem, ou então há muitos outros "males absolutos", o que relativiza o conceito e o banaliza, retirando-lhe a suposta força que a sua singularidade incorrectamente legitimaria.
Pode até haver bem absoluto ou supremo, mas sendo o mal uma simples ausência, e não uma qualidade em si, a adjectivação de "absoluto" é, no mínimo, incongruente e falha de significado. Pelo menos, segundo a simples definição do dicionário...
De resto, o "magnífico texto" foi enriquecido com essas "quatro anotações" sobre a poesia, muito felizes e pertinentes!
Absoluto agrado... e sem enfado! :)
Ao ler este texto, lembrei-me do texto que a Maria Helena Damião aqui postou no passado dia 21 de Março - dia mundial da poesia “Para que serve a poesia?”. Recordando a lógica da utilidade que prolifera por aí, a poesia e as palavras de Eugénio de Andrade estão mais que mortas e enterradas. Mas, o meu optimismo de educadora e docente, quer creer que ainda não.
“Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura…” Eugénio de Andrade in "Os Sulcos da Sede".
Lembrei-me também de um texto que acabei de ler, publicado na última revista Iberoamericana de Educación, nº 42 (2006), pp. 69-83. Nele, o autor relembra que “Educar para conhecer deveria ser também educar para desejar conhecer. Recuperar o prazer de descobrir e aprender é vital no âmbito educativo» (Martín Gordilho, M., 73). Assola-me uma questão que me preocupa quando assumimos a lógica do “saber em acção ou em uso” e o da “mobilização de competências no quotidiano”, fixado nos sistemas educativos ocidentais: Como recuperar a dimensão não instrumental do conhecimento, ou seja, como incutir nos alunos o prazer de conhecer como motivo de felicidade? Vejo apenas uma possibilidade: seguir os trilhos de Ladjali (2005) em “O elogio da transmissão…)” -, livro também aqui apresentado por Maria Helena Damião e que vale a pena ler. Acho que a única forma de amar a poesia (como tudo na vida) é aprendendo a amar. Isso faz-se com esforço. Também o amor, nem sempre espontâneo, exige sacrifício, treino, alimento… para não definhar e, inversamente, se tornar fecundo e belo.
Aqui fica um pouco de poesia luminosa:
Em tempo de primaveras continuadas
vens sempre renascer no mesmo lugar alto
em tempo de primaveras continuadas
e ficas a jorrar no nosso regaço
salpicndo-nos em riso
às vezes és enxurrada
tropical passageira que nos leva à frente
outras vezes és sereia
que nos convida para um mergulho fundo
mas logo de seguida és golfinho
a transportar-nos para a superfície
e sempre manténs em ti o dia
que nos acorda o momento
In Femininos Singulares, Ana Viana
venham ao blog
rikipipa-animalsprotection.blogspot.com
e comentem
é muito bom
Enviar um comentário