O corno de África voltou a ser tema da prosa europeia desde 1991 - data em que caiu a ditadura de Siad Barre -, infelizmente por ser palco de um conflito sangrento que neste momento atingiu um ponto crítico. A situação complicada que se vive na Somália, praticamente em guerra civil desde então, parece cada vez mais difícil de resolver também porque a Conferência de Reconciliação Nacional dos Somalís, considerada como uma condição prévia para o envio de soldados da paz a este país assolado pela guerra, inicialmente prevista para ter início 16 de Abril, foi adiada para Julho.
Para além disso, o diário queniano «East African Standard» noticiou recentemente que as forças da União dos Tribunais Islâmicos (UTI) estão a preparar uma ofensiva contra Mogadíscio, a capital da Somália, para tomar o poder. Os confrontos diários nas ruas desta cidade com o exército etíope a que se juntam os confrontos tribais - existem cinco grandes grupos somalis (Dir, Issak, Darod, Hawiye e Sab), que por sua vez se subdividem em clãs e estes em tribos - e conflitos regionais não configuram uma resolução fácil do conflito.
Embora os conflitos nesta zona sejam muito anteriores à constituição dos estados actuais - por exemplo, Ahmad ibn Ibrihim al-Ghazi, um líder islâmico do século XVI, é ainda hoje reverenciado na cultura somali pela sua jihad contra os actuais etíopes - este conflito é indissociável do interesse europeu nas terras «das gentes de rostos queimados», Etiópia, a designação indistinta com que os gregos, nomeadamente Heródoto, identificavam genericamente toda a África Oriental situada ao sul do Egipto.
O catalizador último dos acontecimentos actuais remonta a 1935, data em que a Itália, então sob os ímpetos expansionistas de Mussolini, invadiu a Etiópia e forçou o negus ao exílio. Este país, que tinha resistido à invasão árabe no século VII, à chegada de missionários católicos portugueses no século XV e à tentativa de colonização italiana no século XIX, foi assim ocupado pela primeira vez, pelas tropas fascistas entre 1936 a 1941, integrando a África Oriental Italiana.
De facto, após uma série de vicissitudes históricas, toda a zona que compreende actualmente a Etiópia e a Eritreia consolidou-se no século XIX numa única monarquia, sob o Imperador Menelik I, e com a Libéria constituiam à data os únicos países livres do continente africano. A partir de 1870 a região passou a ser cobiçada pela Itália e em 1896, os italianos dominaram a parte oriental da região, estabelecendo a colónia da Eritreia - nomeada com base na designação latina do Mar Vermelho: Mare Erythraeum. No entanto, não conseguiram conquistar o que hoje é a Etiópia, tendo sido derrotados pelas forças do Imperador Menelik II na Batalha de Adwa, a primeira e talvez única vitória militar de uma nação africana sobre um colonizador europeu.
Mas a colonização italiana da Eritreia traduziu-se numa luta pela secessão a partir de 1952, data em que a ONU decide a reincorporação da Eritreia - desde 1941 um protectorado britânico - na Etiópia, numa federação sob a soberania da Coroa etíope. Em 1993, depois de vários anos de combate com o exército etíope, as forças independentistas estabeleceram a independência formal da Eritreia mas as disputas com a vizinha Etiópia não terminaram. No papel, a guerra entre ambos os países acabou em 2000 com o acordo de paz de Argel - que determinava ser missão da ONU patrulhar a fronteira e de um tribunal independente determinar e delinear a fronteira - mas a Etiópia não aceita a resolução de 2002 do Tribunal de Justiça International em Haia sobre a aldeia de Badme.
De igual forma, as relações com a vizinha Somália, que reivindica a província de Ogaden, são tensas praticamente desde a formação em 1960 deste último país - por união de dois protectorados coloniais, a Somalilândia italiana e a Somalilândia britânica. A antiga Somalilândia francesa, que conheceu a independência apenas em 1977, é agora Djibouti, que na prática - dadas as relações igualmente tensas com a Eritreia - se transformou no porto de trânsito de todo o comércio maritimo da Etiópia.
Desde Dezembro de 2006, data em que a Etiópia deslocou forças para a vizinha Somália para defender o governo transitório deste último país - que tinha perdido o controle de todo o território sul, incluindo Mogadíscio, para a UTI -, que a tensão latente escalou para um confronto aberto.
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3 comentários:
Como a Palmira sabe, a formação de Estados-nações na Europa caraterizou-se por guerras brutais, que ensanguentaram o continente durante séculos. Aquilo que hoje conhecemos como Portugal, Espanha, França, Itália, etc etc etc, tudo isso é o resultado de séculos de guerras entre diferentes soberanos e diferentes Estados, todos eles argumentando com alguma legitimidade.
Não nos devemos chocar em que o mesmo processo continue a decorrer, noutros lados do mundo. Os Estados são formas de poder artificiais e brutais, cuja instalação requer o uso massivo e continuado de força contra as populações.
Luís Lavoura
Pois, mas o Luís Lavoura não se pode esquecer é que, na Europa, acabámos por definir nós próprios as fronteiras, depois de chegarmos a um equilíbrio geo-estratégico.
Em África, essas fronteiras foram definidas a régua e esquadro por potências colonizadoras europeias que procuravam usar a máxima de dividir para reinar: "Tu dás-me um bocadinho dessa zona de tutsis e eu dou-te um bocadinho dos meus hutus. Assim, ambos ficamos com as duas etnias dentro dos nossos territórios e será muito mais fácil governá-los assim divididos.
Passa-se o mesmo em quase todos os países africanos. Em quase todos, as potências colonizadoras traçaram fronteiras no mínimo bi-étnicas (Unita e MPLA são essencialmente duas tribos distintas em guerra).
Acho que o futuro de África acabará por ter de passar por uma redefinição de fronteiras ao longo das zonas étnicas tradicionais. Só aí haverá dentro de cada país a unidade necessária à construção de um estado coerente.
José Luís Malaquias,
o meu comentário e o seu não se contradizem. Eu o que afirmei foi que também na Europa, no passado, houve imensas guerras antes de se atingir Estados-nações estáveis. E que é natural esperarmos que ocorra um processo similar em África. O qual poderá, eventualmente, terminar através de uma redefinição de fronteiras ao longo de linhas étnicas, como você sugere. Embora a mim me pareça que as etnias não são assim tão importantes como isso para a estabilidade de um país.
Luís Lavoura
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