O livro "A Fórmula de Deus" de José Rodrigues dos Santos (Gradiva, 2006) – que tem estado no topo de vendas entre nós – toma a liberdade de invocar o nome de Deus logo no título. Julgo que não o faz em vão – só para chegar ao topo. O livro começa por falar de Deus pela boca de Einstein. Fala, portanto, de Deus no sentido em que Einstein o fazia: para o grande físico de origem judaica, que cometeu a heresia de não acreditar num Deus pessoal, a palavra Deus designava a harmonia do mundo, no mesmo sentido ou quase que foi dado a essa palavra por esse outro judeu herético que foi o filósofo de origem portuguesa Bento Espinosa. Einstein não acreditava num Deus que se relacionava com os homens de um modo humano, como conta o Antigo Testamento, mas acreditava na realidade e na beleza do mundo.
“A Fórmula de Deus” fala do mundo, esse lugar único que a ciência vai progressivamente descobrindo. E fala do início e do fim do mundo. O nome de Deus no título serve de chamariz para levar o leitor a ler uma história que mistura de forma bastante original o romance com a divulgação científica. Atrever-me-ia mesmo a dizer que o livro inaugura entre nós um novo género literário, que à falta de melhor se poderá chamar romance de divulgação científica. Um ilustre cultivador do género foi o astrofísico Carl Sagan, o autor de “Contacto”, sobre cuja morte passaram há pouco dez anos. É notável que um jornalista e escritor português tenha conseguido iniciar esse género na língua portuguesa, com uma obra que proporciona leitura tão atraente. O enredo da história consegue, apesar de estar recheado de ciência, agarrar o leitor desde o início até ao fim. “A Fórmula de Deus” tem, tal como “Contacto”, uma carga visual muito forte e até pode ser que, tal como o seu congénere norte-americano, venha a dar um filme.
O que conta a história? Não vou subtrair ao leitor do prazer da leitura. Se começar, já sabe que não vai parar... Mas sempre digo que, na ficção em apreço, Einstein deixou uma fórmula secreta a um físico português, professor da Universidade de Coimbra (aqui o livro mexe comigo, pois sou professor nessa Universidade, mas declaro desde já que Einstein não me deixou nenhuma fórmula além daquelas que deixou a toda a gente pois estão nos artigos e nos livros...). O professor de Coimbra é assassinado depois de um rapto pela Hezbollah, o conhecido “partido de Deus” que tem relações estreitas com o Irão. Surge, pouco depois do início, uma bela iraquiana que é física nuclear e trabalha para o Ministério da Ciência e Tecnologia do Irão. A acção, já se está mesmo a ver, passa-se na actualidade e nela entram voos da CIA com escala em Portugal... As discussões científicas que entremeiam o livro são também da maior actualidade. Discute-se não apenas a teoria da relatividade de Einstein (sobre a qual passaram em 2005 cem anos), mas também a teoria quântica, da qual Einstein duvidava (“Deus não joga aos dados com o Universo”, afirmou ele peremptório), e a moderna lógica matemática, que contém paradoxos como o do teorema de Goedel (do físico austríaco que foi companheiro de Einstein em Princeton). Há ainda muita astrofísica, que tem tudo a ver com a teoria da relatividade e com a teoria quântica.
José Rodrigues dos Santos, que não tem qualquer preparação específica de ciência, conseguiu entrar dentro do mundo da ciência, que para a generalidade das pessoas é um “outro mundo”. Talvez o segredo da comunicação da ciência que ele consegue seja o facto de ele próprio, jornalista da televisão pública e professor de comunicação social, ter tido as dificuldades que as pessoas normais têm quando ouvem falar de certos assuntos da ciência moderna.
Há quem diga que o livro tem ciência a mais, com grandes diálogos científicos. Eu acho que não: o livro tem ciência numa justa proporção. Os factos científicos do livro estão essencialmente correctos, conforme o autor avisa logo numa nota introdutória. Mas o romance, claro, é ficção e o autor sentiu-se livre (não é o livro um espaço de liberdade em primeiro lugar para o seu autor antes de o ser para o leitor?) para relacionar os factos e os encaixar na sua história da maneira que era a sua. Não há mal nenhum nisso: se a ciência tem de estar correcta, no sentido em que se tem de adequar ao mundo, a ficção só deve conhecer os limites da imaginação de quem ficciona.
Por último, devo notar que o autor acrescenta ao rigor científico um rigor enorme na descrição de cenários e pessoas, um rigor que é próprio do bom jornalismo. Há pormenores deliciosos de que pouca gente se pode dar conta pois é preciso conhecer os locais onde se passa a acção. O autor chegou a ir ao Tibete para conseguir o descrever de um modo mais fidedigno. Em Coimbra, cenário de boa parte da acção, a cena do restaurante no Hotel Astória podia-se ter passado tal e qual (em boa parte passou-se mesmo...). O Departamento de Física da Universidade de Coimbra tem mesmo uma máquina automática que fornece sandes de atum tal como vem descrito num certo passo do romance e tem também um anfiteatro onde podia ter sido a aula de Astrofísica. E a Biblioteca Joanina é tal e qual vem retratada no livro, se descontarmos algumas liberdades literárias como a de dois professores se passearem livremente por essa “arca do tesouro” bibliográfica, chegando a tomar café dentro dela.
Tenho a este respeito a informar que, com este livro, entrei na literatura nacional... De facto, tendo tido a oportunidade como Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de mostrar em pormenor a Biblioteca ao jornalista e escritor, e sabendo já da sua intenção de colocar personagens do romance em atitudes mais liberais na sala nobre, preveni-o logo que, se o Director da Biblioteca soubesse que alguém andava a tomar café nas mesas de madeiras exóticas de uma sala que guarda milhares de obras preciosas, teria um ataque de fúria. Pois não é que o autor, bom jornalista, estava atento e põe na boca de um dos dois professores que dialogam no interior da Biblioteca Joanina: “Se sabe que estamos aqui a tomar café, o Director mata-nos!”.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
10 comentários:
Pois apenas posso dizer que subscrevo inteiramente o texto que teve o mérito de partilhar com os leitores;
Infelizmente os portugueses deconfiam do que é seu e quando se lhes fala nos mérito desta obra fecham o sobrolhos e acham que somos uns exagerados ou mesmo familiares do autor.
Agora que já li tudo o que JRS publicou só me reta esperar pelo proximos para navegar de novo nas páginas que els nos disponibiliza.
Já agora aconselho vivamente a Filha do Capitão, para quem gosta dos temas de guerra e neste caso da 1a guerra mundial e o codex 632, sobre o aliciante tema da nacionalidade de Colombo e muito da politica e geoestratégia dessa época, na qual a qualidade de D.João II fica devidamente evidenciada
Fernando Couto
Partilho da mesma opinião que o professor Fiolhais sobre o livro do JRS. Como romance policial o livro não é particularmente interessante, mas os diálogos filosóficos e científicos são muito estimulantes e permitem a pessoas com escassa formação científica penetrar em assuntos científicos facilmente. Quando me refiro ao livro, costumo dizer que a trama policial é um mero pretexto para divulgar uma tese científico-filosófica.
Maria Rodrigues
Sim, mas o final é uma verdadeira salada de bróculos.
Já agora, não leve a mal, Carlos Fiolhais, mas penso que seria curial se explicitasse que, para além de ter mostrado a Biblioteca Joanina ao José Rodrigues dos Santos, foi também um dos dois revisores científicos do romance (é o que lá diz, o que só fica bem ao JRS). O que, obviamente, não considero problema nenhum, muito embora me interrogue sobre como estabeleceu a fronteira entre ciência e ficção (e não me refiro à imaginativa trama romanesca, mas às especulações "científicas", misturadas de budismo e hinduísmo q.b., de que o final está recheado , e que pessoalmente considero de molde a levar Einstein a dar saltos no túmulo)
Saudações
Marvl
Não li o livro apesar de ser uma presença ubíqua nas livrarias, mas aproveito o seu post para me questionar se não faria mais sentido o JRS dedicar todo o seu talento ao formato jornalístico e, a partir daí, convocar o interesse das pessoas por temas mais formativos do que o já famoso "jornalismo de sarjeta" que o nosso canal público tem para oferecer ao cidadão.
O contexto da minha questão não é o seu post. É o caudal dos últimos dias, onde se trata a dialética ensino - aprendizagem segundo uma consciência funcional de "si" e do "seu mundo".
Isto porque para mim, mais importante do que a sala de estar do Tchekhov é a sala lusa de 20m quadrados, com o seu altar - televisão cujos derrames (principalmente os informativos) são a ferramenta mais poderosa para uma consciência nacional transparente. Quem disse quinto poder? Quanta demagogia falta aturar ainda para obrigar o primeiro poder a portar-se como tal? Que o JRS escreva os livros que entender sobre ciência. Desde que lhe sobre tempo.
(lamento a conspurcação)
Quero aproveitar esta oportunidade para felicitar os promotores deste blog. Com efeito, a perspectiva adoptada, que designaria de filosofia natural, cujo objecto é não só o de descrever a realidade, concomitantemente com uma capacidade de prognose, é a de tentar compreender o mundo. Tarefa possível ou impossível? Continuemos a caminhada e talvez um dia saberemos se há um ponto de chegada! Mesmo só a caminhada já é suficientemente gratificante.
Agora sobre o livro do JRS permito-me o seguinte comentário. Concordo que se trata de romance 2 em 1. O policial, que capta o jogo de forças mundial, mas que acho quase trivial no seu enredo, senão mesmo inverosímil, em alguns pontos. Mas eu também não sou um apreciador do género...
Agora no plano científico o livro tem um inegável interesse, como bem sublinha o CF. Pessoalmente até me surpreeende o seu sucesso, pois julgo que para se poder acompanhar o romance científico, o segundo, a seguir ao criminal, é necessária uma cultura e um conhecimento sobre as questões abordadas que não creio que a generalidade dos mais de 100 mil leitores tenham. Mas para quem lê alguma coisa ficará ...
Para mim o aspecto mais interessante do romance é o paralelismo, que pode ser confronto, mas que JRS converte em convergência, entre as duas vias do conhecimento: a científica e a da reflexão anterior. O que é interessante no romance é que o autor procura chegar, pelas duas vias indicadas, cada uma protagonizada pela sua figura (o físico português e o monge budita), à mesma conclusão. É, sem dúvida, uma validação cruzada, no sentido que cada uma das vias se confirma pela abordagem da outra (admito que isto choque o CF, tal a primazia que ele confere ao conhecimento científico, se bem entendo os seus escritos). Este aspecto é, para mim, talvez a maior originalidade do romance e pelo qual o autor deve ser elogiado. Aliás, também não deve ser por acaso que a via da reflexão (ou da revelação) é protagonizada por um budista tibetano. Ver, por exemplo, como o Dalai Lama, no seu livro agora traduzido para português, proclama que as verdades religiosas têm que estar em consonância com a ciência.
LRC
Caro Fernando Couto:
Confirmo que fiz a revisão científica do livro do JRS. Mas, como é óbvio, a obra é do autor, que aceitou (bastantes) sugestões minhas e não aceutou outras.
Desde há muito que leio divulgação cientifica para leigos no sentido de descobrir se na realidade o universo é determinista - teoria na qual "acredito". Nesse sentido este é o livro que eu teria escrito se soubesse escrever : Parabens ao autor e ao Carlos Fiolhais
Bem...
Lamento desafinar no coro de tão grandes elogios a esta resma de papel...Infelizmente, o livro não é, para mim, mais do que isso : uma resma de papel, que mais utilidade tería num ecoponto !
Na minha opinião, JRS não tem várias coisas que fazem um bom autor : não tem estilo literário (o livro oscila entre um péssimo "Viagens na minha terra" e um mau livro policial americano, passando pelo pretensiosismo de querer ser um livro de divulgação científica), não sabe caracterizar uma personagem, não consegue ter imaginação própria.
As descrições são absolutamente entediantes e mal escritas. Mais valia ter-se colocado várias fotografias.
Uma boa descrição não se limita a enumerar nomes, locais, paisagens, tudo pejadinho de todos os adjectivos e mais algum, demonstrando um tremendo mau gosto. Será que JRS quer entrar para o Guiness através do livro que mais adjectivos utiliza ?
Por outro lado, o livro parece ter sido escrito por várias mãos, de tão grande amálgama de estilos que aparecem. Ía jurar que, algumas frases, foram retiradas do manual de Física do Secundário que adoptei para os meus alunos, o 10F.
Enfim, é um livro que me deixa a pensar que "em terra de cegos quem tem olho é rei"...
Tantos excelentes escritores portugueses tão mal amados, e este atinge o nível de vendas que se viu.
Quando estas coisas acontecem só me resta dizer que "o futebol está de parabéns"...
vale a pena desenterrar este topico:
JRS escreve como escreve, com mais ou menos adjectivos, com mais ou menos descriçoes; o autor é o autor (devo relembrar a escrita do senhor professor saramago, isenta de qualquer tipo de pontuaçao, apenas porque assim o quis)
encontro-me presentemente a ler este livro, tardiamente por ser um devorador de obras literarias, e a agenda apenas ter espaço para este de momento.
como um humilde leitor, leigo no assunto de "bem escrever", parece-me que o livro sabe cativar pelo equilibrio entre a simplicidade em algumas alturas da obra, e a complexidade das leis da fisica, explicaçoes cientificas e afins...
JRS está de parabens, porque como alguem disse, ele é jornalista em primeira instancia, e nao escritor. como tal, com certeza passará por um processo de amadurecimento, e sinceramente espero que torne suas certas influencias, porque nem sempre se deve seguir as passadas do que é "correcto", assim se criam os grandes mestres.
ja agora, o tomas noronha é assassinado??? naaaaaaao!!!! :P
tomem isto como a opiniao de um humilde leitor de 23 anos.
- Sill -
Sei que este Blog é um pouco antigo, e talvez nenhum de vocês o leiam mais, porém gostaria de deixar aqui registrado a minha opinião sobre esta obra literária. Em primeiro lugar sou e estou no Brasil e acabo de ler "A Formula de Deus". Como Engenheiro por formação, achei a obra fantástica. Todos os argumentos são críveis e portanto dão a obra um ar verdadeiro. O que ocorre é que se formos analisa-lo sob o aspecto "religioso" não chegaremos a lugar algum, já que a fé nos carrega para os dogmas.
O importante é a reflexão final sobre qual a utilidade da raça humana nesse universo e nosso papel para as próximas gerações. Espero que meus conterrâneos de Portugal estejam tão felizes em ter um escritor com a coragem de se embrenhar por um território tão complexo, com enorme capacidade de argumentação, como eu tive a satisfação de obter essa reflexão.
Parabéns ao Autor...Não conseguia parar de ler um momento sequer.
Enviar um comentário