segunda-feira, 9 de abril de 2007

Em defesa da memória

«Block der Frauen», Berlim, 1995, da escultora Ingeborg Hunzinger, uma homenagem às mulheres da Rua da Rosa*.

Dentro de dois dias assinalam-se 20 anos da morte daquele que é para mim o mais brilhante escritor do pós-guerra, Primo Levi, um doutorado em química que foi um dos raros sobreviventes de Auschwitz e uma testemunha incansável do Holocausto.

«Este livro nada acrescenta, no que diz respeito ao pormenores atrozes, a quanto já é do conhecimento dos leitores sobre o tema inquietante dos campos de extermínio. Ele não foi escrito com o objectivo de formular novas acusações; servirá, talvez, mais para fornecer documentos para um estudo sereno de alguns aspectos da alma humana» escreveu Primo Levi no prefácio de «Se Isto É Um Homem», um livro que considero de leitura quasi obrigatória.

«Se Isto É um Homem» é uma interrogação penosa sobre a natureza humana, uma procura da resposta à pergunta que Auschwitz invoca em todos nós: «O que é um homem?» mas Levi não mais deixou a pena ou a voz secarem de palavras para evitar o esquecimento.

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casa aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração.
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.


Mais de 60 anos depois, o anti-semitismo subjacente ao Holocausto volta a ressurgir a tal ponto que no passado 27 de Janeiro, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU pediu vigilância sobre novas formas de anti-semitismo e intolerância.

Uns meses depois um relatório da Historical Association britânica dá conta que os professores neste país evitam falar de assuntos controversos, proeminente entre eles o Holocausto, para evitar ferir as susceptibilidades anti-semitas dos estudantes muçulmanos. Outros assuntos sensíveis que os professores passam ao lado são as Cruzadas e o comércio de escravos. Mas muitos professores evitam falar do Holocausto porque temem ofender os seus pupilos muçulmanos, cujas crenças incluem a negação do Holocausto.

O que levanta a questão: como transmitir a memória dos tais «assuntos sensíveis» da História? Pessoalmente considero que medidas como a proibição - do discurso negacionista e de símbolos nazis em relação ao Holocausto - são contraproducentes, isto é, permitem o esvaziar e posterior deturpação da memória, aliás, como aconteceu em Portugal em relação à ditadura e a Salazar. A estetização da História também não é resposta...

Para mim só há um caminho, exactamente o oposto do adoptado pelos docentes britânicos. Isto é, a verdade histórica precisa ser ensinada desde cedo para que infâmias como o Holocausto nunca mais se repitam. Por muito desconfortáveis que alguns se sintam com essa verdade. Porque como pergunta Primo Levi no seu último livro, «Os afogados e os sobreviventes»: será que o mundo que permitiu o Lager (Auschwitz) desapareceu, para nunca mais voltar? «Não!» alerta Primo Levi. «Se aconteceu, pode acontecer de novo...»


*No início de 1943 Goebbels reuniu cerca de 2 000 judeus, maridos e filhos de arianas, num edíficio na Rosenstrasse, de onde seriam deportados para campos de concentração. Durante uma semana as esposas suportaram o frio e as ameaças da Gestapo na Rua da Rosa gritando «Queremos os nossos maridos de volta». Foi a única manifestação na Alemanha nazi em prol dos judeus.

Os maridos judeus foram libertados com a aprovação de Hitler, inclusive 25 que já tinham sido enviados para Auschwitz. Não houve qualquer tipo de represálias sobre as manifestantes ou sobre as suas famílias. No fim da guerra, a esmagadora maioria dos sobreviventes judeus na Alemanha eram membros de casais mistos, que foram protegidos pela determinação e coragem de uns milhares de esposas dedicadas.

7 comentários:

Joana disse...

Simplesmente fabulosa a prestação da Palmira no câmara clara! Adooooorei! Muitos parabéns.

Anónimo disse...

De repente, apoderou-se de mim uma estranha nostalgia... voltei a reencontrar as duas mulheres que mais azucrinaram os manos Zé António!?... eheheh

Unknown disse...

Gostei muito deste post. E cá para mim são coisas como esta que explicam esta panca das religiões. Se as pessoas soubessem os banhos de sangue que as religiões causaram no passado não tinham a visão romântica das religiões que têm.

É a tal estização ou romantização da História. Basta ver o JPII e o B16 a falaram nostalgicamente da Idade Média como se fosse um paraíso. Pois, se as pessoas soubessem mesmo o que foi a Idade Média não havia lugar para essas palermices românticas sobre a Idade Média!

Unknown disse...

Já escrevi no post dos anjos e demónios que simplesmente adorei ver a Palmira no câmara clara. Espero que tenha contribuido, como diz o Dennet, para mais ateus sairem do armário :)

Bruce Lóse disse...

Achtung Palmira!

Sou a precavê-la para o risco de afirmar que Primo Levi é o seu escritor favorito do pós-guerra, muitos de nós poderão deduzir daqui fracas leituras. No entanto, faz muito bem em esclarecer o porquê da sua preferência ainda no mesmo parágrafo:

- era doutorado em Química;
- sobreviveu a Aushwitz;
- testemunhou incansavelmente o holocausto;

Posso acrescentar outro aspecto significativo que "quasi" lhe escapou: Levi auxiliou com grande virtuosismo no laboratório do próprio campo de concentração, ainda que não se saiba exactamente com que propósito para além da sua própria sobrevivência (era o que eu faria sem mais perguntas). E por falar em perguntas: o título "Se Isto é Um Homem" será uma reticência e não uma interrogação. A intenção do autor é a catalogação infra-humana da atitude em causa, e não propriamente um questionamento filosófico da condição de se ser humano. Ou seja, o seu livro de eleição é uma denúncia em primeira pessoa: o homem é capaz de. Diferente da ideia que a Palmira guardou do livro: o homem é? Se fosse este o caso, mais intrigante se tornaria a sua preferência por este escritor em particular.

Outra coisa, ainda que parecida: "(...)porque temem ofender os seus pupilos muçulmanos, cujas crenças incluem a negação do Holocausto".
Tenho acompanhado o seu esforço panfletário na blogosfera e não tenho dúvidas de que a Palmira não resiste à tentação polarizadora e incompatível com o ensino isento da História, cuja fórmula nos diz ser-lhe familiar. Pena.

Anónimo disse...

Cara Palmira,
Completamente de acordo consigo. Devido ao politicamente correcto, vai-se a pouco e pouco branqueando as atrocidades da humanidade e, isso nunca poderá acontecer.
No câmara clara de ontem, foi minha impressão ou a Paula Moura Pinheiro tirou-lhe vezes de mais a palavra?

Palmira F. da Silva disse...

Obrigado a todos pela apreciação :-)

f gomes: não faço ideia, foi a 1ª vez que estive num programa destes.

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