terça-feira, 17 de abril de 2007

Em busca do reino de Preste João


Frontispício da versão de Baltazar Teles da Historia geral de Ethiopia a Alta ou Abassia do Preste Ioam, e do que nella obraram os Padres da Companhia de Iesus: composta na mesma Ethiopia pelo Padre Manoel d'Almeyda, natural de Visev, Provincial e Visitador, que foy na Índia. Abreviada com nova releyçam, e methodo. Coimbra, Officina de Manoel Dias Impressor de Universidade, 1660.

O Corno de África, que tudo indica ter sido berço da evolução do Homo sapiens, tem uma história milenar que há muito preenche o imaginário europeu. Era nesta região que se situava o reino de Axum ou Aksum - posteriormente a Abissínia - cujas origens a lenda situa no reino de Sabá (ou Shebah) que, supostamente, há cerca de 3000 anos, abrangia todo o Corno de África e parte da Península Arábica, nomeadamente o Yemen. Sabá, capital do reino do mesmo nome, era uma cidade da Arábia antiga (Arabia Felix), na costa ocidental do Mar Vermelho, a que os gregos chamaram Miriaba.

Assentes nestas lendas, os soberanos da milenar Abissínia, desde a antiguidade, usavam o título Negus, pretendendo descenderem do rei Salomão e da lendária rainha de Sabá. O último negus etíope, Ras Tafari que tomou o nome Hailé Selassié - que significa «Poder da Divina Trindade» - reinou de 1930 a 1974 e usava os títulos «O Eleito de Deus», «Rei dos Reis», «O Leão de Judá», para além de timbrar os documentos oficiais com o «selo de Salomão».

A literatura europeia sobre o reino abissínio marcou indelevelmente o imaginário fantástico medieval com representações lendárias, especialmente sobre o «reino de Preste João», supostamente um descendente de Baltasar, um dos míticos reis magos. Preste é uma corruptela do francês Prêtre, ou seja, padre, e este Preste João ou Iohannes Presbyter era o rei-sacerdote de um reino cristão maravilhoso, povoado dos animais fantásticos que enchiam os bestiários medievais.

A crença na lenda do soberano mais poderoso da Cristandade, propagada por Hugo de Gebel, bispo de uma colónia cristã no Líbano, era tão arreigada que em 1487 D. João II envia Afonso de Paiva para investigar a localização do mítico reino na tentativa de tornar Preste João um aliado na expedição à Índia, em fase de planeamento. Afonso de Paiva morreu antes de comunicar o relatório, missão assumida por Pêro da Covilhã. Os relatos de Pêro da Covilhã a Francisco Álvares foram a base do livro deste último, a «Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias» que, conjuntamente com o «Fides, Religio Moresque Aethiopum», de Damião de Góis renovaram o imaginário fantástico europeu sobre a zona.

É interessante notar ainda que se toda esta literatura fantástica de certa forma foi a base da aventura marítima quinhentista de Portugal, serviu igualmente de suporte, no século XIX, às pretensões britânicas na corrida à África, a qual reinvidicou como sua a procura do reino de Preste João.

Samuel Johnson, em meados do séc. XVIII, traduziu o texto do padre Jerónimo Lobo sobre o tema e escreveu o romance «Rasselas», que relançou o interesse pelo reino utópico, perdido nas terras altas do Corno de África, cujo imaginário geográfico motivará as explorações de Burton, Beke e Livingstone. De igual forma, Rider Haggard e John Buchan esforçaram-se por legitimar aos olhos da Europa a ocupação britânica de extensas áreas em África com obras como «As Minas de Salomão», «She» e «Prester John». Assim, numa altura em que a imprensa escrita dava os primeiros passos propagandisticos, foi a literatura britânica que justificou os objectivos imperialistas do país. Nomeadamente enaltecendo os feitos anglo-saxónicos em busca do reino perdido de Preste João numa tentativa de apagar da memória europeia a centenária saga lusa em demanda das terras do mítico soberano e de certa forma legitimar a pretensão expansionista dos súbditos de Sua Majestade que motivou o famoso Ultimatum.

Para tentar impor ordem na corrida a África, uma das deliberações da Conferência de Berlim (1884-1885) instituía o direito à posse territorial com base na ocupação efectiva. Assim, era imprescindível provar a presença nos solos pretendidos para um país poder reclamá-los. Tanto Portugal - que pretendia assegurar uma cintura trans-africana que ligava o Atlântico ao Índico, isto é, Angola e Moçambique - como Inglaterra - que ambicionava um corredor entre o Cabo e o Cairo - necessitavam demonstrar à comunidade internacional a fundamentação da soberania sobre a área reclamada.

Com os feitos de David Livingstone (1813-1873) bem frescos na memória europeia - feitos que se repercutiram em todo o mundo ocidental também porque Livingstone era uma acérrimo defensor do fim da escravatura, causa bem acolhida à época - e com a demanda portuguesa do reino de Preste João suplantada no imaginário europeu com a localização do enredo de livros de sucesso nas zonas que ambos os países pretendiam, a Inglaterra reclamou-se a legítima herdeira de Preste João e exigiu a Portugal que desocupasse as áreas em disputa através de um Ultimatum.

5 comentários:

Anónimo disse...

Parece-me que há neste texto um erro, de pouca importância. O livro de Damião de Góis não se chama «Fides, Religium, Moresque Ethiopum» mas sim «Fides, Religio Moresque Aethiopum».

Alef

Anónimo disse...

Parece-me que este post confunde de forma algo imprecisa a Arábia com o Iémen. O Iémen, antigamente chamado "Arabia Felix" (literalmente: a parte feliz da Arábia), é a parte sudeste da península arábica. Não está, essencialmente, virado ao Mar Vermelho, mas sim ao Oceano Índico. Tem uma cultura milenar, essencialmente diferente da cultura do resto da península.

Também não faria mal a Palmira ter referido que as terras altas da Etiópia terem a grande importância de ser nelas que nasce o Nilo Azul, o qual, embora sendo muito mais curto do que o Nilo Branco, fornece 90% da água do Nilo e é o responsável pelas grandes cheias que fertilizam o Egito.

Luís Lavoura

Palmira F. da Silva disse...

Olá alef:

Obrigado pela correcção, já emendei :-)

Palmira F. da Silva disse...

Luís:

O post é uma introdução a outro que não tive tempo de acabar e agora só o conseguirei logo à noite.

Mas que não tem nada a ver com o Nilo, apenas com o conflito na Somália. De que infelizmente poucos falam...

Sérgio Rodrigues disse...

Palmira,
Por aí ao lado andava o rei Leopoldo com o apoio de Stanley a evocar o combate à escravatura para impôr um regime tenebroso de trabalhos forçados. A história é muito bem contada no "Fantasma do rei Leopoldo" que li há pouco tempo...

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