quarta-feira, 28 de março de 2007

UM LIVRO QUE É UM LABORATÓRIO


Trancrevo uma das minhas últimas crónicas quinzenais do semanário "Sol". A próxima sai no sábado e intitula-se "Há grandes cientistas portugueses?"


Não é novidade para ninguém que o ensino das ciências está mal em Portugal. Está mal há muito tempo, mas o pior é que não se descortinam melhorias no sítio onde elas são mais necessárias, que é a escola básica. Uma boa ideia poderia ser a criação de um “programa de formação em ensino experimental das ciências para professores do 1º ciclo do ensino básico”. Mas lê-se o despacho do Ministério da Educação que o cria, no Diário da República de 7 de Fevereiro de 2007 (que tem a data de 30 de Agosto último, o que dá a ideia da velocidade daquele Ministério), e fica a recear-se o pior.

Com efeito, o despacho está escrito em “eduquês” e é, por isso, de leitura difícil. Logo nas duas primeiras frases aparece repetido “desenvolvimento de competências”, o que faz parte do jargão a que o Ministério há muito nos habituou, mas que não se sabe o que significa. Não falta várias vezes “implementação”, além de várias palavras compostas com tracinho. Veja-se este item que é uma verdadeira pérola do “eduquês”: “Sessões com todos os professores-formandos da instituição, predominantemente de formato teórico-ilustrativo, em horário não lectivo”. Não é só a escolha das palavras: a construção das frases também não ajuda (as TLEBS serão para compreender este tipo de documentos?). Vai também haver uma comissão “técnico-consultiva”, uma outra palavra composta com tracinho. Outra comissão? Alguém ainda se lembra de uma comissão criada por um ministro anterior para solucionar o problema do ensino das ciências?

Enquanto isso, a reforma do ensino das ciências já está, felizmente, há algum tempo nas livrarias. Depois de insistentes pedidos de várias famílias acaba de sair, na Gradiva, uma reedição do livro “Ciência com Balões”, da canadiana Etta Kaner. Este livro é um laboratório! Traz até balões na capa para fazer as mais de 50 experiências simples que o livro descreve para o 1º ciclo do básico. Parece ciência a brincar, mas é ciência a sério. A sério: porque é que o Ministério não põe esse livro em todas as escolas?

13 comentários:

CA disse...

"formato teórico-ilustrativo"

Vai-se promover a ciência experimental com teoria e ilustrações?

antfilfon disse...

Tenho bastante admiração pelo seu saber e gosto de ler os seus artigos mas não concordo em nada com este que aqui publica. Estive ainda esta manhâ a ajudar a minha sobrinha de 9 anos a fazer um trabalho de português que já inclui a nova terminologia linguística e fiquei espantado com a sua competência para lidar com a nova categorização que interiorizou perfeitamente, contra intuitivamente aquela que estamos habituados, e que me parece muito enriquecedora não apenas para o mero exercício da escrita mas sobretudo para o exercício do pensar em abstrato, aos 9 anos. Não me parece que o "eduquês" seja uma 'coisa' má ou uma questão de falta ou não de competência para a transmissão de conhecimento e de competências várias que se implementam nas profissões e nas relações com os outros no dia-a-dia. Parece-me ao contrário que existem um espécie de alergia da parte daqueles que não estão habituados a lidar com a polisemia que as palavras, talvez pela necessidade de enquadramento, o termo mais acertado seria talvez 'reframing' mental, dado o facto não perceberem nada de transmissão de conhecimento e de ciências da educação fora dos cânones a que foram sujeitos ou se sujeitaram. Dito de outro modo a objectividade da matemática é contrária à subjectividade da língua, enquanto isto não fôr percebido ninguém entenderá o que realmente significa educar.

Anónimo disse...

Viva,
O «eduquês» quando se afirma como a ideologia dominante é claramente perigoso. É tão perigoso como o cientismo. O que se passa no ensino português é que nem sequer existem preocupações com a ciência, isto é, estamos no pólo extremo do «eduquês». E o desastre está à vista de todos. Como professor do ensino secundário público português a experiência demonstra-me que os alunos adolescentes são curiosos, e muito, por conteúdos científicos, mas acham uma "seca" a conversa de café ou as tretas da educação centrada no aluno. De resto, é claro que o ensino é centrado no aluno (de quem haveria de ser? das pedras do jardim nas escolas?) e perguntar-lhes o que querem aprender é como se não tivessemos nada para lhes ensinar. A experiência (que falha e muito) revela-me que os alunos gostam de aprender conteúdos científicos e não vejo qualquer razão para não o fazer, a não ser que tenhamos um medo impressionante de ensinar e educar.
Abraço
Rolando Almeida

Fernando Martins disse...

Este ano o Ministério da "Inducação" obrigou os Centros de Formação a dar, somente, formação na área das TIC e das Bibliotecas Escolares - e isto quando falava em "ensino experimental das ciências para professores do 1º ciclo do ensino básico"... A nossa Ministra, como sósia de 2ª categoria do sociólogo BSS, pensa muito rápido as políticas educativas/formação de professores e, quando as vai implementar, já está com novas ideias. O resultado é o que aqui sintetiza o Doutor Fiolhais - uma apagada e vil tristeza do Ensino de Ciências em Portugal.

Anónimo disse...

Esse "eduquês" lembra-me a nossa propensão para inventar nome estranhíssimos para cadeiras. Lembro-me que no ensino secundária havia uma "Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social", e que nos meus tempos do Técnico tive "Teoria dos Circuitos e Fundamentos de Electrónica". Brilhante!

Carlos Fiolhais disse...

Caro aff:
É salutar discordarmos.
Discordo em particular de
"Dito de outro modo a objectividade da matemática é contrária à subjectividade da língua, enquanto isto não fôr percebido ninguém entenderá o que realmente significa educar."
Não entendo esta aguda dicotomia
entre a matemática e a língua.
A matemática também é uma linguagem
e a língua também tem de ser rigorosa. Além disso, julgo que
se pode entender o que é educar
sem perceber essa dicotomia.

antfilfon disse...

Caro Carlos Fiolhais: a matemática também é uma linguagem mas não é interpretada de acordo com um contexto, próprio do emissor do receptor e de ambos. É neste sentido do acto de educar, de transmitir conhecimento a alguém que tem uma subjectividade própria, que a língua, que é o veiculo da comunicação entre o aluno e o professor, difere da linguagem matemática. Para ensinar matemática não há outro modo de o fazer sem a transmissão do significado das operações matemáticas, para ensinar história não há outro modo de o fazer sem a transmissão da importância dos factos históricos, para ensinar filosofia não há outro modo de o fazer sem a transmissão do que significam os vários modos de pensar. Todos estes significados não são necessáriamente apreensíveis pelas crianças da mesma forma e com a mesma facilidade, dependem do seu contexto pessoal, muitas vezes difícil, mas sobretudo do modo como interpretam aquilo que ouvem. E isso só tem a ver com a linguagem falada, como percebem por exemplo que 'menos' é diferente de 'menor' ou de 'pior', que o facto da soma dos ângulos dos triangulos dar 180º não serve apenas para os triangulos mas para muitas outras coisas, etc... julgo percebe muito melhor do que eu o que estou a dizer, daí que a dependencia da subjectividade do aluno e do professor esteja necessáriamente implicada no acto de educar, daí a importância da língua, talvez não tanto no ensino da matemática, mas central em muitas outras disciplinas.

antfilfon disse...

"não é interpretada" deve-se ler "é interpretada"

antfilfon disse...

correcção: a correcção acima está errada. sorry

Carlos Fiolhais disse...

Caro aff
Obrigado pelo esclarecimento. Está
um pouco mais claro o que quis dizer,embora pudesse estar mais. Porventura, a dicotomia não será entre língua e matemática, ambas linguagens e com "gramáticas" bem definidas, mas entre arte e matemática. A arte, que inclui a literatura, vive da ambiguidade (possibilidade de o leitor escolher a mensagem ou uma parte dela) ao passo que a matemática não. Mesmo assim, há um ideal estético também em matemática, que tem equivalente na arte.
Quanto à educação, acho que não é ciência. Tem decerto algumas das características da arte. As ciências de educação já poderão ser ciência, embora haja "cientistas de educação" que não sabem isso. Pode-se estudar com o
maior rigor possível o acto de
educar.

antfilfon disse...

Caro Carlos Fiolhais, você percebeu-me mal, acontece que é doutorado em física pelo que julgo mas não percebe peva, desculpe a expressão, de linguística. Certo?

antfilfon disse...

Não encontrei nenhum link em português e pedindo desculpas envio-lhe a entrada da wikipedia em inglês: http://en.wikipedia.org/wiki/Linguistics

Carlos Fiolhais disse...

Caro aff
A expressão "peva" é aqui indesculpável. Mas respondo à questão: Errado, sei alguma coisa de linguística. E li sobre linguística
melhores referências do que a Wikipedia. De qualquer modo a um
argumento responde-se com um contraargumento e não com uma acusação de ignorância, que corta
qualquer possibilidade de diálogo.
Cordialmente

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