Do not all charms fly
At the mere touch of cold philosophy?
There was an awful rainbow once in heaven:
We know her woof, her texture; she is given
In the dull catalogue of common things.
Philosophy will clip an Angel’s wings,
Conquer all mysteries by rule and line,
Empty the haunted air, and gnomed mine -
Unweave a rainbow
John Keats
in Lamia«
Desvendando o arco-íris: A Ciência, a Ilusão e o Apetite pelo Deslumbramento»
publicado pela Gradiva em 2000, é um livro de 1998 de Richard Dawkins que deve o nome à acusação de John Keats a Isaac Newton de que este destruiu a poesia do arco-íris explicando-o. De facto, para Keats a poesia/beleza do arco-íris seria indissociável da mística que permite imaginar panelas de ouro escondidas no local onde toca a terra, ver nele a túnica de Íris, mensageira dos deuses, ou o sinal da paz entre Deus e os homens.
A verbosidade mística ou antes, a mítica construtivista, das orientações curriculares
da Química no ensino básico (debitada por peritas em
eduquês Ciências da Educação) parece inspirada em Keats. As emanações do ministério dir-se-iam desenhadas para garantir que os alunos do básico nunca desvendarão o que seja química e que muitos ficarão indelevelmente marcados por uma aversão profunda à mesma, que destruiu a «poesia» e «sustentabilidade» da Terra.
Estas orientações configuram ainda um programa ideológico que desdenha toda e qualquer fundamentação científica e que confere à química ensinada no nosso ensino básico um carácter «confessional», aparente não só na demagogia construtivista em que assenta (e sobre a qual ninguém melhor que a Helena para nos esclarecer) como principalmente na forma como se ignora a neutralidade que devia caracterizar a ciência e se usa o programa para transmitir uma mundivisão específica, nomeadamente uma visão romântica/rousseauniana de um mundo ideal «estragado» pela ciência.
Um dos livros de Química do oitavo ano que analisei ajuda a perceber o que quero dizer. No livro, que supostamente ensinaria e despertaria para a ciência os nossos alunos, pode ler-se no final da página 37, inscrito no capítulo «A Química, o Homem e a Sociedade»:
«É aos cientistas que cabe a responsabilidade dos riscos criados ao fabricarem explosivos, armas químicas e nucleares; são eles também os responsáveis pela poluição dos solos, dos mares e do ar».
Uma análise
das competências específicas para as Ciências Físicas e Naturais, nomeadamente do parágrafo final do tema «
Sustentabilidade na Terra» explica este descalabro. No livro que mais me escandalizou achei inacreditáveis o assacar das culpas de tudo e mais umas botas aos cientistas, a
convicção cretina e errada transmitida aos alunos de que sem ciência não havia poluição, guerras e sabe-se lá que outros horrores. A esta barbaridade total segue-se uma dissertação pueril e imbecil sobre poluição que culmina, duas páginas à frente, depois de muitos negritos em Sociedade, Homem e Química, numa outra pérola redonda de raciocínio:
«Sejamos optimistas; não criemos sentimentos de culpa
em relação aos danos causados pela Química (...) tomando medidas concretas para combater os efeitos nocivos da Química, por forma a melhorar o mundo».
Este capítulo, repetido em tons mais suaves e menos idiotas noutros manuais, permitiu-me finalmente perceber a origem da onda neoludita que avassala o país - e não só, uma vez que esta ideologia pós-moderna da
demagogia pedagogia construtivista
não se restringe cá ao burgo. Por exemplo, outro «perito» em Ciências da Educação, agora do lado de lá do Atlântico, afirma peremptoriamente que a Química, «incapaz de romper com o hermetismo linguístico que lhe é próprio» é um «
instrumento de opressão e de discriminação, na medida em que contribui para punir os alunos que, sem compreensão de seus fundamentos, são mal sucedidos».
Pensava eu na minha ingenuidade que a inclusão da Química nos
curricula escolares visava exactamente introduzir os alunos ao suposto «hermetismo» da linguagem química, transmitir-lhes os fundamentos desta ciência e desenvolver neles o pensamento científico/químico. Erro meu, má fortuna dos alunos, embora esteja certa que homeopatetas e demais vendedores de banha da cobra agradecem os esforços construtivistas para que os alunos sejam analfabetos químicos - e se, em Portugal pelo menos, aprendem alguma coisa de Química, fazem-no à revelia dos programas e graças exclusivamente aos esforços dos professores com formação científica, que me merecem todos os encómios.
Em que consistem então as orientações curriculares que, conjuntamente
com o horror à avaliação, garantem que o ensino da Química no básico não corre o risco de se transformar num «instrumento de opressão»?

Estas orbitam o planeta Terra em quatro temas inscritos num diagrama circular (de raciocínio). O diagrama «salienta a importância de explorar os quatro temas numa perspectiva interdisciplinar, em que a interacção Ciência – Tecnologia – Sociedade - Ambiente deverá constituir uma vertente integradora e globalizante da organização e da aquisição dos saberes científicos».
Esta abordagem CTSA (Construção Total de uma Sociedade de Analfabetos) é uma ilusão de ensino científico que não ensina, pelo contrário, imuniza os alunos contra a ciência. Aliás, o seu objectivo não é o ensino de ciência mas sim «uma desejável educação para a cidadania».
Mesmo antes de entrar no programa propriamente dito, para mim uma aberração total, considero que este ultrapassa largamente os limites da acção do Estado ao pretender condicionar os alunos para um pensamento único, o seu, e para uma única interpretação de cidadania, a sua.
Neste ponto estou completamente de acordo com Humboldt e considero que todos têm o direito social a uma educação que forme cidadãos capazes de pensar por si próprios, direito social que assegura os direitos político e cívico em que supostamente assenta o nosso estado democrático e moderno. Para mim, a formatação do pensamento que este programa constitui é um atentado às nossas liberdades individuais. Acho especialmente perverso que seja utilizado o ensino de ciência para
impôr aos alunos uma qualquer mundivisão, mesmo que essa mundivisão seja a minha. O ensino em geral e da ciência em particular deve ser neutro, factual e não colorido pelo deslumbramento de ideologias sortidas!
Assim, a transformação do ensino de ciência numa «desejável educação para a cidadania» (cidadania segundo o eduquês) é não só uma perversão da ciência como uma perversão da própria cidadania, metamorfizada num mundo «ideal» como o retratado
em Fahrenheit 451. Tal como criticava Humboldt, este ensino visa não o pleno desenvolvimento dos indivíduos através do estímulo do pensamento independente, mas sim o fornecimento de ideias «mastigadas» que os cidadãos devem engolir sem pensar muito. Não há assim riscos de desenvolvimento de pensamentos «dissidentes» pelos cidadãos já que são inibidas quaisquer veleidades de liberdade de pensamento e de pensamento crítico.
Imagem:
Pieter Brueghel, o velho: A Parábola de um cego conduzindo outro cego, 1568, Têmpera sobre Tela.