quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

NA ENCRUZILHADA DA TRANSIÇÃO DIGITAL

Um dos elementos mais centrais dos discursos curriculares vigentes – de origem política, económico-empresarial, social e, mesmo, académica – é a necessidade e urgência de transformar a educação escolar através da inovação que a tecnologia digital possibilita. Tais discursos colhem efetivamente, de modo que os sistemas de ensino se têm mobilizado para legitimar e realizar mudanças mais ou menos assinaláveis.

Neste cenário – que, na verdade, nada tem de novo –, a análise e a crítica tendem a ser afastadas, mesmo se ancoradas em trabalho filosófico e científico relevante. Acontece que a responsabilidade inerente à ação dos educadores obriga-os a manter a dita atitude, o que implica questionar, estudar e discernir, nunca perdendo de vista o ideal educativo e o que, em função dele, beneficia os alunos, entendidos como seres humanos em formação.

Considerando esta realidade, realizou-se recentemente um ciclo de conferências com o título Na encruzilhada da transição digital, integrado no projeto “O currículo escolar na contemporaneidade”, em curso no Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra (CEIS20). O ciclo que decorreu de uma colaboração entre esse Centro, a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da mesma universidade e a Associação de Professores de Latim e Grego, teve lugar na Escola Secundária Infanta Dona Maria, em Coimbra (ver aqui e aqui).

Em concreto, o ciclo incidiu na dita “transição digital” em contexto escolar, com especial incidência no uso massivo de ecrãs e teclados, explorada a partir de quatro áreas disciplinares: da Educação e da Pedagogia, da Psicologia e da Medicina, bem como da Filosofia e da Ética. 

Trata-se de uma transição, à qual se apontam virtudes inauditas e perigos sérios; onde se veem avanços consecutivos e revisões previdentes; onde se reúnem entusiasmos e ceticismos em diversas tonalidades. Por isso mesmo, deveriam ter sido procurados olhares de outras disciplinas como, por exemplo, das Neurociências, da Sociologia, da Economia, da Ciência Política, do Direito, da Antropologia, sem esquecer o da Tecnologia, mas entendeu-se que os escolhidos seriam prioritários no campo curricular. 

De um modo geral, os conferencistas insistiram na ideia de que as tecnologias digitais devem estar ao serviço da educação, e não o contrário, como aparenta acontecer. Há, portanto, que reajustar o modo como elas são integradas na escola, que deve ser pautado pela ponderação e não pela pressão e sedução exercidas por entidades não, diretamente, educativas. Notaram que o sentido a imputar à educação é de formação humana, a qual, na tradição humanista, aspira ao desenvolvimento de capacidades superiores, não se restringindo ao nível funcional. Embora tenham reconhecido o potencial educativo de algumas destas tecnologias, alertaram para os riscos de uma implementação apressada, desajustada ou descontextualizada. Ficou clara a necessidade de respeitar o papel do professor e de outros educadores bem como de manter as interações significativas na aprendizagem.

Os conferencistas basearam-se em relatórios supranacionais e documentos oficiais nacionais, em estudos científicos e reflexões filosóficas, bem como em dados empíricos que recolheram. Todavia, nem sempre expressaram as mesmas posições, reforçando a ideia de que há questões em educação que não têm uma resposta linear, sendo importante a sua exploração.

Este é o momento para tal, para refletirmos sobre os caminhos que estamos a trilhar um pouco por todo o mundo, ponderando as consequências das nossas escolhas, uma vez que nos situamos no domínio particularmente sensível que é a educação. Sobretudo, devemos ir mais além do que os discursos simplistas e superficiais nos indicam e, mesmo, daquilo que os documentos normativo-legais e curriculares preveem. Estes documentos, guias estruturantes, que não podemos ignorar, são muitas vezes influenciados por agendas económico-tecnológicas com fins diferentes dos educativos e pouco ajustados às realidades escolares e à finalidade última da educação.

Por isso, é essencial que não nos deixemos conduzir cegamente pela promessa da inovação tecnológica (que, atente-se, não constitui um valor em si mesma, toda a inovação pode ser positiva ou negativa em função, nomeadamente, de critérios teleológicos e axiológicos) sem perguntarmos quais as reais vantagens do uso de certa tecnologia na formação humana. Precisamos, sobretudo, de evitar aderir cega e acriticamente a soluções simplistas ou reducionistas que nos são oferecidas a todo o momento, à distância de um clique, de uma hiperligação, de uma “bengala” tecnológica.

A ponderação ajuda-nos a resistir à imposição das tendências mais imediatistas, permitindo traçar caminhos que respeitem a complexidade e heterogeneidade do processo educativo, no pressuposto de que as decisões que tomarmos hoje se refletirão no futuro. É que, ao contrário de outras áreas onde os erros podem ser corrigidos e os sistemas podem ser ajustados, mesmo que com custos económicos, as decisões tomadas para a educação são frequentemente irreversíveis, comprometendo a formação de crianças e jovens. Essa irreversibilidade torna qualquer implementação de “modas” pedagógico-didáticas, que muitas vezes se reduzem a imposições do mercado e conjunturas político-económicas, questionáveis, se não tiverem um respaldo ético e científico consolidado.

Na verdade, a educação escolar é um campo onde a prudência deve prevalecer, pois cada escolha toca diretamente o direito fundamental, que todos têm, de chegar aos mais elevados patamares de desenvolvimento humano. Como educadores e futuros educadores, precisamos de preservar a essência da educação como um contexto de interação significativa onde esse desenvolvimento acontece. O digital pode ser um aliado poderoso, mas nunca substituto da relação pedagógica, onde o “milagre” do ensino e da aprendizagem acontecem.

Enfim, e voltando ao título – Na encruzilhada da transição digital –, encruzilhada quer dizer cruzamento, entroncamento, lugar onde diversos caminhos se intersetam, mas que exige decisão quanto ao percurso a seguir. Por onde devemos ir? Cabe-nos, de facto, escolher os caminhos que se afiguram mais seguros e sustentáveis, que valorizem os alunos e os professores e a escola como instituição educativa, que reconheçam a educação como uma tarefa humana. 

Isto implica um diálogo contínuo e desinteressado tão difícil de conseguir, mas absolutamente indispensável.

Maria Helena Damião, Célia Mafalda Oliveira, Cátia Delgado e Isaltina Martins

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Quando estar na encruzilhada, ou na transição (digital, climática, energética, demográfica, social, política…) é estar consciente dos processos de mudança em curso que dificultam e complicam a necessidade de manter e de reproduzir uma ordem social, económica, política, jurídica, nacional e internacional, pelo menos ajuda a compreender porque é que as instituições deixam de ter a capacidade e a agilidade necessárias para amortecerem e se adaptarem aos choques em cadeia dessas transições, por mais expectáveis e previsíveis que sejam.
De qualquer modo, será através das instituições, atualizadas, renovadas, reapetrechadas, que as transições ocorrerão, num processo dinâmico e dialético de várias vertentes, sendo uma delas por inerência das instituições, porque, pela própria razão de ser, devem assegurar e reproduzir as condições para a realização de objetivos programados, e outra por iniciativa própria, antecipando e promovendo processos de mudança.
O tema abre perspetivas de análise e de compreensão dos fenómenos sócio-culturais, mormente políticos, carregados de interesse.
Os Estados, através das suas instituições, mais nos últimos séculos, têm vindo a assumir um protagonismo e uma iniciativa crescentes nos processos de mudança, todavia fazem-no, não apenas pelas vantagens que essa mudança pode trazer por si mesma, mas também e sobretudo porque os processos de mudanças se representam como necessários, ou como a melhor forma de manter e reproduzir uma certa ordem das coisas. Isto parece paradoxal, mas está na linha daquele pensamento anedótico segundo o qual é preciso trabalhar muito para que tudo continue na mesma e não se consegue.
Ainda nesta ordem de ideias, e para abreviar, se quisermos pensar, por exemplo, no modelo do Estado liberal, veremos que este, para o ser, mesmo que se limitasse a manter e a reproduzir o modelo, só para conseguir isso já teria de fazer muito mais do que isso, tomando e assumindo prerrogativas e iniciativas de toda a ordem que, em última análise, não são próprias de um Estado liberal.

NA ENCRUZILHADA DA TRANSIÇÃO DIGITAL

Um dos elementos mais centrais dos discursos curriculares vigentes – de origem política, económico-empresarial, social e, mesmo, académica ...