segunda-feira, 23 de outubro de 2023

MEU PREFÁCIO A “O FUTURO DA CIÊNCIA E DA UNIVERSIDADE” (ALMEDINA, OUT. 2023):

Em 1970, no rescaldo da crise académica de 1969 na Universidade de Coimbra, tomou posse de ministro da Educação José Veiga Simão que era professor de Física desta universidade e havia sido primeiro reitor da Universidade de Lourenço Marques. Nessa ocasião, anunciou claramente ao que vinha: “Educar todos os portugueses, onde quer que se encontrem, na aldeia escondida ou na cidade industrializada (…) é o princípio sagrado de valor absoluto e de transparente importância à escala nacional”. 

Logo no ano seguinte submeteu a discussão pública dois documentos que seriam basilares do que hoje chamamos Reforma Veiga Simão, “O Projecto do Sistema Escolar” e as “Linhas Gerais da Reforma do Ensino Superior”. Comum aos dois era a preocupação de alargamento da escolaridade. Em particular, eram necessários mais diplomados do ensino superior. Em 1973, foi promulgada uma lei de base do sistema educativo, a qual consagrava o direito de todos à educação, “sem outra distinção que não seja a resultante da capacidade e dos méritos de cada um.” 

Passou a ser possível a muitas pessoas de classes sociais baixas terem filhos no ensino superior (o próprio Veiga Simão vinha dessas classes). Para isso, foi necessário criar instituições desse ensino em vários sítios do país (em Lisboa, Braga, Aveiro e Évora), concretizando uma reforma universitária como já não se via desde 1911, quando a Primeira República fundou as Universidades de Lisboa e do Porto. Não faltaram reacções contrárias ao projecto de Veiga Simão, como a daquele deputado que disse na Assembleia Nacional que “democratizar o ensino é o mesmo que dar a qualquer cidadão o direito de ser doutor; mais não é do que entender que qualquer burro tem direito a ser cavalo.” 

A Revolução do 25 de Abril impulsionou os sectores da educação e da ciência, beneficiando de um consenso generalizado na sociedade. Mas os progressos foram, de início, mais visíveis na educação do que na ciência. O impulso decisivo para a instalação do nosso sistema científico e tecnológico só surgiu em 1995, com a tomada de posse de José Mariano Gago, físico como Veiga Simão, mas da Universidade Técnica de Lisboa, como Ministro da Ciência e da Tecnologia no primeiro governo de António Guterres.

As ideias-chave – como investimento, internacionalização, avaliação, cultura científica, etc. – já estavam delineadas no Manifesto para a Ciência em Portugal, publicado em 1990 pela Gradiva. Mas a sua concretização por políticas que foram ajudadas por fundos da União Europeia fez-se num conjunto de vários mandatos ministeriais, os últimos dos quais juntavam o Ensino Superior com a Ciência e Tecnologia. Que hoje somos todos herdeiros de Veiga Simão e de Mariano Gago transparece com clareza desta oportuna iniciativa do “Encontro Nacional – Universidade: Chave para o Futuro”, organizado em Dezembro de 2022 pelo Iscte - Instituto Universitário de Lisboa em colaboração com o CRUP - Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, que, celebrando os 50 anos da Reforma Veiga Simão e os quase 50 anos da Revolução do 25 de Abril, discute o estado actual do nosso ensino superior. 

O Encontro foi muito rico e quem não esteve presente beneficiará da leitura desta compilação de textos assim como do registo dos debates que se encontram coligidos nesta obra. Fazendo jus ao título do encontro, há aqui “chaves para o futuro”. O futuro tem de ser continuamente aberto. Depois de uma primeira parte, mais de enquadramento político (“Pensar o futuro da universidade”), e antes de uma conclusão pela actual Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, o livro que documenta o Encontro divide-se em duas partes: “Para novas políticas de ensino superior, ciência e inovação” e “Para uma universidade mais aberta.” Na primeira, reconhece-se a existência de um problema de articulação entre, por um lado, a ciência e a tecnologia, e, por outro, o ensino superior, aqui centrado nas universidades. Reconhece-se também o insatisfatório impacto do sistema de ciência e tecnologia na economia do país.

Na segunda parte, discutem-se três questões muito actuais do ensino superior: a meritocracia e a justiça social, a pedagogia universitária, designadamente à luz das novidades trazidas pela digitalização, e, finalmente, o papel da língua portuguesa no país e no mundo como língua de ciência e, mais em geral, de conhecimento. Seja-me permitido fazer um resumo. Em primeiro lugar, a questão da ligação entre ciência e tecnologia e ensino superior. Quando Mariano Gago montou o sistema hoje instalado, entendeu – e tinha as suas razões – fazê-lo ao lado do sistema de ensino superior e não lá dentro.

Como a maior parte dos investigadores do sistema público está nas universidades – mais ainda, a maior parte do financiamento público da ciência e tecnologia é a parcela das remunerações dos universitários de acordo com o seu tempo dedicado à investigação – é claro que a ligação entre ciência e universidades é muito forte.

Mas os mecanismos criados para acesso rápido ao financiamento canalizado em boa parte pela Fundação para a Ciência e Tecnologia – como as várias instituições privadas sem fins lucrativos – deixou os órgãos de gestão das universidades à margem da política de ciência e tecnologia. Esta é uma situação bastante estranha, que originou um conjunto de problemas que estão à vista, designadamente o subfinanciamento das universidades, com a consequente não renovação atempada dos quadros, e o aparecimento de um largo corpo de investigadores qualificados com ligações precárias às universidades se é que de todo as têm. 

Acontece que as universidades não são definitivamente as mesmas de finais do século passado e, pesem embora as legítimas dúvidas que alguns possam ter, devem ser valorizadas, confiando nelas para gerirem fundos adicionais, direccionados para a ciência e tecnologia, incluindo desde logo a provisão das carreiras das pessoas que investigam, prevendo naturalmente a competente avaliação dos resultados alcançados com o novo modelo. Convém lembrar que os diplomas de doutoramento são outorgados pelas universidades, sendo inteiramente justo que elas reclamem condições para que os trabalhos doutorais possam ser feitos no seu seio. Também os pós-doutoramentos têm, em geral, lugar nas universidades.

Tanto os doutorandos como os post-docs são dos investigadores mais activos e produtivos. Acima de tudo, é preciso, como mostram alguns dos dados estatísticos reunidos nesta obra, reconhecer que o nosso financiamento para investigação e desenvolvimento é muito diminuto, comparado com os padrões europeus. O último valor publicado é de 1,7% do PIB, quando a União Europeia tem como média 2,3%. A meta da União Europeia, que alguns países já alcançaram, é 3% do PIB em 2030 e, faltando sete anos, não se está neste momento a ver como é que o nosso país vai conseguir cumprir esse objectivo. Não o irá alcançar se continuar no caminho de estagnação que vivemos na última década, depois da intervenção da troika, que serviu a alguns responsáveis como justificação para uma «poda» da ciência. Os números não mentem: em 2009, o investimento era 1,6% do PIB e hoje é de 1,7%. Durante todo este tempo a ciência e a tecnologia andaram sempre incensadas pelos poderes com elegias um pouco ocas.

Foi uma década perdida e razão tem a reitora do Iscte, Maria de Lurdes Rodrigues, quando escreve «A estagnação do crescimento do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, registada desde 2011, deveria fazer soar os alarmes.» Pergunta ela: «Significa que está esgotado o modelo de desenvolvimento da investigação dos últimos 30 anos? É este o momento de repensar as políticas públicas de ciência e a sua articulação com as políticas de ensino superior e as políticas de economia?» A estas duas questões não tenho dúvidas em responder que sim.

Para profissionalizar os investigadores a quem foi proporcionada a mais alta formação afigura-se necessário um salto grande dos orçamentos universitários, de modo não só a substituir a geração que está a sair (a minha, que entrou na universidade no tempo de Veiga Simão e que acompanhou Mariano Gago no movimento de ascensão da ciência) como a proporcionar novos lugares de docência e de investigação.

Os desafios do futuro são múltiplos e complexos – alterações climáticas, inteligência artificial, biomedicina, ética e direito, etc. – que só com mais mentes e mentes jovens, a trabalhar de uma forma criativa, podem ser enfrentadas. O financiamento das universidades não pode ser feito, como ainda hoje é em larga medida, atendendo ao número de estudantes: tem de atender também à produção de conhecimento e à sua ligação à sociedade, pois essas são também missões da universidade. Uma alternativa, que não tem sido discutida, seria a criação de uma rede de laboratórios públicos bem financiados através do Orçamento de Estado centrados em certos temas de investigação de interesse público (as sementes poderiam ser os actuais Laboratórios Associados), que funcionassem em complemento à rede universitária: foi esse o caminho seguido há muitos anos na Espanha, na França, na Alemanha, etc.

Mas a necessidade de investimento seria maior, afigurando-se algo incertas as sinergias que pudessem ser criadas entre as duas redes. De qualquer modo a ciência e a tecnologia são num país democrático bens de todos e o seu financiamento, obedecendo a políticas públicas, deveria estar claramente dentro do perímetro do Orçamento do Estado. Uma outra questão na qual temos de realizar progressos é a investigação e desenvolvimento em ambiente empresarial. No Encontro foram apontados os traços caricaturais da investigação que é realizada no sector privado quando se oferecem incentivos fiscais mal regulados e mal fiscalizados. Algumas das empresas que dizem fazer a maior investimento afinal não têm nem doutorados, nem artigos, nem patentes… Isto é, quando se diz com satisfação que, dos 1,7% do investimento em ciência e tecnologia do PIB, 1,0% vem do sector privado, estamos certamente a enganar-nos a nós próprios. Tem de vir mais e são precisos incentivos para que isso aconteça, mas não desta maneira.

O número de investigadores científicos em Portugal, com o sector privado a exceder o público, originando uma estatística razoável na comparação europeia, levanta muitas dúvidas. Apesar dessa boa comparação, é óbvio que a nossa economia ainda não é competitiva à escala internacional. Algumas andorinhas não fazem a Primavera. Faltam designadamente bens exportáveis com alto valor acrescentado, aquilo a que hoje chamamos produtos inovadores. Sendo assim, continuamos a viver demasiado dependentes de serviços como os do turismo. E continuamos atrasados. Em Junho de 2021, a Comissária Europeia para a Coesão e Reformas, a economista portuguesa Elisa Ferreira, punha o dedo na ferida, numa entrevista ao Jornal de Negócios: “é penoso ver que, com tantos anos de apoio, ainda estamos entre os países atrasados.” 

As universidades têm um papel a desempenhar na dinamização económica, mas para isso não podem desistir ou desvirtuar o seu papel, absolutamente imprescindível, na criação de ciência fundamental, que, tarde ou cedo, vai ser, com grande probabilidade, aplicada. Não estou certo de que o anunciado desvio de um quinhão das bolsas de doutoramento para o ambiente das empresas possa dar grandes frutos sem um apoio e compromisso das universidades. Em segundo lugar existem questões de abertura da Universidade ao mundo, que vão muito para além do seu papel de motores da ciência e tecnologia. 

Foi bem feita a escolha de tópicos neste Encontro: as questões do mérito, do digital e da língua. Haveria outras, por vezes relacionadas, como a internacionalização, a cultura científica, e a distinção e relação com os politécnicos. Hoje o significado e o papel da «meritocracia», que Veiga Simão advogava sem margem para dúvidas, fazem parte da agenda da sociologia e da política. Persistindo as desigualdades, deveremos culpabilizar e estigmatizar os indivíduos desde pequenos por falta de mérito? É uma boa pergunta para a qual temos de procurar boas respostas.

O filósofo norte-americano Michael Sandel fala em “tirania do mérito.” Nas páginas seguintes encontram-se algumas pistas para uma discussão que deve continuar. Vivendo nós num mundo cada vez mais digital, quais são as condições e os limites da digitalização? Na minha opinião, pese embora o grave constrangimento da pandemia, já se foi demasiado longe na substituição das naturais relações necessariamente humanas entre professores e alunos por ambientes virtuais. Abandonar os jovens a ambientes digitais, cada vez mais incríveis (na verdadeira acepção do termo), significa desistir da educação, tanto no ensino básico e secundário como no superior. 

O neurocientista francês Michel Desmurget fala de “fábricas de cretinos digitais”. As universidades deviam ser os sítios onde, jamais se desistindo do espírito crítico, se estude e valide o que é anunciado, por vezes com grandes parangonas e fortes interesses comerciais, como pedagogias novas. Por último, qual é o papel da língua portuguesa num mundo global onde o inglês (ou melhor o mau inglês, das transacções turísticas e comerciais) impera? Tenho para mim que a língua portuguesa é uma língua de conhecimento desde que ficou consolidada há vários séculos. Lembro que o médico flamengo Charles de l’Écluse teve no século XVI de aprender algum português para traduzir para latim os Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia, publicados em 1563 em Goa. Não desprezando o papel do inglês num mundo onde os saberes tendem a ser universais e as pessoas circulam amplamente, penso que já se foi longe demais no detrimento daquela que é a quinta língua mais falada do mundo, sendo a primeira no hemisfério Sul. 

É nossa obrigação valorizar a língua portuguesa, o que, para além do seu uso nas universidades, passa também por amplos processos de digitalização de conteúdos em português, colocando-os no processo a que se convencionou chamar Ciência Aberta (como se a ciência não fosse aberta, por sua própria natureza) à disposição de uma audiência global. Há, nesta obra, muito alimento para o cérebro (não digo food for thought) e só fico à espera de que se desenvolvam consensos para que algumas das ideias nelas expressas encontrem a merecida concretização na nossa vida. Não sei se as universidades, que remontam à Idade Média, serão eternas. 

Mas têm decerto um amplo caminho à sua frente. Elas são os sítios onde se prepara o futuro, que será tanto melhor quanto melhor for essa preparação. Alguém disse no Encontro que à sua geração, que é também a minha, foram dadas, pela anterior, maiores oportunidades do que aquelas que estamos a dar à geração seguinte. Dar mais à próxima geração é dar mais ao futuro e o ideal seria que conseguíssemos sempre dar mais do que aquilo que recebemos.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...


Neste prefácio rico de informações, de perspetivas históricas e de considerações teóricas pertinentes e relevantes para o tema do livro, o Carlos Fiolhais fornece referências muito interessantes e, embora este não seja o contexto oportuno para comentar, peço condescendência para o meu atrevimento, porque não resisto a dizer umas coisas sobre a tirania do mérito e a meritocracia.
É da máxima importância que os poderes políticos, a quem cabe a governação e a implementação de mecanismos de incentivo ao desenvolvimento, porque é incontestável que este pode e deve ser promovido pelo Estado, assumam as questões do mérito num plano em que o mérito é das variáveis em que o poder político terá mais hipóteses de contribuir para a realização dos seus objetivos de boa governação, de promoção da ciência, tecnologia e cultura para o desenvolvimento do país.
O próprio conceito de mérito é rebelde às tentativas de o reduzirmos à ideia de merecimento pelo esforço, pela dedicação, ou pelo trabalho. Nesta perspetiva, o mérito de um perdedor numa competição pode ser maior do que o do vencedor.
Nas sociedades liberais e, nas outras não será muito diferente, o resultado, o produto, a mais-valia, a virtude, e o próprio talento individual, tendem a ser critério de mérito daqueles a quem sejam devidamente imputados. Normalmente é o mercado que trata disso. E como nem todo o resultado, ou produto, ou atividade, têm o mesmo valor, num determinado momento, ter mérito não significa a mesma coisa para duas situações diferentes.
O mérito do marcador do golo não tem o mesmo valor do mérito do colega que lhe passou a bola para ele marcar. No entanto, mesmo nestes casos do desporto, o mérito de quem passou a bola pode ser reconhecido por toda a gente como muito superior ao de quem marcou. Neste exemplo, e noutros, o mercado não reconhece o mérito pelo valor funcional, pessoal, social, estético, ou mesmo ético. O mercado é cego relativamente a isso.
O mercado só tem olhos para o valor de mercado, ou seja, que se exprime em unidades monetárias. E não será porque se apele à boa vontade dos agentes económicos que estes passarão a atribuir mais valor monetário a alguém pelo mérito (não monetário) de algo que faça.
Assim, temos um desencontro, muito inconveniente para a sociedade e para a promoção dos seus pilares de sustentação e de desenvolvimento, entre aquilo que, sendo de reconhecido mérito, humano, social, cultural, científico, estético, ético, o não é efetivamente no plano do reconhecimento económico.
Por outro lado, este desencontro vai-se exacerbando à medida que contribui para reforçar os investimentos e as atenções e as expectativas, não tanto naqueles méritos, que o são reconhecidamente como vitais, mas preferencialmente nos outros.
As implicações negativas, para a economia e para o desenvolvimento social, deste fomento induzido pelo mercado, podem e devem ser contrariadas pela ação e pela intervenção do Estado, nomeadamente, através de políticas de incentivo e apoio, através do reconhecimento pessoal e patrimonial do mérito.
De preferência, passe o sarcasmo, que não se limitasse a atribuir medalhas de mérito, ou de mérito póstumo e que não fossem para quem já teve o seu mérito reconhecido.

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