sábado, 1 de abril de 2023

És um homem inteiro, sem medo

Diz aquilo que o fogo hesita a dizer,

Sol do ar, claridade que ousa,

E morre porque o disseste por todos.

                                      René Char

És um homem inteiro, sem medo,

Quando retornas ao chão da infância,

Ao caminho sinuoso, à ervosa brancura,

Às poças de gelo e de água,

Ao recreio emurchecido, à luz dura 

De um seixo e ao cheiro de uma frágua.

És um homem inteiro, sem medo

De arrastar as mãos nos limos,    

De pelejar, só com o coração,

Contra o ardil ou a ignorância.

Contra o vento que obra a lágrima.

Contra a metáfora do comboio em andamento.

Contra a inércia

De falar muito e não dizer nada.

Contra a verborreia que liquefaz o pensamento,

Rasga a frescura do silêncio

E agrava o astigmatismo. 

És um homem inteiro, sem medo

De riscar o fundo,

De deixar a cristalização

Explicar-se, evaporando-se o solvente no escuro.

De levar com a areia negra no rosto

E ser atraído para um canto da Terra noturno.

Quando retornas ao chão da infância,

És um homem inteiro, 

Sem medo

De se arrastar nos limos

E de quem quer quebrar-te a canção,

Assenhorar-se, com exagero,

Sem moral e amor, de um dia de abril.

Sem medo de quem te quer sem futuro,

Sem a força das mãos, fadadas a quebrar

O chão hexagonal até ao abismo.

1 comentário:

Anónimo disse...

O poema sem rima

A haste do pêndulo partida
As asas de Sol queimadas
O céu vincado em oblíquos
E nós a cair, não o sentes?

A infância no resto do tempo
Presente no estreito dos pés
O hexágono na boca da alma
E nós a cair, não o sentes?

O rosto manchado de chão
O espaço dobrado na ruga
O olhar perdido sem frente
E nós a cair, não o sentes?

O búzio sem mar dentro
A sereia morta no pescador
O anjo velho que nunca vem
E nós a cair, já o sentes?

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