sábado, 8 de abril de 2023

A Faca

Descoberto por Peter Jacob Hjelm, em 1778, o molibdênio, metal prateado, tem um ponto de fusão altíssimo, de 2622 ºC, e baixa volatilidade; não reage com o oxigénio nem com ácidos fracos, sendo usado em ligas metálicas; para além disto, é estável a altas temperaturas e tem uma dureza de 5,5 na Escala de Mohs.

O aço inoxidável é uma liga metálica constituída por ferro e cromo (este último, à semelhança do molibdênio, não reage com o oxigénio, pertencendo, ambos os elementos químicos, aos metais de transição e ao sexto grupo da tabela periódica). A estrutura do aço inoxidável pode também conter níquel (até 30%) e estar dopada com molibdênio (0-2%) que lhe confere uma maior dureza e uma resistência à tração maior (é mais difícil quebrá-lo).

Usado no fabrico de facas, o aço inoxidável foi inventado em 1913 por Harry Brearley. Pouco tempo depois, o poeta húngaro, Attila József, escreveu, sobre o facto de, para os seus conterrâneos, a poesia e uma faca se assemelharem, o seguinte:

Quando nasci tinha uma faca na mão.

Dizem: é poesia.

Mas peguei na pena, melhor ainda que a faca.

Nasci para ser homem.

Quem também nasceu para ser homem e poeta foi João Luís Barreto Guimarães. No ano passado, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa. No último livro, que editou em 2020, Movimento, podemos ler este poema que contém instruções para o manuseio de facas de aço inoxidável:

 

A Faca 


Lave e seque

a faca

quando a usar pela primeira vez. A faca deve

ser lavada e enxaguada

à mão. A faca fica inutilizada se

for lavada

à máquina. Limpe muito bem a faca após

cada utilização. Esse cuidado previne

a propagação de bactérias. O aço de molibdeno

(de que é feita a faca) mantém-se

mais tempo afiado do que

o aço

normal. Não use amoladores de faca em

aço inoxidável. Evite cortar alimentos (se

duros ou congelados) porque isso pode fazer com

que a faca se parta. Ao dividir alimentos (num

plano horizontal) vá oscilando

a faca (em

movimentos contidos) sobre a

tábua de madeira. Guarde muito bem a faca longe

do uso indevido. Não saia de casa

com a faca. Não a leve para o trabalho.

Não mate o seu chefe

Com a faca.

Assim, devemos nós, homens, seguir à risca as instruções do poeta, e, nas nossas deambulações, no asco e angústias, não nos lembrarmos nunca de uma faca, nem sequer em pensamentos, como Mário Sá- Carneiro: Tenho impressão de ter em casa a faca...

 

P.S: Santa Páscoa


7 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Desconhecia o poeta húngaro, Attila József, e este seu poema esplendoroso. Dos que ficam na memória a rebobinar, a rebobinar. Saltou-me à ideia o estereótipo de Luís de Camões com a espada numa mão e a pena na outra. Uma faca de dois gumes. E muito mais. Humano, simplesmente humano, como a páscoa.

Ângelo disse...

li Attila József, em duas antologias publicadas em Portugal, e comoveu-me porque a sua poesia fora a sua vida. Agora, lembrei-me de Herberto Helder e da faca que «não corta o fogo, não me corta o sangue escrito». A poesia é uma faca de dois gumes, quando se confunde com a vida, mas, para mim, não há outra forma de abordá-la. Num dos poemas de Attila József ele diz que «matará se for preciso», mas, ele nunca matou ninguém, apenas estava a atravessar uma fase de um desespero insuportável. Foram os homens do seu tempo que fizeram dele poeta (afinal, ele escrevia bem e poderia ser aquilo que sempre quis ser). A poesia é um destino traçado pelos homens.

Carlos Ricardo Soares disse...

A poesia não exige consensos sobre qualquer assunto mais básico do que a sua própria desejabilidade. Lembro-me de ter lido algo parecido com isto. Deve ter sido uma das frases em que fiquei a habitar temporariamente. Os humanos habitam em linguagens.

Ângelo disse...

Concordo. Mas a poesia pode ser mal-interpretada. Já me aconteceu isso, e, a única forma que encontrei de explicar-me, foi escrever um novo poema, tornando o herói menos oculto (e o herói nem sequer era o poeta). Quando Carlos Drummond de Andrade escreveu «no meio do caminho tinha uma pedra», a que se referia ele? A um pequeno obstáculo que ficara para sempre na sua memória, que estava sempre diante dele, porque a memória é dinâmica? A um grande obstáculo que com o tempo se tornara mais pequeno, se desvalorizara, ao ver do poeta? À morte, de alguém próximo, que deixara muitos sonhos por realizar? Às críticas feitas à sua poesia? Não o podemos afirmar concludentemente.

Carlos Ricardo Soares disse...

A poesia não pode ser mal interpretada. Nem a música. Nem a pintura. Nenhuma das artes. Se me pedirem para interpretar uma obra de arte, tenham em consideração, pelo menos, duas condições: a de que não há um critério estabelecido para se concluir seja o que for; e que, na falta de critério atendível e plausível, nenhuma interpretação tem privilégio sobre a minha. Caso contrário, não esperem.
Esse poema do Carlos Drumond já se atravessou no meu caminho, muitas vezes, em momentos muito diferentes, e fiquei a pensar nas conclusões que tirei e se podem tirar. Mas, do meu ponto de vista, a interpretação que alguém possa fazer do poema, não está sujeita a censura, nem a classificação. Caso contrário, pela minha parte, deixaria de ler crítica literária.

Anónimo disse...

No meio do caminho tinha uma pedra... Um padre mau? Um coxo que nem anda, nem deixa andar os outros?

Anónimo disse...

Missas em latim ou a peça de Tchekhov, os malefícios do tabaco . Quem sabe latim, sabe demais para mim.

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