sexta-feira, 4 de novembro de 2022

"E NÃO POSSO MANDAR-LHE UM MAIL?"

Não consigo abrir o link, mande-me o artigo;
Não posso ir ao atendimento, explique-me o que errei no teste e no trabalho;
Diga-me o que tenho de fazer para melhorar a nota;
Não pude ir à aula, faça-me um resumo / diga-me o que devo entregar na próxima semana;
Tive de sair mais cedo na aula, preciso de um atendimento / de uma reunião;
Explique-me como é a avaliação (isto no final do semestre);
Pode dizer-me o que sai no teste? / O que é essencial estudar para o teste?
Mande-me os materiais (estando eles disponíveis na plataforma digital);
Envio-lhe o meu trabalho para que o corrija antes de o entregar;
Etc. 
Mais palavra menos palavra, este é o conteúdo de mensagens de correio electrónico, vulgo emails ou, mais simplesmente, mails, que recebo com crescente frequência de alunos. Muitos ignoram o meu nome e a minha condição docente, bem como os “por favor”, “obrigada” e "cumprimentos". As teclas vão direitas ao assunto e o assunto é uma necessidade inadiável do remetente, a qual deve ser atendida de imediato, sob pena de queixa formal. Colegas de universidades portuguesas e estrangeiras dizem-me que, com eles, acontece o mesmo. Não estou, portanto, só na minha perplexidade.

Por estranho que pareça, os mails mandados por alunos a professores (deixo de fora os mails dos professores para os alunos) passaram a ser motivo de pequenos e, por vezes, não tão pequenos, conflitos. "Mandei-lhe um mail e não me respondeu!" é uma advertência que passou a ser-me familiar. Faço notar que o email me chegou pela noite dentro, num fim-de-semana, há escassas horas... mas vejo que não são argumentos que colham.

Explicar, em aula, que os atendimentos se destinam a resolver o que os alunos solicitam por mail, que devem consultar a plataforma digital antes de escreverem ao professor, que ao dirigirem-se a alguém não devem destituí-la da sua identidade, que regras de urbanidade têm a sua importância… não tem grande efeito. Talvez porque os reais destinatários da explicação andam por outras paragens e os que estão à minha frente são de uma galáxia mais próxima da minha e, portanto, não fazem o que explico.

Isto acontece na universidade, contexto em que os professores têm desde poucas dezenas de alunos a várias centenas. Logo, a tarefa de ler e responder a emails triviais, se for levada à risca, pode ocupar várias horas por dia. Excluo as orientações de mestrado e doutoramento.

O que acabo de dizer está dito e bem dito num tópico (E não posso mandar-lhe um mail?) do livro "A morte da competência: os perigos da campanha contra o conhecimento estabelecido", de Tom Nicholas e publicado originalmente em 2017. Entre as páginas 117-121 podemos ler o seguinte: 
"Nas universidades de hoje, a orientação de serviço para o cliente e o tratamento de conhecimento especializado como mais um produto vê-se até aos pormenores. Pense-se, por exemplo, na influência do email, que incentiva os comportamentos mais estranhos, que, regra geral, os alunos hesitariam em manifestar num contacto presencial (…). O email cria uma falsa sensação de intimidade que destrói as barreiras necessárias a um ensino eficaz (…). 
A utilização do email generalizou-se nas universidades nos anos 90 e, ao fim e uma década, os professores deram conta das alterações causadas pela comunicação instantânea. Em 2006, o New York Times inquiriu professores universitários (…) e a frustração era óbvia. «Atualmente», lia-se no Times, «os alunos pensam que [os professores] devem estar disponíveis a qualquer hora, e estão sempre a enviar emails demasiado informais ou completamente inadequados». (…) [disse um]: «o tom que assumiam nos emails era bastante surpreendente: ‘preciso de saber isto e tens de mo dizer já´, com uma familiaridade que, por vezes, roça o imperativo». 
O email, tal como as redes sociais, põe todos ao mesmo nível, e dá aos alunos a ideia confortável de que mandar uma mensagem ao professor é o mesmo que contactar qualquer serviço de apoio ao cliente. Como observado pelo Times: «… hoje o conhecimento especializado parece não se mais do que um produto que os alunos, enquanto consumidores, compram. Como tal, os estudantes podem não ter receio de ofender, de se impor ao horário do professor ou até de fazer uma pergunta que pode dar uma má imagem da sua inteligência (…) [a professora] disse que tinha recebido emails de alunos que tinham faltado às aulas e pediram-lhe cópias dos apontamentos dela». 
Quando confrontado com este tipo de queixas do corpo docente (…) um aluno do 1,º ano disse: «(…) será que esta questão justifica uma deslocação ao gabinete?» Ao que o professor responderia: «é exatamente aí que eu quero chegar». 
Um professor não é um mordomo intelectual ou um amigo a quem se pode ligar a qualquer hora (…) uma das coisas que os estudantes deveriam aprender na universidade é a depender de si mesmos, mas porque ir à procura se o professor só está a umas teclas de distância? 
O ensino deveria servir para libertar os alunos de tudo isto, e não para incentivar esses comportamentos. Por várias razões, entre as quais o risco de perder o emprego, os professores por vezes hesitam em assumir o controlo da situação."

4 comentários:

Alberto disse...

O absurdo a infiltrar-se, como um óleo negro e viscoso, por debaixo da porta dos gabinetes dos professores universitários. A indisciplina e violência que destruíram as escolas secundárias, transformadas à pressa em depósitos de alunos que os professores devem guardar enquanto os encarregados de educação estão a trabalhar, não augura nada de bom para o desenvolvimento do ensino universitário em Portugal. Se me pedirem para, numa palavra, caraterizar o empenho profissional da esmagadora maioria dos professores do ensino secundário, essa palavra é:
- DEMISSÃO.

Envio cumprimentos para todos os colegas em poli-docência!

Helena Damião disse...

Caro Alberto, num ambiente que se aproxima do distópico, que tende a distorcer o pensamento, precisamos de ideias fortes, capazes de nos servirem de guias. A propósito do que diz, recorro a Cécile Ladjali que, num livro assinado com George Steiner ("Elogio da transmissão: o professor e o aluno") diz: “os alunos merecem tudo menos a indiferença”. Um professor não se pode demitir, um director não pode deixar os professores demitirem-se... É preciso, isso sim, persistir na tarefa de educar. Cada professor sozinho, isolado não o consegue, mas os professores juntos conseguem-no. O que será do mundo se os professores se demitirem dessa tarefa? Esta questão dos mails, parecendo uma questão menor, é resultado de cedências várias que se tem feito em nome... de quê, exactamente? A "plataformização" da educação começa a ser objecto de estudo e os resultados são muito inquietantes... Precisamos de pensar... Cpms. MHDamião

Anónimo disse...

Cara Helena,
Concordo consigo. Respondo-lhe na esperança de que sejamos lidos por professores e governantes que ainda conservam um mínimo de inteligência e decoro que lhes permita reconhecer que a educação nas escolas secundárias vai ser submergida por orientações esquizofrénicas, como são as do "Projeto Maia", se não houver reação e união por parte dos professores.
Quando vejo fugas para a frente, como pretender que se tornam exequíveis medidas de avaliação inexequíveis, como sejam classificar cada um de 200 alunos, em cada uma das cem aulas, com 20 descritores diferentes, recorrendo simplesmente a sínteses do tipo "chapa 5", pré-fabricadas em computador, só para inglês ver o nosso sucesso democrático, económico e académico, tenho de concluir que algo vai muito mal no "Reino" de Portugal.

Com os melhores cumprimentos.

Helena Damião disse...

Prezado Leitor Anónimo. Faço minhas as suas palavras: tal como muitos, escrevo na esperança de que professores, directores e, até, governantes e pais, enfim, aqueles que, por serem adultos educados cabe, a responsabilidade de educar os mais jovens. O registo tem de ser o da verdade, pelo menos a verdade que conseguimos alcançar. Ora, a verdade apaga-se quando entra a demagogia. Como bem sabemos, esta seduz e conduz... E não é apenas no ensino secundário, é também no ensino básico e no superior. E não é só em Portugal. O problema da educação é de proporções planetárias. Cumprimentos, MHDamião

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