Meu artigo no último JL:
As expressões “idade das trevas”
ou “noite de dez séculos” são hoje reconhecidamente desajustadas para designar
a Idade Média. A primeira surgiu logo no início do século XIV, quando Petrarca
quis contrastar a Antiguidade Clássica com o tempo após a queda do Império
Romano do Ocidente. No século XVI, o cardeal César Barónio, historiador da
Igreja Católica, usou o termo saeculum
obscurum para designar os tempos da transição do primeiro para o segundo
milénio, dos quais havia muito poucos documentos. No Iluminismo, o uso dessas
expressões e outras aparentadas acentuou-se, na clara tentava de contrastar os
tempos pós-renascentistas com aqueles que os antecederam: a «Idade da Razão» devia
contrastar com a «Idade da Fé». O Romantismo veio, porém, de várias maneiras
reabilitar o tempo medieval, cultivando temas e enaltecendo pessoas dessa
época.
A historiografia evita hoje esse
tipo de expressões uma vez que são mais bem conhecidas as «luzes» da Idade
Média. Essa atitude extravasou para o dia-a-dia: há até polémicas recentes na
política por causa do uso da palavra «medieval» como sinónimo de «bárbaro». De
facto, o tempo medieval legou-nos uma extraordinária instituição que perdura: a
universidade. E legou-nos tecnologias como os óculos e os relógios mecânicos. Além
disso, foi na Idade Média que, através da intermediação árabe e dos monges
copistas, que se transmitiram os preciosos saberes da Antiguidade.
O historiador inglês Seb Falk, jovem
professor de História da Ciência na Universidade
de Cambridge, publicou na Penguin no ano passado um livro que no original se intitula
The Light Ages. A Medieval Journey of Discovery. O livro, a primeira
obra do autor, muito bem acolhido pela crítica e pelo público, acaba de sair entre
nós na Bertrand Editora, em tradução de Elsa T. S. Vieira intitulada A Idade
Média. A Verdadeira Idade das Luzes. O autor apresenta a vida e a obra de
um obscuro monge beneditino inglês, John Westwyk (c. 1350 - c. 1400), que viveu
na imponente Abadia de St. Albans, a uns 30 km a noroeste de Londres. Westwyk
foi matemático, astrónomo, instrumentista e, embora a expedição tenha falhado,
um cruzado. Apesar da falta de documentação sobre o biografado, Falk conseguiu
escrever um livro de 471 páginas, que se lê como um romance e que serve, mais
do que para apresentar o personagem, para apresentar a ciência medieval.
Havia ciência no século XIV? A palavra
latina scientia significa conhecimento, que obviamente existia. O rei D.
Dinis, com Scientiae Thesaurus Mirabilis («O
maravilhoso tesouro da ciência»), o documento de 1290 que criou a Universidade
de Coimbra (estabelecida em Lisboa), pretendia reforçar o conhecimento no nosso
país. Não existia ainda o termo «cientista» para designar aquele que pratica
a ciência usando o método científico, pois esse termo só foi cunhado no século
XIX. O monge inglês, não sendo um cientista no sentido actual, procurava o
conhecimento com os meios à sua disposição, fazendo avançar a ciência da sua
época. A sua obra maior, escrita em inglês arcaico, intitulada The Equatorie of the Planetis. Descreve
o equatorial, um instrumento que permite determinar as posições dos
astros sem fazer cálculos. O livro de Falk começa com a fascinante história da descoberta
desse manuscrito, o MS-75. O físico e historiador de ciência Derek de Solla Price
consultou, nos anos 1950, na biblioteca medieval da Peterhouse, o colégio mais
antigo de Cambridge (a Universidade de Cambridge remonta a 1209), o MS-75,
tendo nele identificado o nome de
Chaucer. Julgou, com alvoroço, estar na presença de um segundo trabalho científico
do escritor inglês Geoffrey Chaucer (c. 1343 – 1400), considerado o maior antes
de Shakespeare: é o autor dos Canterbury Tales, que inaugura a
literatura inglesa. Ora, mostrando que ciência e literatura não são incompatíveis,
Chaucer é também o autor do A Treatise on the Astrolabe, um manual de
instruções do astrolábio, instrumento para medir a altura dos astros que remonta
aos antigos gregos, foi melhorado pelos árabes, e que os portugueses adaptaram no
tempo dos Descobrimentos para o uso em alto mar. Chaucer descreveu, em inglês e
não em latim, o modo de usar um astrolábio. Price, que haveria de emigrar para os
Estados Unidos para ser professor na Universidade de Yale, estava equivocado. Em
2014, a historiadora norueguesa Kari Anne Rand concluiu, por comparação caligráfica,
que o MS-75 era afinal da autoria de Westwyk.
Seb Falk, que foi nomeado pela BBC New Generation Thinker,
tem uma enorme domínio da matemática e a astronomia medievais, incluindo o uso
de astrolábios e equatoriais. Além disso, é velejador e montanhista, sabendo
orientar-se pelas estrelas. É ainda corredor de maratona. E sabe escrever, como
mostra este trecho do seu livro: «Na viagem de Westwyk pela ciência medieval, conheceremos
um elenco de personagens fascinantes, nenhum dos quais é um nome famoso. O
judeu espanhol convertido ao cristianismo que ensinou tudo sobre eclipses a um monge
lotaríngio em Worcestershire; o abade relojoeiro inglês com lepra; o artesão francês
transformado em espião; o polímata persa que fundou o observatório mais
avançado do mundo. A ciência medieval era um empreendimento internacional, tal
como a ciência de hoje (…). As crenças religiosas estimularam a investigação cientifica,
mas as pessoas profundamente devotas não tinham qualquer problema em adoptar teorias
de outras fés.» Esta posição contrasta com outra, baseada no julgamento de Galileu
pela Inquisição e mais corrente, segundo a qual o poder da razão contraria o poder
da fé. De facto, o sábio pisano tinha na sua cabeça a razão em bom equilíbrio com
a fé. Disse ele que «o Espírito ensina como ir para o Céu e não como é o céu».
Este livro colocará o leitor em
plena Idade Média, a fazer ciência com o monge beneditino. Aprenderá contar
pelos dedos até 9999 e a fazer horóscopos. De facto, a ciência ainda não
dispunha do método que tanto poder lhe deu, mas já era uma prática partilhada
baseada no contacto estreito com a realidade.
3 comentários:
Professor em Inglaterra, o historiador francês Jean Gimpel escreveu em 1977 'A Revolução Industrial da Idade Média', onde conta uma série de descobertas tecnológicas inglesas desse período, de uso muito prático, umas aceites e desenvolvidas, outras não.
Obrigado pela referência, que não conhecia...
A história sendo desvendada ao poucos. Excelente matéria.
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