terça-feira, 22 de maio de 2018

"A MORTE DA PRIVACIDADE"

Encontrei um artigo intitulado "A morte da privacidade", escrito por Alex Preston e publicado no The Guardian (online), há quase quatro anos. Mantendo a sua actualidade e profundidade de análise, merece ser lido.

O resumo é este:
O Google sabe o que você procura, o Facebook sabe o que você gosta. A partilha é a norma e o sigilo é desrespeitado. Quais são as consequências psicológicas e culturais do fim da privacidade?
Eis algumas ideias fortes:
Chegámos ao fim da privacidade, as nossas vidas privadas, ao contrário das vidas privadas dos nossos avós, passaram para o domínio da vergonha e do segredo. 
Através das muitas pequenas concessões que fomos fazendo, destruímos direitos e privilégios pelos quais gerações anteriores lutaram, minando, assim, as bases da nossa personalidade. 
Chegámos a um ponto em que a maioria de nós aceita que as interacções sociais, financeiras e, até, sexuais tenham lugar na internet e que alguém, em algum lugar, assista. Na verdade, tudo o que fazemos aí é impulsionado por fórmulas matemáticas complexas, que são invisíveis e misteriosas. 
Quando tomamos alguma consciência disto, sentimos uma nova forma de inquietação: estamos a ser investigados, processados e manipulados por uma inteligência artificial que tem por trás a inteligência humana.
Um exemplo é o projecto DRIP (Retenção de Dados e Investigações) no Reino Unido, que obriga as empresas que recolhem informações dos seus clientes a rete-las e armazená-las, podendo a polícia e o governo solicitá-las.  
Em geral, a começamos por observar horrorizados este tipo de iniciativas, mas depressa passamos ao cinismo, pois temos ideia de que qualquer protesto da nossa parte será inútil. 
Devemos perguntar: qual é o impacto pessoal e psicológico dessa perda de privacidade? Que protecção legal é oferecida a quem deseja defendê-la? Talvez seja, porém, tarde demais para fazer tal pergunta, pois chegámos a um momento em que o nosso quotidiano ultrapassou a ficção, ultrapassou as distopias, ultrapassou o "e, se...". 
Recordemos, Yevgeny Zamyatin que concebeu, no seu romance We, de 1921um "one state", uma sociedade transparente sem privacidade. Seguem-se Orwell, Huxley, Bradbury, Atwood e outros que elegeram a usurpação da privacidade como um dos principais "ingredientes" do futuro totalitário. O romance The Circlede Dave Eggers publicado em 2013, pinta o retrato de uma América sem privacidade: um império, assente na internet, pesquisa e controla a vida de todos, confiando na adesão ao seu lema: "segredos são mentiras, compartilhar é cuidar e privacidade é roubo". A heroína acaba por se desintegrar sob a pressão do escrutínio, tornando-se uma das hordas obedientes e sem rosto. Um outro romance recente - Meatspace, de Nikesh Shukla, publicado em 2014 - que explora a fusão das esferas do privado e do público, começa com as seguintes palavras da personagem principal, um escritor solitário cuja única ligação ao mundo é a internet: "a primeira e última coisa que faço todos os dias é ver o que estranhos estão dizendo sobre mim". 
O nosso pensamento social, vai no sentido de julgar como suspeita qualquer coisa que se mantenha longe do olhar público, de modo que, pelo menos alguns de nós, não querendo ser vistos como suspeitos, aceitam "partilhar" o que é privado.
Mas talvez haja uma razão mais importante que nos leva a ceder a essa "partilha", que não sejamos propriamente, como alguns defendem, dóceis  ou ignorantes, incapazes de ver a complexa teia de interesses - sobretudo comerciais - que nos enredam; talvez seja porque entendemos perfeitamente a transacção que está em jogo. Ou seja, queremos manter a internet gratuita e sabemos que as empresas ganham dinheiro com algo que estamos dispostos a dar em troca, a nossa privacidade. Trocamos a privacidade pela riqueza de informações que a internet nos oferece, pela conveniência das compras on-line, pela aldeia global dos media. 
Essa troca leva-nos a aceitar o efeito normalizador da vigilância. Há uma auto-verificação do nosso comportamento quando sabemos que estamos a ser vigiados. É o "panóptico" de Jeremy Bentham, o modelo para as prisões onde um só guarda pode observar uma prisão inteira, não importava se está ou não a observar, a mera possibilidade de estar é suficiente para garantir o cumprimento da norma. 
É neste ponto que nos encontramos, sob uma vigilância que pode parecer benigna, mas que denota um poder sombrio e controlador sobre todos. 
A mensagem subliminar que passa é que se queremos mesmo manter algo privado, devemos tratá-lo como um segredo, mas de um modo semelhante ao que a personagem do livro "1984", Winston Smith, fez: "Se quiser manter um segredo, deve escondê-lo de si mesmo ". 
Aqui reside o maior risco de invasão da privacidade, desvalorizado por aqueles que aceitam alegremente os tentáculos da corporação  empresas-media-estados. Don DeLillo, no seu livro de 2010, Point Omega, diz: "você precisa saber de coisas sobre si que os outros não sabem. É o que ninguém sabe sobre você que permite que você se conheça". 
Negando o acesso ao nosso mundo interior, desistimos daquilo que nos eleva acima da mera sobrevivência, daquilo que nos torna humanos. 
Josh Cohen explica por que precisamos de privacidade na nossa vida: "precisamente porque a privacidade garante que nunca somos totalmente conhecidos pelos outros ou por nós mesmos, a privacidade constitui um abrigo para a liberdade, a imaginação, a curiosidade e a auto-reflexão. Portanto, defender o eu privado é defender a própria possibilidade de vida criativa e significativa".

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

A Helena Damião teima, e faz muito bem, em trazer à liça um problema de suma importância para cada um de nós, tanto mais importante quanto mais inócuo se faz sentir, e não é por acaso que a privacidade é tão mal entendida e tão mal tratada. Não vou pensar na segurança e nos interesses policiais. Limitar-me-ei a considerar que a minha privacidade é um reduto interdito, sobretudo, às polícias. Diria até que é o oposto, sabendo nós que as "polícias" não são apenas os agentes de segurança e da ordem pública investidos da autoridade do Estado.
A privacidade é incompatível com os "guardiões".
E não estou a pensar na criminalidade, que deve ser prevenida e combatida.
Estou a pensar na saúde mental, na liberdade de pensamento, de criatividade e de significado, do significado atingido livremente, não do significado infiltrado, hospedado à força no cardápio das nossas alternativas.
Esta sensação de falta de mundo e de espaço para respirar outro ar que não seja o da vigilância, sobretudo quando perpetrada pelos alvos inelutáveis do nosso ódio, acaba por viciar também os comportamentos, sobretudo os de maior visibilidade, que se tornam à medida, ou seja, o próprio processo de invasão e controlo da privacidade subverte-se ao ponto de o privado ser também uma máscara. E cada vez se torna mais pública e convencional a ideia de que o que é visível pode ser a melhor forma de invisibilidade.
Até porque não queremos ser olhados do modo que os outros escolhem, ou não gostamos do modo como somos olhados, ou de quem nos olha/observa, independentemente da finalidade, temos o direito de odiar, recusar e rejeitar o "mau olhado".
De resto, no inferno da nossa privacidade só entram almas danadas e não se constroem paraísos onde possa entrar quem nós não quisermos.

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