terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

EDUCAÇÃO, A PROVA E A CONTRAPROVA

Versão mais completa do artigo de Guilherme Valente que saiu hoje no Público:

  A qualidade que na vida me foi mais útil foi ser um bom aluno. Como dizia o presidente Wilson quando liderava a universidade de Princeton, a escola não serve para fazer os alunos felizes, mas, acrescento eu, para fornecer instrumentos de felicidade. 

João Lobo Antunes, Autobiografia, a publicar.


O governo Nuno Crato/Passos Coelho foi marcante na Educação, no plano nacional e internacional. E voltará a ser notícia quando se realizar o próximo TIMSS, mas por razões inversas, infelizmente.

 Apesar de restrita e breve traduziu-se em resultados excelentes. No plano internacional, os alunos portugueses ficaram bem acima da média dos alunos dos países da OCDE. Portugal ultrapassou mesmo países com uma história de excelência educativa, como se verificou em relação à Matemática do 4. ano no caso da Finlândia. Com países como a Espanha, a França, o Reino Unido e o Brasil a querem conhecer as medidas que tomámos.

 A prestação portuguesa tornou também claro, pelo contraste das soluções adoptadas, como mesmo nos países de elevado nível de instrução, forte pressão social sobre a escola e empenho das famílias no estudo dos filhos os resultados pioram rapidamente logo que abranda a exigência e se reduz a avaliação. Como aconteceu na Finlândia.

É errada a ideia de que a educação dos filhos melhora automaticamente com o aumento da escolarização dos pais, seja qual for a qualidade e a exigência da escola. Desde logo porque nada substitui um ensino estruturado num currículo. Errada hoje especificamente porque as gerações de pais (e professores) nascidas com os anos 70 foram já elas alunas da anti-escola do eduquês.

 Na França, de onde as teorias e práticas assassinas da nossa escola foram importadas (mas também entre nós pois a época foi propícia para o efeito), muitos desses pais e professores foram mesmo filhos e alunos de pais e de professores que na sequência de Maio de 68 renunciaram à sua responsabilidade de adultos. Com a justificação de tornarem os filhos mais livres e criativos, deixaram de impor regras e códigos de exigência, abdicaram de ser pais e mestres, abandonando as crianças e jovens "à sua criatividade natural". O que explicará também o facto das novas gerações de professores aceitarem tão docilmente que lhes retirassem o estatuto inestimável de transmissores e representantes do conhecimento, da cultura e da civilização.

 Como nota a filósofa B. Levet* tornava-se então moda o tratamento por tu dos pais, sem que o corrigissem. Prática que é sintoma "duma denegação dos papéis institucionais. Os pais passaram a não quererem ser representantes de nada nem de ninguém, família, costumes, valores, instituição ou civilização". Como escreveu premonitoriamente Hannah Arendt, "É como se todos os dias dissessem aos filhos [...] estamos inocentes, lavamos as mãos relativamente ao que vos possa acontecer".

Confundindo autoridade com autoritarismo, os adultos recusaram assumir o seu papel de pais e professores. Entrava-se no tempo das justificações, rejeitando-se a responsabilidade de educar. Os pais passaram a querer essencialmente a aprovação dos filhos, a não os contrariar, a imitarem-nos mesmo nos costumes. Nunca envelhecer, gritava-se no Maio de 68. E os professores passaram a sobrevalorizar os trabalhos e as provas escolares, para terem a simpatia e não ferirem a auto-estima dos alunos (como me disse um Presidente dum Politécnico). Rousseau, sempre ele, queria que fossemos amigos das crianças. Ora, é mais fácil ser-se amigo do que pai. Era a escola "centrada no aluno", slogan que iludiu muitos, por se supor que queria dizer "escola ao serviço do aluno", como obviamente tem de estar. Mas não, o que queria dizer era "o aluno a mandar na escola". E foi isso que se fez entre nós, até ao crime de terem querido pôr crianças do Básico nos Conselhos Directivos e miúdos a decidirem o que queriam "aprender". O sistema educativo deve estar centrado na instrução, no conhecimento, na cultura.

 E a moda enraizou-se nos anos oitenta e foi contaminando mesmo as classes sociais mais desfavorecidas. Com a concomitante proclamação relativista de que tudo era cultura, ao mesmo tempo que se desvalorizava, nomeadamente, a grande literatura, numa confusão e contaminação entre o que contribui para a formação do espírito, para o alargar o exercício do pensamento, para o aprofundamento da sensibilidade, isto é, entre a concepção humanista de cultura e a acepção etnológica da palavra.

 "Dessa escola dita "progressista" não resultou a orgia criativa que badalaram, mas pelo contrário, seres desligados, não livres, privados da interioridade que define uma personalidade, encarcerados na prisão do presente, votados, por isso, ao conformismo, submetidos à tirania da opinião, desarmados intelectual e espiritualmente, "marias vão com as outras", sem cultura nem raízes, bárbaros dóceis, condenados a ser consumidores ou 'turistas da existência". Tal como escreve Bérenice Levet e eu antecipei há muitos anos**. Uma verdadeira catástrofe antropológica, como crescentemente estamos a assistir.

Por tudo isto o desafio de transformação e progresso social e humano deve centrar-se na escola hoje mais do que nunca. A esperança é poder-se passar a dizer, "Casa de filhos escola de pais".

 O acerto provadíssimo da experiência de mudança protagonizada por Nuno Crato, que ficará na História, à qual me sinto ligado por a ter proposto e defendido desde há muito tempo com persistência, irá ser de novo provado quando, com o próximo TIMSS, se verificar, infelizmente, que os resultados dos alunos portugueses regrediram. Bastará o fim do exame vital do quarto ano de escolaridade e o fim da mais que imperativa selecção de professores para mais de 30% das crianças voltarem a terminar o Básico sem terem aprendido... o básico, ler, escrever e contar.

Se os pais e o País não tiverem a lucidez e a coragem de se opor ao regresso imperdoável em curso dessa "escola" do vazio educativo deliberado, os maus resultados irão, pois, rapidamente revelar-se... se, entretanto, a sua divulgação não for impedida ou não acabarem com as avaliações a sério. Como seguramente vão tentar fazer. Será, então, a contraprova.

Mas para os promotores da "escola" do vazio e da demissão educativa não há prova de realidade que os convença e demova. Vivem no mundo da ideologia cega, ódio ao conhecimento, à ciência, à cultura . Mundo sem factos nem verdade para ser procurada. A sua "realidade", essa, é mesmo uma construção ideológica e social. 

Guilherme Valente

 * Le crépuscule des idoles "progressistes", Paris, Stock, 2016.

 ** Os Anos Devastadores do Eduquês, Presença, 2012.

4 comentários:

António Pedro Pereira disse...

Estamos, de facto, no reino da pós-verdade, dos factos alternativos, no reino do vale tudo.
Disse este senhor Guilherme Valente: «O governo Nuno Crato/Passos Coelho foi marcante na Educação, no plano nacional e internacional. E voltará a ser notícia quando se realizar o próximo TIMMS, mas por razões inversas, infelizmente. Apesar de restrita e breve traduziu-se em resultados excelentes.»
(O bom senso, nem que seja na versão João Pinto, antigo jogador do Futebol Clube do Porto, que dizia que prognósticos só no final do jogo, é sempre bom conselheiro. É isso que devemos fazer, esperar pelo final do jogo se não queremos confundir os desejos com a realidade, o que, normalmente, dá asneira grossa).
Atribuir os resultados destes dois testes mais recentes (PISA e TIMMS) à acção (pelos vistos, única e exclusiva) deste ministro e deste governo (Crato / Passos & Portas) é de uma desonestidade intelectual sem limites.
Desonestidade intelectual a que este senhor Guilherme Valente já nos habituou desde há muito tempo, com os seus escritos catastrofistas sobre a ignorância que a escola vem espalhando desde a Reforma de Veiga Simão, no início dos anos 70, portanto, nada que nos espante.
Como sabemos, até aí é que a Educação caminhava sobre rodas: dávamos cartas a enviar concidadãos para a Europa, minas de carvão na Bélgica, Agricultura e construção civil na França, metalurgia na Alemanha, etc., limpeza doméstica em todos esses.
Depois, para agravar as coisas e não sermos só nós a pôr à frente de (e criar) centenas de empresas portuguesas com elevada incorporação de tecnologia (start up e outras empresas tecnológicas), analfabetos ou, no mínimo, ignorantes, passámos a espalhar esses iletrados e ignorantes por todo o mundo.
Para concluir, o mundo, e, especialmente, os responsáveis parolos de países como a Alemanha, Inglaterra, Noruega, Suíça, EUA, etc., para onde, desde há pelo menos duas décadas, têm ido milhares de diplomados portugueses (engenheiros e outros licenciados, mestrados e doutorados), que se cuidem.
O mundo está a tornar-se um lugar muito perigoso desde a Reforma Veiga Simão e da generalização do eduquês, que devastou a escola portuguesa.
Este homem já devia ter ganho o Nobel da falta de vergonha (mas tem de ser criado primeiro): deixo a sugestão à atenção do Comité Nobel.

Anónimo disse...

Mas há o Prémio Ig-Nobel.

Anónimo disse...

"E voltará a ser notícia quando se realizar o próximo TIMMS, mas por razões inversas, infelizmente. Apesar de restrita e breve traduziu-se em resultados excelentes."
Isto é adivinhar o futuro. Cuidado Dr Valente, prognósticos só no fim do jogo, como diz o outro (que é muito mais inteligente e prudente).
Ana

marina disse...

Muito bom artigo. A citação do inicio " a escola serve para fornecer instrumentos de felicidade " e , acrescento eu , que é da dusciplina e exigência que nasce a liberdade , só compreendemos mais tarde na vida , mas é bem verdade.

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