domingo, 27 de dezembro de 2015

Ciência e Liberdade


Meu artigo no volume sobre a Liberdade, que documenta o Encontro sob o mesmo título organizado em Lisboa em 2014 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos:

A ciência, por se basear na existência de uma comunidade, precisa de liberdade como de pão para a boca. Sem a possibilidade de livre expressão do pensamento e de livre circulação de ideias, que, por sua vez, exige livre circulação de pessoas e bens, a ciência não pode florescer. Esta condição começou logo a despontar na época da Revolução Científica, quando o italiano Galileu Galilei foi réu no Tribunal do Santo Ofício por afirmar, contra a autoridade da palavra bíblica, que é a Terra a mover-se e não o Sol. Verdadeira ou não, a expressão “e pur si muove!” significa simplesmente que as concepções científicas não podem ser reprimidas. De uma forma ou de outra acabam por se impor.

No século das Luzes assistiu-se ao triunfo da razão. A fonte de onde brotava a  ciência deveria também inspirar a organização da sociedade humana. Por isso, talvez não tenha um acaso que os pais da grande nação americana tivessem uma forte relação com a ciência. O norte-americano Thomas Jefferson, que no dia da independência do seu país não deixou de fazer as suas regulares observações meteorológicas, revelou: “A ciência é a minha paixão, a política o meu dever”. O escritor, também norte-americano, Timothy Ferris, no seu livro Ciência e Liberdade. Democracia, Razão e Leis da Natureza (edição portuguesa de 2013 como n.º 200 da colecção Ciência Aberta da Gradiva), enfatiza as relações entre a democracia e a ciência. Segundo ele, a ciência só pode desenvolver-se em regimes democráticos porque:

1) A ciência é “inerentemente antiautoritária tal como a democracia (ao contrário do que por vezes se julga, em ciência não existem autoridades, mas sim especialistas, pois apenas à realidade se reconhece autoridade para escolher entre hipóteses rivais).

2) A ciência e a democracia auto-corrigem-se (segundo o filósofo austríaco Karl Popper, também a democracia contém em si a possibilidade de emendar erros, sendo estes obviamente diferentes dos erros científicos).

3) A ciência tem de se valer de todos recursos intelectuais à sua disposição”, o que significa que beneficia do facto de que em democracia, todos, pelo menos em princípio, têm acesso aos benefícios da educação.

4) A ciência é poderosa (já Francis Bacon, um filósofo contemporâneo de Galileu, dizia que “knowledge is power”) e a democracia permite que esse poder seja partilhado pelo maior número possível de cidadãos.

5) Por último, a ciência é uma actividade social, isto é, não depende de um só indivíduo ou de poucos indivíduos, sendo o diálogo entre os membros da comunidade científica apenas possível se não forem erguidas barreiras entre eles. Por outro lado, também não podem ser erguidas barreiras entre ciência e sociedade, entre os criadores de ciência e os seus beneficiários.

Esta relação simbiótica entre ciência e liberdade é corroborada, segundo Ferris, pelo facto de que as primeiras democracias surgiram nos “Estados em que a ciência e a tecnologia estavam mais avançadas – Inglaterra, Estados Unidos e Países Baixos e (mais irregularmente) França, Itália e Alemanha”.

A democracia verificou que a ciência lhe servia e, do mesmo modo, a ciência verificou que a democracia lhe servia, pelo que as duas se tornaram inseparáveis. Na expressão daquele autor “de um modo geral, a ciência prosperou em sociedades livres e deu-se mal com governos despóticos”.

Os exemplos da ciência alemã nos tempos de Hitler (que, na medicina, conduziu a hediondas experiências com seres humanos em campos de concentração) e da ciência de Lysenko na era de Estaline (que contrariava a biologia mais avançada da época)  devem chegar para validar a tese da aversão entre a ciência e os regimes totalitários. Ainda hoje, observamos o maior progresso científico e tecnológico, com consequências extraordinárias no desenvolvimento económico e social, nos países onde a democracia – e, portanto, a liberdade – está mais enraizada, enquanto vemos o menor progresso nos países onde existe défice democrático.

Como estamos , em Portugal, quanto à relação entre ciência e liberdade?

De facto, a ciência, pese embora alguns bons exemplos pontuais, só ganhou quantidade e qualidade no nosso país após a Revolução de 25 de Abril de 1974. De então para cá, graças à integração de Portugal na União Europeia, a ciência cresceu de um modo sem precedentes, reforçando disciplinas mais tradicionais, como as ciências exactas e naturais, e inaugurando disciplinas menos implantadas ou mesmo inexistentes, como algumas ciências sociais e humanas.

Modernamente, as ciências sociais e humanas, que por vezes se alimentam dos métodos das ciências exactas e naturais, são consideradas um meio auxiliar precioso para o funcionamento da democracia. Elas permitem, por exemplo, procurar respostas a questões sobre a organização da sociedade, incluindo domínios como a economia, a justiça, a educação, etc.


Tal como a democracia, a ciência é uma procura incessante.

3 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

A democracia é frágil e indefesa, porque não a deixam ser. Há sempre mecanismos (democráticos/anti-democráticos) que se apressam a neutralizá-la e, inclusive, a prevalecer-se dela para lograrem fins particulares, mais ou menos corporativos. Mas onde ela é manifestamente incipiente é perante a adversidade e a crise e o conflito. Rende-se completamente ao medo, ao dinheiro, às armas...Uma ameaça de guerra, uma bancarrota, uma guerra, rapidamente metem a democracia e os direitos humanos numa urna dos nazis...

Anónimo disse...

Onde é que está escrito na Bíblia que o sol se move em torno da terra ?...ou foi falta de atenção ou é de uma desonestidade total o texto acima.

Anónimo disse...

Há uma passagem em que, durante uma batalha, os guerreiros pedem ao Sol que pare de girar durante algum tempo, e o Sol "pára" (não a Terra, mas sim explicitamente o Sol). Essa é a passagem mais óbvia, creio eu. Mas talvez seja um problema de tradução... O que lhe parece?

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