domingo, 26 de janeiro de 2014

Guilherme Valente: A cabeça vazia é a oficina do diabo

Artigo de opinião de Guilherme Valente saído há dias no Público:
1. O “eduquês” foi retirando a Literatura dos programas trocando-a por textos banais ou iletrados. O ministro tenta agora promover a sua alteração, preparando também, parece, a reformulação dos cursos de formação de docentes, nos quais, regra geral, os futuros professores não são preparados para poderem ensinar o que deve ser aprendido nas escolas.
E a Literatura não está realmente nesses cursos. Se é aflorada é apenas através dos manuais, a melhor maneira de a matar.
Repare-se no círculo vicioso: os alunos terminam o secundário sem terem um verdadeiro convívio com a Literatura (nem hábitos de leitura). Entram, depois, nos cursos de formação de docentes, em que aquele convívio não é exigido. E seguem para as escolas para ensinar o que não aprenderam. O mesmo acontece com as outras matérias essenciais.
Ora, pensaram que o ministro, cercado, não conseguiria mudar nada, mas ele está a tentar mudar e por isso se agitam.
O ideário e a pedagogia do “eduquês”, como a ironia de MEB revela, desvaloriza a Literatura, tal como outras áreas fundamentais do conhecimento.
Mas só quem nunca leu pode negar, realmente, o valor do texto literário. E a escola pública é a oportunidade para todas as crianças acederem a essa manifestação superior da experiência humana. A Literatura deve estar de várias maneiras nos programas, com os textos próprios, nos momentos próprios, levada por professores que tenham experimentado o seu valor. Desde logo na formação dos professores do básico, porque sendo aí que começa a manifestar-se a desvantagem de muitas crianças é aí que ela tem de começar a ser enfrentada.
Não grita tanto o “eduquês” por inclusão? Seria útil explicarem que espécie de inclusão é essa por que gritam. Também para MEB, porventura, pois enquanto há vida há esperança, mais ainda quando se trata duma Brederode.
2. Não desvalorizei o PIRLS e o TIMMS, nem instrumentalizei os resultados. Procurei distingui-los e contestar a interpretação falaciosa que tem sido feita deles.
Só a verdade permite a mudança. Precisamos de assumir, portanto, que o progresso revelado não é, infelizmente, suficiente, nem significativo.
Tantos anos depois de se abrir a escola a todas as crianças, com tantos recursos despendidos, aquilo que foi conseguido, muito longe do necessário e do possível (veja-se o sucesso da Irlanda e da Coreia do Sul, p.e.), é a prova do erro da receita aplicada.
Cresci no tempo em que o ensino público que havia era muito melhor do que o privado. A inversão gritante, mas evitável, dessa realidade, é tanto mais grave quanto o ensino passou a ser, finalmente, para todos. Inversão que não foi obra do actual ministro.
A prioridade, com todos os recursos, só pode ser, por isso, a construção duma rede de ensino público de grande qualidade. Reciclando, seleccionando (por necessidade e justiça), formando e atraindo os melhores, mais vocacionados, professores. Também por não ser legítimo prometer a todos o emprego que não haverá.
E por isso me chocou tanto a ideia, abstrusa, deslocada, do "cheque ensino". Não pode ter sido de Nuno Crato. Num país em que é tão difícil promover a mais simples e imperiosa alteração, pareceu provocação ou é outra cegueira, agora de sinal contrário. O ministro deve explicar bem essa história.
Em Portugal não resolveria nada. Nos EUA a diferença de qualidade entre escolas é enorme. Ao contrário do que se verifica em Portugal, sem diferenças significativas, em que todas precisam é de melhorar muito. É essa a maneira de resolver a imperiosa exigência de todos poderem frequentar a melhor escola.
Para isso o que precisamos é de soluções pioneiras eficazes, informadas pelas melhores experiências estrangeiras, mas pensadas para a nossa realidade concreta.
Quanto ao título O Advogado do Diabo, picardia bem achada de MEB, não espelha o espírito do meu texto. Partilho com Nuno Crato ideias essenciais sobre a educação e subscrevo medidas certíssimas que tenta concretizar, em matéria de programas, valorização das avaliações e selecção dos candidatos à docência, designadamente, mas nem sempre me identifico com a forma e o modo adoptados. E espero outras, mesmo a imaginação de soluções que sem prejudicarem o que deve ser feito enfrentem a situação dramática de tantos professores.
Curioso é que esse título do diabo me tenha recordado um provérbio que exprime, afinal, a razão destes anos de combate: “As cabeças vazias são a oficina do diabo”. Foi contra esse esvaziamento das cabeças que lutei, pagando com gosto o preço desse combate. Porque se a liberdade significa alguma coisa, é “o direito de dizer aos outros o que eles não querem ouvir”. Sobretudo aos que têm poder, que deviam saber e querer governar bem, a doce e bem-amada Terra em que nasci.

2 comentários:

Rui Baptista disse...








Saúdo o Dr. Guilherme Valente pela coragem em "dizer aos outros o que eles não querem ouvir". Oiçam a sua voz de combatente de uma só cruzada por um ensino de qualidade, do básico ao superior.Um ensino superior em que, como li em tempos, não seja simples ensino liceal superior passando burocraticamente graus académicos de pechisbeque..

Rui Baptista disse...

Errata: Na 3.ª linha do meu comentário, substituir "em que" por "que", "tout court".

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...