domingo, 8 de setembro de 2013

Nem naturalismo nem pessimismo antropológico


“A educação é a acção consciente e continuada 
sobre a plasticidade humana que se dirige 
à formação do homem.” 
Jonas Cohn

Esta definição de educação citada por J.M.Quintana Cabanas (1988, 51), fixa como elemento fundamental do eidos educativo o seu carácter teleológico. Constituindo uma actividade intencional, a educação não pode exercer-se de forma gratuita nem ser neutra: orienta-se por um projecto perfectivo. Projecto esse que se constitui a partir de finalidades mais ou menos explícitas, mais ou menos concretizáveis, num compromisso entre o ideal e o real. A educação incide sobre a pessoa, tal como é, com os seus determinismos biológicos, psicológicos, culturais, mas tem subjacente um normativo axiológico que subentende uma certa concepção antropológica e um certo modelo utópico de sociedade.

Na reflexão filosófica uma questão que, desde logo, emerge como fundamental é a que se prende com o binómio natureza/cultura.

A tendência naturalista tem marcado várias correntes pedagógicas que, se bem que distintas, comungam no pressuposto de que a natureza humana é radicalmente boa, pelo que a educação deve, antes de mais, garantir a preservação das forças intrínsecas do educando. Na sua forma mais radical, tal como foi propugnado por Jean-Jacques Rousseau, o naturalismo pedagógico torna-se anti-cultural e conduz à não intervenção. É a designada “educação negativa”, defendida pelo autor de "Émile", que afirma: “seria necessário que não fizessem nada na alma da criança enquanto ela não tivesse adquirido todas as suas faculdades (…). Por conseguinte, a primeira educação deve ser puramente negativa. Consiste, não em ensinar a virtude e a verdade, mas em preservar o coração do vício e o espírito do erro (…). Exercitai o seu corpo, os seus orgãos, os seus sentidos, as suas forças, mas conservai a sua alma ociosa tanto tempo quanto puderdes” (Rousseau, 1990, vol I, 84).

Esta concepção denota uma desconfiança radical de toda a intervenção humana na educação. Admitindo que a criança dispõe dos valores certos e justos, nega-se qualquer protagonismo ao educador. Uma versão moderna deste não intervencionismo foi consagrada pela pedagogia libertária de A.S. Neill (1971) na escola de Summerhill. Assumindo como princípio o de que a criança é naturalmente boa e activa e que, deixada em liberdade, longe de toda a imposição coerciva dos adultos, desenvolverá plenamente as suas faculdades, o lema pedagógico de Neill era deixar os alunos optar pelo que queriam aprender.

De modo similar, a orientação não directiva de Carl Rogers comunga no mesmo pressuposto de que a natureza humana é radicalmente positiva e racional e que, só por contingências do meio ou da história do indivíduo, ele se desvia da sua propensão inata para o bem e para o lógico. Deste modo, a acção educativa deve promover no educando aquilo que naturalmente faz parte de si, consagrando os valores de autenticidade na relação empática que estabelece com os professores.

Menos radical do que esta “pedagogia da espontaneidade”, o designado "naturalismo científico" exerceu uma forte influência nas nossas concepções educativas no sentido em que reconhece a necessidade do suporte da Biologia, da Psicologia, da Sociologia para a reflexão pedagógica e para o conhecimento do educando, adaptando o ensino às suas capacidades e interesses.

De modo antinómico aos que preconizam estas variantes pedagógicas, há os que conceptualizam a educação como uma acção directiva, por vezes até coerciva sobre o educando. A cosmovisão judaico-cristã fala de um pecado original em que participa toda a humanidade.

Sigmund Freud (1920), de uma forma laica, teoriza esta dualidade de tendências, falando de Eros e Thanatos. A sua perspectiva é a de que a carga biológica que cada um transporta consigo fazem do indivíduo um ser basicamente afectivo e irracional que só gradualmente, e por imposição externa, aprenderá a controlar os seus impulsos que entram em conflito com as normas sociais e éticas.

Contemporaneamente, o filósofo Lain Entralgo falando deste mal radical que parece habitar o ser humano é obrigado a constatar que “na vida de um ente metafísicamente constituído pelo amor e para o amor existe o ódio. Porquê? Como é que a liberdade humana, tão essencialmente movida pelo amor pode ser odienta e odiosa? Talvez que, de um modo acidental e reparável, haja algo ferido e enfermo na própria natureza do homem. O homem é amor, mas amor de algum modo enfermo” (Laín Entralgo, 1961, 336 citado por J. M. Quintana Cabanas, 1988, 127).

Numa perspectiva que não se identifica propriamente com um pessimismo antropológico mas destaca o carácter incompleto, inacabado do ser humano, a educação surge como essencial para o processo de humanização, tal como Kant o reconhecia já, ao afirmar que “o homem é a única criatura que tem de ser educada” (E. Kant, 1983, 83).

É que o indivíduo nasce como ente biológico, e só pela educação se torna cultural. A educação, fazendo adquirir ao homem uma segunda natureza, desenvolve-lhe capacidades, inculca-lhe valores que são respostas culturais e não propriamente produtos espontâneos de uma evolução natural.

Neste sentido, se a antinomia natureza/cultura que tem atravessado o pensamento pedagógico ocidental se afigura fundamental para a axiologia educativa é porque, como é dado perceber, só é possível falar de uma educação para os valores, se rejeitando a tentação de um pessimismo antropológico que torna o homem inevitavelmente cúmplice e vítima da sua própria desgraça moral, repudiarmos igualmente o radicalismo de uma pedagogia naturalista, não intervencionista, que confia às forças espontâneas da criança a sua própria auto-direcção.

Concebendo, ab initio, a educação como uma necessidade do próprio indivíduo e um valor acrescido ao processo de humanização, poderemos abarcar melhor a extensão da problemática axiológica em pedagogia, reportando-a tanto à questão das finalidades como à das modalidades e conteúdos do processo educativo.

João Boavida

Quintana Cabanas, J. M. (1988). Teoria de la educación. Concepción antinómica de la educación. Madrid :  Dykinson.

2 comentários:

Luís Ferreira disse...

Caro João Boavida,

Sou sei leitor recorrente no livro que publicou junto com João Amado sobre a epistemologia das ciências da educação. E gosto de o ler.
Gostaria de fazer apenas um pequeno comentário: tenho pena de não ter desenvolvido o parágrafo que fala do "naturalismo científico". Isto porque é costume fazer-se a crítica dos pedagogos muito centrada na influência de Rousseau, deixando este "naturalismo científico", "menos radical", sem a devida avaliação na influência sobre os pedagogos. Ora, desde Thorndike (para não ir mais longe) até ao falecido Gagné (2002), passando pelo sempiternamente criticado e endeusado Piaget, o "naturalismo científico" nunca deixou de postular, moderadamente, a ideia de um desenvolvimento espontâneo da criança, na família, na cultura, antes e para além da escola.
Leria com muito gosto algumas linhas suas sobre o tema.
Cumprimentos.

João Boavida disse...

Caro Luís Ferreira

Acabo de ler o seu comentário, que agradeço. Agrade-me que goste de ler o livro "Ciências da Educação - epistemologia, identidade, perspetivas" (Imprensa da Universidade de Coimbra)que escrevi em parceria com João Amado. A nossa preocupação foi fazer um livro para uma formação de base (mas não elementar) para todos os que queiram iniciar-se nos temas da educação sem preconceitos nem arrogâncias (científicas ou anti-científicas). Procurámos dar uma ideia do que de científico, sociológico, cultural e filosófico está em jogo, e, portanto, do campo imenso e central que é e vai continuar a ser. Procuramos mostrar que é um domínio aberto à investigação e à reflexão, ou seja, em construção contínua. Mas, simultaneamente, foi nossa intenção propor uma teoria, coerente segundo pensamos, sobre o lugar e a função da educação no universo do conhecimento em geral, das ciências em particular e, obviamente, das atitudes e dos comportamentos. Objetivos excessivos, talvez, mas os problemas aí estão em aberto à espera de quem os pense e os debata. Como aquele que me coloca a partir do texto que leu.
Acabo de ler o seu comentário, como disse, mas penso que o seu texto merece um pouco mais do que «algumas linhas». Por isso lhe peço um pouco de paciência. Em breve voltarei ao tema a partir da sua nota. O comentário é sempre algo restritivo.

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