quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O aval do estado

O David opõe-se a que o estado dê o aval de legitimidade ao que os cientistas consideram cientificamente ilegítimo. Acerca disto eu penso duas coisas e ambas se opõem ao que pensa o David.

Primeiro, penso que é uma má ideia que aceitemos sem pestanejar que o estado passe certificados de legitimidade científica. Tal como era uma má ideia que no passado a igreja católica tivesse o poder de dar ou tirar um aval a uma ideia qualquer. A confusão do David aqui é pensar que no passado isso só era mau porque a igreja não passava os avais com base na ciência. Eu penso que o mal é haver avais únicos, que impedem sub-repticiamente a diversidade epistémica que, como a história nos ensina, é crucial para o desenvolvimento cognitivo da humanidade. E para haver diversidade epistémica, tem de haver erro, incluindo erro grotesco.

Segundo, penso que usar o poder de passar avais de legitimidade científica é incompatível com o ideal de uma sociedade em que as pessoas são mais autónomas intelectualmente e mais conhecedoras da ciência. Isto porque se as pessoas acreditarem em verdades científicas só porque estas têm o aval do estado, e não por compreenderem os seus fundamentos, não serão menos crédulas do que quem acredita no vidente da esquina. A cultura científica, que o David defende, é incompatível com a crença no que diz o David por ser ele a dizê-lo e por ele ter a autoridade do estado do seu lado.

Vale a pena acrescentar que a questão política de fundo é o facto de o David (como aliás quase todos os portugueses) ter uma concepção de estado diferente da minha. Do seu ponto de vista, compete ao estado, por meio dos seus avais e certificações, empurrar a sociedade numa dada direcção — na direcção que ele quer. Eu tenho uma concepção diferente: por meio dos seus avais e certificações, o estado tem por única função proteger terceiros e harmonizar conflitos de interesses, deixando a sociedade ir para um lado ou outro, consoante for essa a vontade de todas as pessoas que constituem a sociedade, e não apenas de quem tem a verdade científica do seu lado.

É defensável o género de paternalismo benevolente do estado que defende o David? Sim, claro. Acontece apenas que não conheço qualquer defesa que me pareça boa. O problema principal desta concepção de estado é que um estado que usa o seu poder para forçar delicadamente (ainda que não pela força das armas) as pessoas a aceitar certas práticas e ideias e rejeitar outras, está a impedir a própria autonomia mental que quer promover. Acreditar que a selecção natural é uma teoria verdadeira porque isso é o que está certificado pelo aval do estado é uma crendice tão tola quanto acreditar que é falsa porque é o que diz a Bíblia. Acreditar que as crianças índigo ou a homeopatia são crendices sem fundamento só porque não têm o aval do estado é uma crendice tão inane quanto acreditar que são verdadeiras porque eu gostaria que fossem verdadeiras e porque me fazem sentir bem.

Tal como o David, preocupa-me os níveis assustadores de crendice na nossa sociedade. Contudo, penso que 1) a melhor maneira de o combater não é com a força dos avais do estado, mas sim com a força da razão. E, pior ainda, penso que 2) mesmo que com a força dos avais do estado fosse possível acabar com as crendices, eu opor-me-ia porque isso viola o direito inalienável que elas têm de ser crédulas. É esta a nossa discordância. E não vale a pena insistir que aceitamos o direito de as pessoas serem crédulas, ao mesmo tempo que rejeitamos o aval do estado. Isso é exactamente o mesmo que fingir que aceitamos os homossexuais mas rejeitar o aval do estado — o casamento entre eles.

14 comentários:

Unknown disse...

O Desidério Murcho, persiste em alongar esta interminável discussão, que claramente já perdeu desde o instante em que se pôs contra a "ciência" e/ou do "estado", enquanto entidades que de um modo religioso são supostos sustentar e certificar "verdades", pouco importa questionar se a "ciência médica" ou o "estado", têm alguma capacidade, dever ou responsabilidade para certificar o que quer que seja, ou sequer se há qualquer racionalidade no assunto. Desidério Murcho correu o risco de ser herético e perdeu, o que lhe custa a crer e assim tenta vencer os seus opositores pela teimosia e, eventualmente pelo cansaço.

Desidério Murcho disse...

Não entendi o argumento.

joão viegas disse...

Ola,

Existe de facto uma confusão, não sei se no post do David Marçal, ou se na maneira como a posição deste é caracterizada neste ultimo post do Desidério.

O Estado não da, nem tem de dar, "aval" nenhum acerca da legitimidade cientifica de determinados conteudos. O Estado limita-se a decidir, podendo fazê-lo ocasionalmente em nome da legitimidade cientifica, a qual ou existe ou não existe (o que se afere pela discussão cientifica). Quando não existe, como é alegadamente o caso (e não vi o Desidério pôr isto em causa) é perfeitamente normal criticar-se a decisão do Estado, e mesmo pedir-lhe que retire a sua decisão e lhe substitua outra mais esclarecida.

O que eu percebo do post do David Marçal é que ele se opõe a duas decisões politicas (ou administrativas), porque ele considera que elas deviam assentar em pressupostos cientificos e porque, nos dois casos que ele menciona, elas não são suportadas por considerações com a minima legitimidade cientifica.

Isto é simples.

Pela parte que me toca, e sem que me passe pela cabeça pedir ao Estado qualquer tipo de sanção ou de medida a esse respeito, considero que os ultimos textos do Desidério carecem do rigor minimo para que mereça a pena discuti-los.

Que aqueles que pensam de outro modo façam bom proveito.

Boas

Unknown disse...

Não é nenhum argumento. Trata-se de uma simples constatação, a partir do momento em que se definem campos, e em que de um lado se reconhece o "apoio da ciência" (seja lá o que isso for), o outro só se pode opor a esse apoio, e foi esse o lado em que se deixou colocar. Dificilmente alguém quererá escutar a sua argumentação, assim, deixa de argumentar pois está a falar para ninguém ou quase (e é claro que assim perdeu a discussão desde o início, a não ser que continue a postar textos, até que ninguém os leia. Aqui poderá ficar com a ilusão de que os seus argumentos convenceram alguém, o que não é o caso).

Não se deve subestimar a força da religião (seja ela qual for).

Anónimo disse...

Com muita sinceridade, não percebo a falta de rigor do argumento de Desidério. Se se concorda ou não é outra coisa, mas neste momento o argumento parece cristalino...

DMurcho defende a ausência do Estado no ensino. Defende também a liberdade no seu sentido mais lato (desde que não chateie terceiros).
Quanto à «não atribuição de cédula de astrólogo», DMurcho defende que não é papel do Estado, usando o chapéu científico, tomar esse tipo de decisão. Para DMurcho, se o astrólogo não chatear terceiros e houver gente que queira os seus serviços, tem direito a ter essa profissão como um qualquer outro profissional. Defende que o Estado tem outras finalidades, mas essa em particular, usando o argumento científico, não tem. Em seu entender, esse papel do Estado colidiria, não justificadamente, com um valor de liberdade.

O que há de não rigoroso aqui? Pergunto isto inocentemente para poder, em seguida, participar na discussão sobre o papel do estado.

João disse...

Há alguma inconsistencia e relutancia injustificada em aceitar que há danos em terceiros.

Há também uma apresentação da ciencia como um pouco desprendida dos factos e não como melhor maneira de os estabelecer.

Há um espantalho reminiscente de posts anteriores.

Há uma falta de compreensão da importancia da verdade, (pelo menos ao nivel do melhor que pudermos fazer), no tecido social e civilizacional - os factos importam. Desde a justiça, à moral, à história e à ciencia. E a ciencia é a nossa fabrica de factos. Bastante boa e util em todas as areas acima referidas.

Procurarei fazer um post acerca disto assim que puder.

Anónimo disse...

«Fábrica de factos» ?

Era mesmo isso que queria dizer?

João disse...

Sim, embora seja apenas a titulo ilustrativo.

Não que a ciencia invente factos do nada.

Mas não há factos sem teorias, ou pelo menos não há significado dos factos sem teorias para os compreender. Por um lado. Por outro como os factos são estabelecidos por critérios que a ciencia usa e refina, a ciência acaba por ser a melhor fonte deles.

Mais aqui, assim como a critica ao post (peço desculpa pela formatação mas é um bug que não consigo resolver):


http://cronicadaciencia.blogspot.pt/2012/12/nao-ha-falta-de-democracia-na-ciencia.html

joão viegas disse...

Explique-me primeiro v. como é concebivel haver decisões politicas (ou administrativas) que se apoiem em conhecimentos cientificos, se v. não admite a hipotese de o Estado (ou qualquer decisor politico) poder conhecer, com alguma certeza, de forma objectiva e eventualmente discutivel, quais são os conhecimentos cientificos actualmente disponiveis...

Depois, explicar-lhe-ei com todo o prazer porque é que os textos do Desidério, que não procuram nenhuma espécie de esclarecimento nem se importam minimamente com a realidade, logica ou factual, ou com qualquer referencial objectivo, carecem completamente de rigor e não podem ser levados a sério.

O Desidério é o digno descendente dos nossos intelectuais mediocres de sempre, que ele julga poder criticar como se não caisse exactamente nos mesmos defeitos. Enche a boca com palavras que soam a moda, mas é perfeitamente incapaz de as justificar e, embora possa fazer ilusão num primeiro momento, deixa rapidamente transparecer que não esta minimamente preocupado em compreender aquilo de que fala.

Boa continuação e bom proveito.

Se encontrar um pais na terra onde as posições defendidas pelo Desidério nestes ultimos textos são levadas a sério, mande-me um postal de la por favor.

Anónimo disse...

Eu só disse que o Desidério apresentou a sua visão sobre o papel do Estado de forma clara. A visão por ele defendida é consideravelmente minimalista. No entanto, parece-me que, em caso de comprovado prejuízo de terceiros (e aqui a visão científica ajuda), DMurcho defende que possa haver decisões estatais proibitivas.

Não conheço tal País. No entanto esse desconhecimento não impede uma discussão teórica. Nem impede que o ponto de vista de uma pessoa seja rigoroso. A única coisa que digo é que se pode ser contra um ponto de vista apresentando argumentos. E quanto a isso devemos estar prontos para ouvir e, se for caso disso, aceitar as objecções. No entanto, continuo a achar que não houve falta de rigor quanto à opinião expressa pelo DMurcho.

Mas ok, estou a seguir o post mais recente. Continuarei a discussão lá.

joão viegas disse...

A posição do Desidério, que nem sequer discute o problema levantado no post do David Marçal (com efeito, se é ilegitimo o Estado inteirar-se daquilo que é, ou não, apoiado pela ciência, então não devia sequer existir ministério da educação e o problema é todo ele absurdo), não resiste a um exame, mesmo sumario, da realidade dos factos.

Para além disso é completamente ilogica e conduz necessariamente aos piores absurdos : se a intervenção do Estado é legitima para impedir que se prejudiquem pessoas, mas se não cabe ao Estado determinar em que medida o conhecimento que ele tem da realidade é, ou não, suportado por dados objectivos (ou cientificamente justificados), como é que o Estado poderia punir quem matou outrem com um tiro de caçadeira, mas defende que, cientificamente falando, é impossivel que isso tenha causado o minimo prejuizo, ou que é impossivel que a morte tenha sido causada pelo tiro de caçadeira porque a astrologia demonstra o contrario ?

A posição do Desidério assenta apenas em pressupostos que correspondem a caricaturas de ideias que as pessoas ouvem por ai, sem nunca procurar saber em que medida elas têm consistência : o estado (que no conceito do Desidério nada tem a ver com as pessoas) é mau porque é mau, e a prova é que o Desidério paga impostos e não pode fazer o que lhe apetece. Se as pessoas fossem livres (o que não acontece no estado, segundo ele), a vida seria muito mais facil para todos, a começar pelo Desidério uma vez que as pessoas reconheceriam muito mais facilmente que aquilo que o Estado lhe paga é uma pechincha em relação ao seu valor intrinseco...

Se v. considera que isso é uma postura de rigor, continue o debate à vontade. Por mim, é aqui que saio do comboio.

Boas

Anónimo disse...

A História já mostrou claramente que em Portugal quando o Estado mete o bedelho habitualmente só costuma sair asneira.

Liberdade sem o ser humano ser manipulado ou sequer tentar manipular outro ser humano é o que a humanidade precisa urgentemente, o resto virá quase por acréscimo.

Anónimo disse...

A ciência, a ciência é algo por vezes algo incoerente, então não é que a agora afinal a psiquiatria afinal não é ciência alguma.
Tudo está a mudar e ainda bem.

Anónimo disse...

Aval do estado!!!
Não foi esse mesmo estado que avaliou(!) e deu seu aval às smartas shopas?
Este estado comporta-se demasiadas vezes como os drogaditos.
O papel do estado deveria cuidar do bem estar, de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos, em vez disso temos um estado que só quer é encurralar esse mesmo cidadão, extorquqir-lhe as posses, maltratá-lo, coscuvilhar a vida dele, impedi-lo de pensar e lançar impostos uns atrás dos outros em cima deles, por fim veja-se no estado atual desse estado e digam ´se dão o vosso aval a este estado?

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