Novo texto do Professor Galopim de Carvalho com os nossos agradecimentos.
No momento presente, em que muito se fala de tornados, furacões, de aquecimento global e de outras perturbações do clima, a par de considerações sobre a inegável responsabilidade da sociedade de consumo, em particular, as dos países industrialmente mais poluidores, vale a pena reflectir sobre o que tem sido o “sobe e desce” da temperatura da Terra, à escala global, e o consequente “sobe e desce” do nível geral da superfície do mar na última centena de milhares de anos do nosso planeta.
Nos últimos tempos da história da Terra foram registadas seis grandes glaciações (descritas na Europa com os nomes Biber, Donau, Gunz, Riss, Mindel e Würm) intercaladas por períodos de aquecimento global, ditos interglaciários, no pico dos quais, os níveis do mar subiram muito acima do actual.
A mais recente destas seis glaciações, ocorrida no Quaternário, entre há cerca 80 000 e 10 000 anos, (Würm, na Europa, ou Wisconsin, na América do Norte), não será certamente a última, e nós estamos a viver o período interglaciário entre esta e a próxima, que se seguirá, daqui a uns não sabemos quantos milhares de anos. Assim sendo, a temperatura global vai elevar-se e, em consequência do inevitável degelo, o nível do mar vai subir a um ritmo que, não restam dúvidas, está a ser acelerado pelo real e mais que falado efeito de estufa, com consequências que se adivinham incontroláveis e dramáticas.
Há cerca de 18 000 mil anos, no Paleolítico, já as mais antigas gravuras rupestres se disseminavam pelas paredes rochosas do Vale do Côa, atingia-se o máximo de rigor e de alastramento desta glaciação A calote glaciária em torno do Pólo Norte [1], espessa de dois a três milhares de metros, alastrava até latitudes que, na Europa, atingiam o norte da Alemanha, deixando toda a Escandinávia submersa numa imensa capa de gelo, capa que cobria igualmente todo o Canadá, a Gronelândia e grande parte da Sibéria.
No Atlântico, a frente polar, ou seja, o encontro entre as águas polares, com icebergs à deriva, e as águas temperadas, situava-se à latitude da nossa costa norte, entre Aveiro e o Porto. O nível do mar estaria, ao tempo, uns 140m abaixo do actual, pondo a descoberto uma vasta superfície, hoje submersa, levemente inclinada para o largo e que corresponde à actual plataforma continental. Da linha de costa de então descia-se rapidamente para os grandes fundos oceânicos, com 4 a 5 mil metros de profundidade. A temperatura média das nossas águas rondaria, então, os 4.º C.
As Serras da Estrela e do Gerês, à semelhança de outras montanhas no país vizinho, tinham os cimos permanentemente cobertos de gelo, desenvolvendo processos de erosão próprios dessa situação climática, cujos efeitos ainda se podem observar em importantes testemunhos, quer nas formas de erosão (vale glaciário do Zêzere, por exemplo) quer no depósitos de moreias. Nos relevos menos proeminentes, mais a sul e menos afastados do litoral, como as serras calcárias do Sicó, Aires, Candeeiros e Montejunto, encontram-se ainda, da mesma época, vestígios bem conservados e evidentes de acções periglaciárias [2].
Desses vestígios sobressaem certas coberturas de cascalheiras soltas, brechóides, sem matriz argilosa, essencialmente formadas por fragmentos de calcário muito achatados e angulosos, em virtude da sua fracturação pelo frio, que deslizaram ao longo das vertentes geladas, destituídas de vegetação e de solo, e se acumularam na base desses declives. A conhecida “pincha” de Minde teve a sua origem nesta altura e através deste processo.
A partir de então verificou-se uma importante melhoria climática e consequente degelo. A temperatura sofreu uma elevação gradual e as grandes calotes geladas começaram a fundir e a retrair-se, debitando nos oceanos toda a imensa água até então aprisionada. Em consequência, o nível geral das águas iniciou a última grande subida e mais uma invasão das terras pelo mar, conhecida por transgressão flandriana. Praticamente, todos os rios portugueses, do Minho ao Guadiana, terminam em estuários, que não são mais do que vales fluviais escavados durante esta última glaciação e posteriormente invadidos pelo mar, no decurso desta transgressão.
Pelos estudos realizados na nossa plataforma continental sabemos que, há uns 12 000 anos atrás e na continuação do degelo global, o nível do mar coincidia com uma linha aí bem marcada, à profundidade de 40 metros. Mil anos mais tarde, a tendência geral de aquecimento generalizado foi perturbada por uma crise de arrefecimento à escala do planeta [3].
Na sequência, os glaciares não só interromperam o degelo, como reinvadiram as áreas entretanto postas a descoberto. Em resultado desta nova retenção das águas, o nível do mar desceu de um valor estimado em 20 metros e, assim, permaneceu durante cerca de mil anos. A frente polar, que recuara até latitudes mais setentrionais, avançou de novo e atingiu o paralelo da Galiza, pelo que as temperaturas das nossas águas terão rondando os 10 ºC.
No final deste episódio de inversão climática, a que se dá o nome de “Dryas recente”, há 10 000 anos, a transgressão retomou o seu curso. O clima tornou-se mais quente e mais chuvoso, entrando-se no que designamos por “Pós-glaciário”. Há 6 a 7 mil anos, a temperatura média, na nossa latitude, atingia cerca de 21 a 22 ºC, ou seja, uns 5 graus acima dos valores normais no presente. Foi o recomeço da subida generalizada do nível do mar, que se vinha a verificar desde o início do degelo, à razão de 2cm por ano, em valor médio, embora a ritmo não constante e com algumas oscilações. Este episódio, conhecido por “Óptimo climático”, coincidiu, em parte, com o Mesolítico português, estando bem exemplificado nos magníficos “concheiros de Muge”, no Ribatejo.
O nível marinho actual começou a ser atingido há cerca de 5 000 anos, em pleno Megalítico ibérico, iniciando-se, então, o que é corrente referir como “Período Climático subatlântico”, caracterizado por relativa humidade. A partir de então verificaram-se pequenas oscilações na temperatura, marcadas por moderadas e curtas crises de frio, com correspondentes recuos do mar, designados por “Baixo Nível Romano”, há 2 000 anos, “Baixo Nível Medievo”, em plena Idade Média (séculos XIII e XIV) e “Pequena Idade do Gelo”, nos séculos XVI a XVIII, bem assinalada na Europa do Norte pelo congelamento de rios e lagos, situações relacionadas com a ocorrência de grandes cheias primaveris, resultantes do degelo nas montanhas, bem testemunhadas em pinturas da época.
Posteriormente a esta crise de frio, a temperatura do planeta subiu para os níveis actuais e vai continuar a subir, agora potenciada pelas emissões antropogénicas do dióxido de carbono e dos outros gases com efeito de estufa.
Galopim de Carvalho
NOTAS:
[1] Em torno da Antárctida, o oceano Glacial Antárctico ficou coberto por uma extensa e espessa capa de gelo.
[2] Próprias do clima e dos processos geodinâmicos ocorridos na periferia dos glaciares, em especial, das grades calotes glaciárias polares.
[3] Uma explicação para esta interrupção, relativamente brusca, no processo de aquecimento global que se vinha a verificar há alguns milhares de anos, pode encontrar-se na presunção de que, durante a glaciação, se formaram lagos enormíssimos no continente norte-americano, mantidos por grandes barreiras de gelo, que teriam recebido águas de cerca de oito mil anos de degelo nessa área da calote gelada. Admite-se que, tendo descongelado as barreiras que sustinham esses lagos, toda a água doce aprisionada desaguou no Atlântico Norte, desencadeando a brusca congelação da superfície do mar e a consequente mudança climática com reflexos à escala global. A água doce congela a uma temperatura mais elevada do que a água salgada do mar.
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6 comentários:
De acordo com os climatologistas o "aquecimento global" é um facto, isto é pode ser verificado pela comparação das temperaturas com os registos anteriores.
O que eu gostava de saber é que é que leva alguém a dizer que este aquecimento é da responsabilidade da actividade humana (como se diz no texto "inegável responsabilidade da sociedade de consumo, em particular, as dos países industrialmente mais poluidores"). Seria interessante saber quanto do aquecimento agora observado é causado pela actividade humana e se possível quanto é que se podia aquecer para manter a temperatura da terra (ou para aquecer um bocadinho ou para arrefecer, o que for para manter a "estabilidade climática"). Eu (e se calhar mais gente), como um dos "inegáveis responsáveis" por este excesso, gostava de saber qual é a minha responsabilidade no caso. O que não estou disposto (eu e muita gente) é a aceitar estas afirmações vagas, ou que alguém as valide sem nenhuma explicação, tal qual fosse um dogma de fé (pecados já tenho os meus, pelos quais sou eu o único responsável e não necessito de ser culpado de nada, muito menos do que não faço).
A homenagem ao professor Galopim de Carvalho do propósito.
De português
Haveria ser um só coração,
soubera o tempo que o vento,
pertence-lo-ía à distinta nação,
seria acção de notável, evento.
Poderia sim, sê-lo e de todo,
moderna e materna, e se lamento,
gesto recto à tam cômodo;
que acento: ponto e sacramento.
Ai, que língua a vossa! É tua,
oh' português a palavra é nua,
mais bela, lá e cá, entre tantas,
eis da vida a fortuna e, cantas
e, vosso sonho, a sonha nem resumida
que lavra culmina, per reunida.
Aquecimento Global ! Ao que apurei junto duma amiga moscovita ela registou hoje na sua varanda 23º C negativos em Moscovo.
E tanto quanto sei o perímetro da Antártida foi acho que este ano o maior de sempre que há registo.
Do texto se extrai que sob a perspectiva de longo prazo (seja medida em milênios ou em séculos) o clima da terra sempre alternou aquecimentos e esfriamentos. D'onde não se conlclui a assertiva da causa humana da variação atual, a menos que haja explicações plausíveis, as quais o texto não faz sequer menção. A propósito, não li nada capaz de convencer-me seja a emissão de carbono causada pela espécie humana algo capaz de alterar substancialmente o clima global. Preservemos o meio ambiente por maturidade e consciência, por amor à qualidade de vida e à biodiversidade; não por pavores infundados...
Considero uma arrogância da nossa espécie considerar que o "aquecimento global" é causado por nós... quando se sabe que, antes de nós, houve aquecimentos e arrefecimentos! Só me parece que uma "lifetime" é um tempo demasiado curto para uma variação tão significativa; mas não estive cá antes e não sei quanto tempo demoraram as outras!
Isto dito, devo dizer também que estou de acordo que devemos diminuir a poluição, para nosso bem...
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