Daniel Barenboim, pianista e maestro, conta no seu admirável livro Está tudo ligado: O poder da música, a que já fiz várias alusões no De Rerum Natura, uma situação caricata que ilustra bem como o Ocidente se deixou enredar nesta coisa do utilitarismo do conhecimento e… se ficou por aí… Mais grave é que este modo de pensar se tenha instalado na escola de modo tão transversal, tão acrítico e, por isso mesmo, tão avesso a revisão.
"Um dia em Chicago, estava eu a ver televisão quando deparei com o exemplo mais extraordinário e repulsivo da música, num anúncio duma empresa chamada American Standard. Nesse anúncio, via-se um canalisador que corria na maior agitação, abrindo a porta de uma casa de banho e demonstrando a superioridade de uma determinada sanita. Toda a sequência de imagens era acompanhada do Lachrymosa, do Requiem de Mozart. Alguns espectadores sentiram-se compreensivelmente agredidos com a utilização da música de Mozart como fundo sonoro para vender sanitas, e escreveram cartas para os vários jornais e para a própria empresa. Receberam desta a seguinte resposta.Referência bibliográfica:
«Obrigados por terem contactado a American Standard a expor as suas preocupações sobre a música de fundo do anúncio televisivo em exibição para promover a nossa sanita de topo de gama. Agradecemos o facto de se ter dado ao incómodo de comunicar connosco, e partilhamos dos seus sentimentos numa matéria que é claramente de grande importância para si. Quando escolhemos o Requiem de Mozart, não estávamos a par do seu significado religioso. Só tomámos conhecimento dele graças a alguns clientes como você, que também nos contactaram. Embora haja inúmeros procedentes de uso comercial de música de tema espiritual, decidimos substituí-lo por um trecho da Abertura de Tannhauser, de Wagner, que, segundo nos foi assegurado por especialistas em música, não tem importância religiosa (…).»
É evidente que a American Standard não podia imaginar nenhuma outra razão, a não ser a blasfémia, que pudesse suscitar a fúria dos telespectadores.
A ideia de que a verdadeira blasfémia pudesse consistir no uso abusivo de uma obra de arte musical nunca deve ter passado pela cabeça do responsável da empresa (…) Ainda que involuntariamente, o uso da música de Mozart num anúncio televisivo cria uma familiaridade generalizada com um minúsculo excerto do seu Requiem, tirado do contexto e sujeito a associações não musicais: neste caso, a necessidade de comprara uma sanita nova.
Este tipo de familiaridade é tudo menos benéfico para o estado da música clássica nos nossos dias. Usar fragmentos de grandes obras musicais e instilá-los na cultura popular (ou na falta dela) não é solução para a crise da música clássica.
A acessibilidade não se consegue pela via do populismo; a acessibilidade consegue-se com um acréscimo do interesse, da curiosidade e do conhecimento (…). No caso da música clássica, a educação é a rampa, ou o elevador, que a torna acessível. A concentração na música é uma actividade que tem de começar muito cedo na vida para se desenvolver de forma orgânica, como acontece com a compreensão da linguagem verbal. Torna-se então uma necessidade, e não um luxo."
- Barenboim, D. (2009). Está tudo ligado: o poder da música. Lisboa: Bizâncio, páginas 61-62.
2 comentários:
Ora aqui está um tema que abordei por causa do anúncio do óleo Fula : http://guiadamusicaclassica.blogspot.pt/2010/09/porque-fico-fulo-com-o-anuncio-do-oleo.html .
Por acaso não sei se em Portugal a marca recebeu protestos. Quer parecer-me que não deverá ter recebido muitos se é que recebeu um único. Como dizia não tenho nada contra mas também nada a favor e se utilizarem pelo menos tentem respeitar o sentido e estética da obra. Há exemplos excelentes desse tipo de utilização, há outros que são simplesmente vulgares e que reduzem a obra de arte a um mero fundo musical. Não me admira que o marketeer americano não tivesse realizado a natureza da blasfémia - há mesmo música de plástico ...
Do livro Introdução à música moderna de Fernando Lopes Graça (colecção biblioteca Cosmos) transcrevo o seguinte texto:
"... Infelizmente, apesar de uma ou outra tentativa, nós ainda não conseguimos fazer subir o tom da nossa música, de maneira a pô-la em uníssono com a das outras culturas nacionais modernas que transbordam das suas fronteiras para a grande casa do Mundo. A «música portuguesa» para nós, sinónimo de música pitoresca, música folclórica, música «à moda do Minho». E causa, na verdade, uma impressão dolorosa ver como individualidades de certa representação oficial e, mais do que isso, de grande responsabilidade pelas funções que assumem ao dirigir organismos culturais, causa uma impressão dolorosa, dizemos, ver como essas individualidades teem também da «música portuguesa» o mesmo conceito pitoresco, ao apontarem, como ideal para nos tornarmos conhecidos no mundo, para levar ao mundo a expressão da nossa musicalidade - o Tiro-liro, apenas porque este tinha obtido um grande êxito não sabemos em que Hotel ou Clube de Nova-York...
A salvação da música portuguesa não está em pôr brigadas de folcloristas a comporem Tiro-liros, para serem executados nos hotéis ou casinos de luxo da América. Os Tiro-liros podem ser apenas, quando muito, a matéria bruta de que poderá ser feita a verdadeira «música portuguesa». O problema da criação de uma «música portuguesa» não reside em confecionar canções e danças mais ou menos folclóricas, no estilo arrebicado e precioso, todo fitinhas e laçarotes, que para ai lavra agora como epidemia, nas mais variadas manifestações artisticas nacionais ou nacionalistas.
A contribuição do folclore para a criação de uma «música portuguesa» de superior envergadura só pode ser a que foi para os outros países que tentaram formar-se uma cultura musical individualizada: um método, que há-de ser transcendido logo que os nossos compositores se achem de posse de uma linguagem e de uma disciplina próprias, capazes, portanto, de levar ao mundo a expressão da nossa musicalidade, sim, mas da nossa musicalidade como elemento de uma cultura e não como matéria de propaganda turística."
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