quinta-feira, 17 de maio de 2012

O que é e para que serve a Matemática?

Extracto do livro de Jorge Buescu "Matemática em Portugal", que acaba de sair na Fundação Franscisco Manuel dos Santos:

A pergunta tem toda a pertinência. Vivemos num mundo cada vez mais acelerado e fragmentado no qual a Matemática parece  relativamente irrelevante no dia-a-dia. Afinal de contas, ninguém precisa de resolver uma equação do segundo grau para falar ao telefone, ouvir um CD, ligar a televisão ou trabalhar com o computador.

No entanto, esta aparência é completamente enganadora. Afirmar que a matemática é inútil  seria como dizer que um carro, para funcionar, não precisa de peças mecânicas, só porque estas não se vêem.  A verdade é bem diferente: o mundo moderno seria impossível sem uma Matemática sofisticada e muitíssimo avançada. O facto de nem darmos pela sua presença quando ligamos o telemóvel ou o computador significa apenas que ela está convenientemente acondicionada para não exigir, da parte do utilizador, o seu conhecimento - tal como não é necessário dominar a mecânica automóvel para conduzir um carro.

A importância crescente da Matemática no mundo actual prende-se, antes do mas, com razões de ordem prática. Desde a Revolução Científica do século XVII que se descobriu que as leis da Natureza têm formulação matemática; e essa compreensão quantitativa permite, além de  compreender o Universo, agir sobre ele. Assim, as aplicações da Matemática surgem como uma ferramenta essencial na construção de aplicações da ciência à Tecnologia e ao mundo real. Esta é  a  primeira e grande justificação do interesse que a sociedade deve ter no desenvolvimento da Matemática.

São especialmente  ilustrativos alguns exemplos concretos retirados  da vida diária e que se baseiam na Matemática das últimas duas ou três décadas. Como pode uma quantidade gigantesca de informação, quando se descarrega através da Internet uma imagem, viajar meio mundo em poucos segundos? A resposta está na Matemática, neste caso na compressão de ficheiros. Esta é realizada por meio de um algoritmo, o mais usual dos quais utiliza  objectos matemáticos chamados wavelets (onduletas), cujo desenvolvimento tem cerca de duas décadas. Para os amantes de música que ainda se lembram dos discos de vinil não será de estranhar que um CD ou DVD suporte maus tratos traduzidos em riscos sem perder a qualidade, quando num disco de vinil bastava um pouco de poeira para se notar ruído de fundo, a chamada “batata frita”, e um risco era simplesmente o seu fim?  A resposta é que a gravação em CD ou DVD é digital – ou seja, transcrita para um sistema matemático de base 2 – e incorpora estrategicamente segmentos de “códigos correctores de erros”. Sendo assim, mesmo que um bit de um segmento da gravação seja deteriorado por acidente, o segmento de controlo detecta e corrige os erros de forma automática, de modo que o ouvinte (no caso de música) ou espectador (no caso de imagem) não se  apercebe de nada.


 Como podem existir transacções seguras na Internet, as quais permitem  comunicar com bancos e fazer pagamentos na Web “em modo seguro”? Por causa dos números primos. O método de comunicações seguras via Internet (ou através de outro canal digital) baseia-se no facto de que multiplicar dois números é “fácil”, ao passo quer a operação inversa de factorização (isto é, de encontrar os factores primos) é “difícil”. O algoritmo que implementa este facto matemático na segurança das comunicações, chamado RSA: foi criado pelos matemáticos Rivest, Shamir e Adleman em 1978 e o seu paradigma é conhecido como “criptografia de chave pública”.

 A ideia é subtil. Em vez de haver, como aconteceu de César até Hitler, transmissão secreta entre emissor e receptor da chave de encriptação e descriptação, com os inerentes riscos de intercepção, nos sistemas de chave pública o paradigma é diferente. O receptor fornece publicamente, a todo o mundo, uma chave de encriptação, formada pelo produto de dois números primos gigantescos só de conhecidos. Qualquer emissor consegue encriptar qualquer mensagem, por exemplo, o seu número de cartão de crédito, por meio desse número. Contudo, apenas o receptor  da mensagem possui a factorização em primos desse número gigantesco. Assim, o  receptor consegue facilmente desencriptar a mensagem. A sua eventual intercepção em trânsito por terceiros com intenções maliciosas revelar-se-á   inútil: não existe um método matemático “simples” de factorização, pelo que o respectivo conteúdo permanecerá indecifrável. A transmissão da mensagem é, portanto, “segura”. Tudo isto se passa de forma automática, sem que o utilizador se aperceba de nada, a não ser talvez do aparecimento de um pequeno cadeado amarelo no canto inferior direito do seu ecrã– tal como não se apercebe dos complexos mecanismos accionados de cada vez que gira a chave de ignição do seu automóvel. Mas quando vê o cadeado, acabou de accionar o referido  mecanismo matemático de “criptografia por chave pública”.

E os exemplos podiam multiplicar-se. Desde a Bioquímica e Farmacologia actuais, em que a função das biomoléculas é, em primeiro lugar, estudada por simulação computacional, à Meteorologia e Climatologia, em que as previsões são realizadas com base em equações diferenciais parciais (as equações de Navier-Stokes) cujos modelos matemáticos são resolvidos numericamente nos maiores supercomputadores do mundo; à optimização de operações de logística de distribuição, desde complexas operações militares à optimização da localização de armazéns para uma cadeia de retalho – não é exagerado afirmar que todo o funcionamento do mundo contemporâneo se baseia em aplicações significativas da Matemática.

Jorge Buescu

4 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Assim (e basicamente) o mundo dito

"desenvolvido" tornou-se numa massa imensa de

ignorantes que se fartam de usar (ou de

usufruir de) matemática profunda, sem o (ou

sem a) saber.

Nada (me) admiraria que surja por aí (ou até

que já haja) uma qualquer "inovação

pedagógica" a justificar - a "demonstrar" -

que o ensino da matemática é, afinal, inútil.

E desse modo podemos ignorar Buescus, Cratos e

outros, pois que assim nos (a)basta(rda)mos...

Gato escaldado...

Desidério Murcho disse...

Parabéns pelo teu novo livro, Jorge, que irei ler com muito interesse. Por coincidência, só ontem comecei a ler o teu Casamentos e Outros Desencontros, e fiquei logo encantado com a introdução e o primeiro capítulo.

Os jovens portugueses de hoje têm muita sorte. No meu tempo, a ciência era coisa que só se fazia no estrangeiro. A ideia de uma carreira científica real em Portugal era pura ficção. O que se fazia nas escolas e universidades era uma caricatura da ciência que eu lia nos livros estrangeiros. Hoje as coisas mudaram e temos cientistas normais, iguais aos que existem nos países mais desenvolvidos. E ainda por cima esses cientistas, como o Jorge, o Carlos Fiolhais, o Nuno Crato e outros, dão-se ao trabalho de publicar maravilhosos livros de divulgação, que certamente fazem a diferença para muitos jovens. Infelizmente, a revolução científica que chegou a Portugal tarde mas chegou, ainda não chegou à filosofia. Não só não temos um só académico com currículos comparáveis a todos estes cientistas, como continuam a desprezar a divulgação da filosofia. Na filosofia, estamos ainda na idade das trevas, infelizmente.

Cláudia disse...

Estimado professor Desidério Murcho é por vezes que os anseios são despropósitos a que a philosofia estende-se (compeende-se) como co(n)solo ao imediatismo humano. Foram arguns posts, de vossa dedicação e do alcance em estudá-los em firma princípio:
O navio de Teseu é inspiração para um paradoxo e conforme relato de Plutarco:...entre os filósofos a respeito de coisas que crescem...

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor Jorge Buesco;

Permita-me que acrescente, em forma de comentário, um estrato de uma entrevista dada pela Professora Madalena Garcia na Gazeta de Matemática – Janeiro de 2003 – nº 144;

“Na sociedade actual, com a rapidez do mundo tecnológico onde tudo se processa a ritmo acelerado, o “sucesso” é apresentado como obtido de forma rápida, não sendo valorizado o esforço e a persistência.

Não é de estranhar que, neste contexto, a Matemática surja como obstáculo quase intransponível ou apenas ao alcance de número muito reduzido de indivíduos.

Esta ideia, completamente errada, deve ser combatida. A Matemática deverá surgir entre estudantes e pais como ciência ligada à vida, necessária e útil. A sua aprendizagem, acessível a quase todos, longe de ter como objectivo apenas automatismos e terias abstractas, tem um papel fundamental na formação de cidadãos conscientes, capazes da desejável e cada vez mais indispensável educação permanente e co-responsáveis na construção do mundo novo em que terão de viver. ”


Cordialmente,
Nota: Espero poder comprar o seu livro;

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...