sábado, 16 de outubro de 2010

SARAMAGO E A DESCOBERTA DO ESPAÇO


A aversão de José Saramago, único Prémio Nobel português da Literatura, à descoberta do espaço é bastante anterior à recepção do prémio, tendo a entrega do Prémio em Estocolmo (recordo o que ele disse: "chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante") apenas o condão de a divulgar aos quatro ventos.

Leia-se este seu poema de “Os Poemas Possíveis" (Portugália,1966):
"Fala do velho do restelo ao astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme."
É já aqui claro o contraste entre a fome na Terra e a descoberta do espaço. Gostar ou não deste poema é uma questão pessoal. Eu prefiro António Gedeão. Mas, levando o poema à letra (o que pode ser perigoso), diria que a dicotomia entre a fome e a descoberta do espaço não faz grande sentido: não penso que o eventual fim da NASA vá dar de comer aos muitos, infelizmente muitos, famintos do mundo.

Mas, apesar dos velhos do Restelo, o homem chegou à Lua. Sobre a chegada do homem ao nosso satélite, Saramago escreveu duas crónicas na “Capital” em 1969, que publicou no livro “Deste Mundo e do Outro” (Arcádia, 1971). Passados 40 anos, comentou no seu blogue a sua releitura desses escritos:
“Reli-os agora para chegar à desconsolada conclusão de que afinal nenhum grande passo para a humanidade foi dado e que o nosso futuro não está nas estrelas, mas sempre e somente na terra em que assentamos os pés.”
É uma opinião respeitável como outras opiniões, mas, se me é permitido, prefiro a do pioneiro russo Konstantin Tsiokolvski: “A Terra é o berço da humanidade, mas ninguém pode viver no berço para sempre." A Terra é, afinal, parte de um vasto Cosmos que queremos conhecer. Carl Sagan disse que o nosso compromisso é não apenas com a Terra mas com o Cosmos:Our loyalties are to the species and the planet. We speak for Earth. Our obligation to survive is owed not just to ourselves but also to that Cosmos, ancient and vast, from which we spring.”

Voltando a Saramago. Ele insistiu noutras ocasiões em relacionar a descoberta espacial e a miséria do homem na Terra. Vejamos o que declarou a um jornal argentino tal como está no seu blogue:
“Um aparelhinho para Marte…

Enquanto estamos a falar, há milhares de milhões de pessoas que morrem de fome. Como podemos aceitar que o homem não seja um ser solidário, que já não pense na espécie e se tenha convertido num monstro de egoísmo e ambição que despreza milhares de pessoas que nada têm? Não se faz nada para resolver problemas essenciais. Para milhões de pessoas no mundo, nenhum dos problemas essenciais da vida está resolvido, enquanto nos entretemos a enviar um aparelhinho para Marte…

“O homem transformou-se num monstro de egoísmo e ambição”, El Cronista, Buenos Aires, 11 de Setembro de 1998 [Entrevista de Osvaldo Quiroga]”
Desta afirmação, semelhante à da cerimónia do Prémio Nobel, fica-se com a ideia que, se não lançasse um “aparelhinho” para Marte, o homem poderia resolver esse problema essencial que é a fome no mundo. Claro que concordo que se trata de um problema essencial, mas discordo que a desistência do programa espacial, que é empreendido à escala internacional, melhore a respeito da alimentação humana o que quer que seja. Pelo contrário, uma decisão tão obscurantista como essa provavelmente só pioraria.

Curiosamente, como que indo ao encontro do pessimismo de Saramago, a missão Mars Surveyor 1998, da NASA, falhou devido a um erro de navegação. Perdeu-se dinheiro? Sim perdeu. Mas aprendeu-se a evitar erros do mesmo género noutras naves ou noutros sistemas. Os cientistas e engenheiros aprendem com os erros. Aumentou-se a segurança de missões no espaço e na Terra. Foi dinheiro a menos para resolver a fome no mundo? Duvido muito...

Há um argumento que escapou a Saramago. Apesar de o problema da fome no mundo ser principalmente um problema político-económico, a sua resolução exige o contributo da ciência e tecnologia. O flagelo é assustador mas sê-lo-ia muito mais sem os desenvolvimentos científico-tecnológicos na produção e distribuição de alimentos. E, em particular, os avanços na descoberta do espaço têm contribuído para a resolução de muitos problemas na Terra. Desistir deles invocando a fome no mundo parece-me insensato. De resto, o homem vive de pão e de sonho, como o poeta e romancista decerto sabia.

17 comentários:

Miguel Galrinho disse...

Os defensores dessas linhas de raciocínio para se acabar com a fome no mundo acham que tudo o que é ciência e tecnologia deve parar, para que todo o dinheiro seja dirigido para aí.

O problema é tão somente o seguinte: ia-se corrigir o problema da fome no primeiro dia, mas no dia seguinte iamos estar todos a morrer de fome, e não apenas alguns.

Se queremos corrigir o problema da fome, o mundo não pode parar o seu desenvolvimento, porque é a partir daí que ela poderá terminar.

José Lourenço disse...

??????????????????????

Estas observações de Saramago parecem-me ser mais uma metáfora centrada na falta de solidariedade entre os "sapiens" do que propriamente ser contra a conquista do espaço.

De qualquer forma poderiamos colocar a questão às crianças do Darfur, por exemplo...

Respeitosamente, acho que o Dr. Fiolhais não apanhou o cerne da questão.

Saudações

Anónimo disse...

Mas que caterva de disparates, mesmo para mim que nem licenciado sou.
Ninguém (nem Saramago) culpa a ciência ou o seu desenvolvimento pela fome no mundo, ele apenas põe em causa as prioridades de investimento (económico mas não só).
Não há motivo para tanta amargura em relação a um homem que gostam de acusar de ser amargo, não poderiam arranjar um alvo melhor?

joão boaventura disse...

O DITO …

Este texto obrigou-me à releitura da obra de referência de Josué de Castro, “Geografia da Fome”, já digitalizada na BN mas de acesso só permitido a nível interno.

Isto para dizer que, por força da repercussão da obra citada, foi possível criar a Associação Mundial contra a Fome, de que o autor foi o primeiro Presidente, e do qual resta o Projecto Memória Josué de Castro, para se ter uma ideia das repercussões que a obra alcançou em todo o mundo.

Para já corre uma forte petição a nível mundial contra a Fome, lançada pela FAO, mas ignoram-se os resultados. Paralelamente corre outra que convida as pessoas a subscreverem aquilo a que a fonte chama 1billion hungry, com um vídeo onde um conhecido artista de cinema patenteia a sua revolta.

As petições não param aqui. A ONE International também faz apelos constantes aos grandes e poderosos, políticos e multinacionais, não só contra a fome mas também contra outros fantasmas com que somos confrontamos diariamente através dos media e que pode ser visionado aqui.

Finalmente, vale a pena ler um manifesto que corre na net, elaborado por um moçambicano e que tem o sugestivo título Da geografia da dívida à geopolítica da fome.

… E O FEITO ?????????

Anónimo disse...

Não é a Saramago que faltam argumentos mas a Fiolhais que está a faltar a boa interpretação, como já salientaram os comentadores anteriores.

Saramago não culpa a ciência mas a humanidade, ou melhor, a falta de valores humanistas e não o excesso de cientistas.
Por outro lado, convém que estes "vejam mais longe que Marte".

Unknown disse...

Este artigo é muito mau do p.v. hermenêutico.
Este artigo não honra a história deste blog e menoriza quem o escreveu.
Aliás, nos últimos meses o principal objecto deste blog, o conhecimento humano, perdeu a primazia face ao político.
Uma pergunta: este blog deixou de ter uma postura liberal?

Anónimo disse...

Realmente, não há corja mais egoísta do que os famintos, não percebo o egocentrismo desta gente. Ainda bem que eles não decidem nada, nem nada lhes é perguntado. Nem sei se lhes fosse perguntada alguma coisa se eles saberiam responder: para além de cheirarem mal e serem feios (para não dizer horripilantes, muitas vezes com os dentes podres e erupções nojentas na pele), será que essa gente tem capacidade para soletrar sílabas, juntá-las em palavras e organizar frases? E outra coisa que também não percebo é isso de se dizer que somos todos irmãos. Eu, irmão dessa gente que nem sei se merece o título de gente? Ok, uma esmolas de vez em quando até fica bem, é próprio do ser humano pensar um bocadinho nos outros. Mas não exagerem - um bocadinho e de vez em quando! Como dizem as pessoas de bem, pessoas instruídas e informadas, era mesmo por não irmos a Marte que resolvíamos os problemas dos coitadinhos. Tanta ingenuidade em pleno século XXI!

Anónimo disse...

??????????????????????????????????
Uma pessoa com a erudição de Carlos Fiolhais precisa de um bode espiatório para... nem sei bem para quê, uma vez que ninguém que por aqui circula coloca em causa a importância do trabalho científico. Que José Saramago não tenha sido a melhor escolha para o prémio nobel, também eu o defendo, mas por critérios relacionados com a qualidae da escrita. Criticá-lo por ter chamado a atenção para o problema da falta de uma conjuntura operante no que diz respeito à solidariedade para com o nosso semelhante? Que se passa? Alguma indigestão a baralhar-lhe as ideias?

fc disse...

Obrigado por não ir na campanha em curso, de canonização de José Saramago.

Muitas pessoas insistem em misturar a obra de Saramago com a sua pessoa. Por uma associação básica de ideias, se a obra raia a perfeição (literária), o homem que a criou andaria lá perto. Felizmente para todos nós, Saramago não foi um santo, mas sim, com qualquer outro Homem, um produto das suas origens sociais, educação e época histórica em que viveu.

Pessoalmente não vou na cantiga do "grande humanista". Foi um homem como qualquer outro, por vezes invejoso, outras gratuitamente polémico e, infelizmente, obstinadamente agarrado a uma visão imobilista do mundo, por vezes contraditória, se considerarmos as evoluções que teve hipótese de testemunhar.

Atendendo à importância que a URSS dava à investigação do Cosmos, e a influência que a mesma teve sobre vários dos seus ensaístas, romancistas ou cineastas (alguns como A. Tarkovsky com grande projecção no ocidente), parece estranho o desprezo de Saramago por estes temas.

Talvez Saramago seja apenas um exemplo dos perigos da auto-aprendizagem, ou até da necessidade de um novo sistema de ensino. Um sistema que consiga formar indivíduos com conhecimentos abrangentes em todas as áreas, deixando de existir uma clivagem tão grande entre "homens das letras" e "homens das ciências exactas". Prémios "nobeis" à parte, admiro muito mais alguém com a sede de conhecimento e sensibilidade de um Rómulo de Carvalho, do que um Saramago imobilista, comodamente agarrado às suas ideias pré-concebidas sobre o funcionamento do mundo que o rodeava.

fc disse...

Obrigado por não ir na campanha, em curso, de canonização de José Saramago.

Muitas pessoas insistem, pois existe um lobby que trabalha para isso, em misturar a obra de Saramago com a sua pessoa. Por uma associação básica de ideias, se a obra raia a perfeição (literária), o homem que a criou andaria lá perto. Felizmente Saramago não foi um santo, mas sim, com qualquer outro Homem, um produto das suas origens sociais, educação e época histórica em que viveu.

Pessoalmente não vou na cantiga do "grande humanista". Foi um homem como qualquer outro, por vezes invejoso, outras gratuitamente polémico e obstinadamente agarrado a uma visão imobilista do mundo, por vezes contraditória, se considerarmos as evoluções que teve hipótese de testemunhar. Atendendo à importância que a URSS dava à investigação do Cosmos, e a influência que a mesma teve sobre vários dos seus ensaístas, romancistas ou cineastas (alguns como A. Tarkovsky com grande projecção no ocidente) parece estranho o desprezo de Saramago por estes temas.

Talvez Saramago seja apenas um exemplo dos perigos da auto-aprendizagem, e até da necessidade de um novo sistema de ensino. Um sistema que consiga formar indivíduos com conhecimentos abrangentes em todas as áreas, deixando de existir uma clivagem tão grande entre "homens das letras" e "homens das ciências exactas". Prémios "nobeis" à parte, admiro muito mais alguém com a sede de conhecimento e sensibilidade de um Rómulo de Carvalho, do que um Saramago imobilista, comodamente agarrado às suas ideias pré-concebidas sobre o funcionamento do mundo que o rodeava.

Anónimo disse...

"As diferenças sociais de classe não se justificam e, em última análise, são baseadas na violência (...). Não basta preparar o homem para o domínio de uma especialidade qualquer... O que importa é que venha a ter um sentido atento para o que for digno de esforço, e que for belo e moralmente bom" (Einstein, Como Vejo o Mundo).

Jamais escolheria Saramago para prémio nobel. Mas... chamar a atenção para a falta de atenção para com os que sofrem o horror da fome... é indigno e moralmente mau?

Sendo da área da literatura, é com muita frequência que dou por mim a lamentar a falta de visão dos meus pares que alvitram grandes disparates em discursos públicas ultra emocionais o que, em muito, desprestigia a área das letras e humanidades.

Eis um exemplo da mesma atitude, mas agora do lado das ciências. Não me regozijo, pelo contrário, entristeço-me.

Os extremos tocam-se e, pelos vistos, o Sr. Carlos Fiolhais deve dedicar-se à Física e apenas à Física, já que, felizmente, à sua mesa e à mesa dos seus nada falta!
HR

Anónimo disse...

Não percebo como é que uma das mentes mais brilhantes mentes deste país, indiscutivelmente, consegue passar tão ao lado da interpretação correcta de uma mensagem tão simples.

Saramago não nega o caminho do desenvolvimento tecnológico e científico como solução para o problema humanitário em nenhum desses registos. Pelo contrário, pela forma como é exposta essa dicotomia, fazendo a referência aos feitos espaciais - expoentes máximos do progresso tecnológico - sugere que, dada a existência de cada vez mais recursos ao nosso dispor seria mais fácil contrariar o problema da fome no mundo.

Meireles

Anónimo disse...

Este poema é precisamente aquilo que a poesia nunca deveria ser: asquerosidade! JCN

Anónimo disse...

Para escrever Poesia é preciso ter alma de Poeta: e Saramago não a tinha! Apenas fez versos... e francamente maus. Inequivocamente! JCN

Anónimo disse...

A fome não se canta; combate-se! JCN

Paulo Rato disse...

Onde quer que que estejamos, sejam quais forem os círculos - pessoais, profissionais, culturais,... - que frequentemos, teremos sempre de conviver com as imperfeições e as contradições humanas. Apenas podemos esperar que elas não sejam de tal forma insuportáveis que nos obriguem a afastar-nos para outros círculos, onde nos acomodemos melhor, com as nossas próprias imperfeições incluídas, mas subordinadas a alguns princípios éticos que me parecem fundamentais.
Não tenho paciência para analisar, imperfeitamente, todas as imperfeições que, ao meu olhar imperfeito, emergem destes comentários; ou debater todas as afirmações que, no meu imperfeito entendimento, são mais gravemente incorrectas. Darei vazão a algumas mais incómodas.
A começar pelo Prof. Fiolhais, que treslê um poema cujo título não está lá por acaso: será que, baseando-nos na "velho do Restelo" original, deveremos considerar a epopeia camoniana uma mentira em 11 cantos? Qual canto dos feitos das "armas e barões assinalados"? Qual complexidade textual? Qual riqueza vocabular e cultural? Uma fraude é o que é!?
Adiante, com o senhor que diz ser o poema uma "asquerosidade": sendo difícil delimitar a aplicação e valor deste conceito - não será "La Grande Bouffe" um grande filme "asqueroso"? -, qual a autoridade crítica do declarante? E qual a de quem assegura que Saramago não tinha... uma "alma de Poeta" - O que é isso? Em que compêndio vem? Será no de um vetusto académico que dava como exemplo de péssimos versos os de Mário de Sá-Carneiro, porque usava umas palavras que não eram apropriadas à poesia!? -, pelo que, "inequivocamente", "Apenas fez versos... francamente maus...". Será familiar do tal académico?
Paulo Rato

Paulo Rato disse...

Agora que sei que poesia são florinhas e passarinhos (que não defecam, mormente em cima dos passantes), passo a "fc", que sabe que Saramago foi "gratuitamente polémico"? Mais uma novidade: gratuitamente?
Porque ousou escrever uma ficção (blasfema!) sobre a 2.ª parte do "livro sagrado" dos cristãos? Já leram "O Homem que Morreu", do D.H. Lawrence (outra peste!)?
Porque (dizem) destratou parte da 1.ª parte do mesmo "livro"?
Aliás, eis (penso) uma boa prova da imperfeição humana: o que um dos mais notáveis intelectuais da sua geração, José Tolentino Mendonça, disse a propósito de "Caim".
Também sabe que S. era "obstinadamente agarrado a uma visão imobilista do mundo, por vezes contraditória" - como todas as "visões", digo...
Por acaso, está muito na moda uma "visão imobilista do mundo", apesar das "evoluções" que estamos a testemunhar, agora mesmo, com políticos, economistas e uma chusma de sábios de neurónios trôpegos (todos "à la page") à cabeçada na "visão".
Enfim, em admirável desnudamento classista, fc pressupõe que S. possa ser "apenas um exemplo dos perigos da auto-aprendizagem".
Sim, porque todos os hetero-ensinados são autênticos prodígios de sabedoria e criatividade - sem perigos; e entre os que não tiveram esse privilégio não se encontra ninguém de jeito.
Quem terá ensinado literatura ao eng. civil Jorge de Sena, catedrático de Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa, no Brasil; e de Literatura de Língua Portuguesa e Literatura Comparada, nos EUA?
"A pátria (...) do que faço e de que vivo é esta / raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo / (...)" (J. Sena).
Péssimo poeta!
Paulo Rato

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