quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O QUE É INVESTIGAR?


Texto do meu livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva, 2005), esgotado no editor:

Suponha o leitor que lê no seu jornal favorito o seguinte título em letras garrafais:

“INVESTIGADORES EM GREVE GERAL”.

Ficaria preocupado? Será que o trabalho dos investigadores científicos é assim tão importante que não admita uma interrupção? Provavelmente, o leitor não ficaria sobressaltado, por pensar que de tal greve não adviria mal maior ao país ou ao mundo. A situação já seria diferente se se tratasse de uma greve dos padeiros ou dos motoristas de autocarros. Ninguém gosta de não ter pão fresco de manhã ou de não ter o autocarro a horas para ir trabalhar.

No entanto, quer o fabrico do pão quer os serviços de autocarros têm a ver, de uma maneira ou de outra, com resultados alcançados em processos de investigação científica. A investigação ou pesquisa científica, que basicamente consiste em saber mais sobre qualquer assunto, acaba por estar relacionada com o quotidiano de todos nós. Se outras razões não houvesse, bastaria essa para nos interrogarmos sobre o que vem a ser a “investigação”. O que é investigar?

A palavra “investigação” surgiu só no século XV, pouco antes da Revolução Científica que deu origem à ciência moderna. Provém do latim: resultou de juntar in a “vestigium”, o que literalmente significa ir atrás de pegadas, seguir o rasto de alguém. De acordo com a etimologia, o investigador científico vai atrás de marcas. A sua tarefa é semelhante à de um detective. Um cientista é um Sherlock Holmes, que de lupa em riste, examina os mínimos vestígios para saber quem é o criminoso...

Curioso é notar que o título do jornal escrito acima poderia afinal preocupar os portugueses se eles pensassem que os investigadores em causa não eram os investigadores científicos, mas sim os investigadores da Polícia Judiciária. Haveria boas razões para isso: Uma greve geral desse corpo de polícia, ao deixar os criminosos incólumes, colocaria em risco a segurança dos cidadãos...

As semelhanças entre um investigador científico e um polícia judiciário são reais e podem ser aprofundadas. Se se consultar um dicionário moderno, como o da Academia de Ciências de Lisboa, encontra-se que investigar é realizar uma “pesquisa crítica e sistemática, com base por exemplo na experimentação, que se destina a rever conclusões aceites à luz de factos novos.” Trata-se de uma boa definição. Pesquisa significa procura cuidadosa (em inglês, a palavra é research e em francês “recherche, quer uma quer outra traduzidas à letra dão “procura repetida”). Os atributos “crítica” e “sistemática” reforçam aquilo que uma pesquisa é. O investigador tem de se interrogar permanentemente sobre se estará ou não a cometer erros. E o investigador tem de executar um conjunto de procedimentos o mais completo possível. Usando a linguagem do famoso personagem de Conan Doyle, o investigador tem de inquirir a si próprio se está na pista certa e tem de explorar todas as pistas.

Continuando a decifrar o dignificado do dicionário, atente-se na expressão “por exemplo” antes de experimentação. Ela significa que a investigação pode ter ou não carácter experimental. Tem, decerto, nas ciências físico-químicas ou nas ciências biológicas. Pelo contrário, em ciências sociais e humanas, as possibilidades de experimentar são muito reduzidas, pelo que a investigação nessas áreas não é experimental. Mas, em casos de polícia, fazem-se muitas vezes experiências para apurar o modo como tudo se passou. A investigação criminal apoia-se em larga medida em procedimentos laboratoriais das ciências físico-químicas e das ciências biológicas. E fazem-se também reconstituições de crimes, que são verdadeiras experiências.

O fundamental da definição de investigar vem talvez no fim: “rever conclusões aceites à luz de factos novos”. Investigar não é procurar à toa, mas sim avançar uma hipótese, que é tacitamente aceite, e procurar saber se ela está ou não errada. Se ela se revelar inconsistente com um dado facto que antes não se conhecia, então terá de ser substituída. Por exemplo, no caso de um detective, a hipótese inicial pode ser “o criminoso é o mordomo”. No entanto, descobertos novos vestígios, o criminoso pode muito bem ser o jardineiro ou o motorista (havia pistas falsas!). É aqui que reside a dificuldade do trabalho investigativo. É que não se trata apenas de procurar de uma maneira cuidadosa, o que estaria ao alcance de muita gente. Mas sim de chegar a um resultado que anteriormente não era conhecido. Isso só está ao alcance de um verdadeiro Sherlock Holmes...

Muitas vezes usa-se a palavra “investigar” numa acepção trivial. Quando alguém estuda um dado assunto por um livro, poderá chegar a conclusões novas para si. Porém, essas conclusões não são decerto novas para o autor ou autores do livro. Na verdadeira acepção de “investigar”, o sujeito tem de chegar a conclusões que são novas não apenas para ele, mas novas para toda a gente. Tal exige outras qualidades para além da mera perseverança, nomeadamente a inteligência e a criatividade. Ele tem de ver mais do que toda a gente antes dele viu. Se possível, o resultado a que chega deve ser simples, isto é, deve ser evidente para toda a gente uma vez revelado publicamente. “Elementar, meu caro Watson!”. Einstein dizia que uma “teoria deve ser tão simples quanto possível, mas não mais simples do que isso.”

Não é fácil ser investigador. Existirão no mundo cerca de um milhão de cientistas (números redondos). Em Portugal não passarão de dez mil (também números redondos). Essas pessoas, depois de um treino prolongado – demora bastante o treino para investigador – adquiriram a capacidade manifestamente rara de chegar a conclusões diferentes das que são aceites, examinando com atenção a evidência disponível (aquilo que se pode chamar a “prova”, que no caso do Sherlock Holmes pode ser uma impressão digital deixada no local do crime).

Esta analogia entre um investigador científico e um investigador judiciário, apesar de fecunda, é também ilusória (como são, aliás, todas as analogias). Normalmente um crime só é investigado, em segredo, por um pequeno grupo de investigadores. Ora, em ciência, o “crime” é um facto respeitante à Natureza ou ao Homem e vários grupos de investigadores perseguem ao mesmo tempo esses factos, em saudável competição uns com os outros, anunciando os seus resultados uns aos outros. Normalmente, alguém chega primeiro, mas os outros não desistem e acabam por confirmar (ou não) o resultado de quem chegou primeiro. Mas mais: Um investigador criminal faz o seu trabalho em geral sozinho, ou em pequenas equipas; porém, dada a magnitude das tarefas exigidas, muitos cientistas experimentais trabalham hoje em grandes equipas. Por outro lado, na investigação judiciária, quem acaba por atribuir a culpabilidade não é o detective mas sim um juiz, ao passo que na investigação científica quem proclama uma determinada conclusão acaba por ser a comunidade científica na área em causa, que funciona como uma espécie de colectivo de juízes. Não é verdade que os cientistas passem a vida a contradizer-se uns aos outros: eles acabam por se entender ao proferir os seus acórdãos comuns.

Além disso, na investigação judiciária, apesar de serem possíveis erros (os famosos erros judiciais) um crime acaba por ficar resolvido, não se falando mais nisso. Pelo contrário, na investigação científica as conclusões alcançadas só são válidas provisoriamente. Novas procuras permitirão rever as conclusões estabelecidas, alcançando outras que de alguma forma têm de abarcar as antigas. A ciência é cumulativa ao incorporar em cada ocasião de descoberta o essencial das descobertas anteriores.

Há mais diferenças. Tirando uma ou outra excepção, num caso de polícia acaba por se conhecer a verdade. Em ciência, porém, a verdade só idealmente é alcançável. Para alcançar a verdade, ou melhor, para detectar o erro, o trabalho dos investigadores científicos tem de ser permanente. E é por isso que uma interrupção desse trabalho – a tal greve de que falava no início – é um atraso na procura da verdade, um atraso de que os cidadãos deveriam reconhecer o prejuízo.

9 comentários:

Rui P. Guimaraes disse...

Interessante essa comparacao de investigador cientifico com outras profissoes. Ha uma parte para a qual seria necessario um novo artigo no topico. O Dr. Carlos Fiolhais menciona que demora "bastante o treino de um investigador", mas exactamente o que e que e' necessario treinar para se ser investigador? Sera que basta ter um dominio eximio da sua area de trabalho? Ou sera' necessario um treino em termos de ferramentas necessarias a investigacao? Ou sera necessario um agucar de espirito, uma mentalidade diferente, uma curiosidade para ver alem da superficie?
Por outro lado, permita me aqui um desabafo. Um investigador nao tem direito a greve, direito a ferias ou fins de semana. Simplesmente tem que apresentar resultados. Hoje e feriado aqui onde estou mas nao pude deixar de vir ao escritorio, a apresentacao de um ano de trabalho esta marcada para daqui a duas semanas e o que nao fizer hoje significa que tenho que fazer a dobrar amanha. Se um investigador quer mesmo fazer greve deveria o fazer antes da apresentacao do seus resultados. Em vez de apresentar as conclusoes de que todos esperam ansiosamente, deveria reivindicar as suas condicoes. Pena este tipo de greve nao estar contemplado na lei

Anónimo disse...

Falar de investigadores
sempre me traz à memória
aquela curiosa história
de certos dois caçadores
que, tendo visto no chão
as pegadas de um leão,
tomaram a decisão
de sem nenhuma demora
à procura irem da fera,
indo um ver donde viera,
outro para onde é que fôra!

JCN

Anónimo disse...

Erros seguidos de asneiras. No estilo habitual de quem o ego é maior que saber. Aqui fica um apanhado:

1)"Além disso, na investigação judiciária, apesar de serem possíveis erros (os famosos erros judiciais) um crime acaba por ficar resolvido, não se falando mais nisso."

2) "Ora, em ciência, o “crime” é um facto respeitante à Natureza ou ao Homem e vários grupos de investigadores perseguem ao mesmo tempo esses factos, em saudável competição uns com os outros, anunciando os seus resultados uns aos outros"

3) "Provém do latim: resultou de juntar “in” a “vestigium”, o que literalmente significa ir atrás de pegadas, seguir o rasto de alguém."

ele disse "vestigium", mas na realidade queria dizer "vestigare". Como tal, "investigatio" não significa literalmente "ir atrás de pegadas, seguir o rasto de alguém".

Anónimo disse...

O comentador sem nome,
mas de presunção pejado,
parece ter muita fome
de ver seu "ego" gabado!

O que não deixa talvez
de ser pura estupidez!

JCN

Anónimo disse...

Uma ccoisa é a presunção,
outra coisa é a ironia:
esta é graça que alivia,
aquela é puro aleijão!

JCN

Rui P. Guimaraes disse...

O anonimo das asneiras veio adicionar zero. Deixa tres frases copiadas do texto como se isso fosse uma demonstracao de alguma coisa. Claramente, nao e obra de investigador. Pois estes sabem que uma conclusao so pode assentar em premissas que se encadeiem logicamente e nao em simples excertos das suas fontes. Tambem pelo nivel com que faz interpretacoes sobre os trabalho dos outros deixa advinhar que nao percebe da arte. So se pode ser investigador se souber analisar e compreender com claridade e sem preconceitos artigos publicados por outros. Ou seja, ter espirito critico nao chega. Tambem por isso, passo a expor:

Frase 1) Estou de acordo com o texto. Os crimes policiais nao estao sob continua investigacao. Findo a accao judicial alocam-se os recursos para investigar outros casos. Ja na ciencia, uma vez que cada conclusao cientifica acenta em outras, cada nova descoberta vem comprovar ou por em duvida as conclusoes ja dadas como assentes. Assim aconteceu quando Einstein veio com todo o atrevimento dizer que viveria feliz sem o conceito de gravidade tal como definido por Newton. Ja a investigacao do Face Oculta nao alterara em nada o processo do "Rei Ghob"

2)Exacto. Investigacoes independentes em simultaneo sobre o mesmo topico sao frequentes. Newton e Leibniz descobriram o calculo diferencial ao mesmo tempo e utilizaram simbolos diferentes para o fazer. Leibniz acabaria por se mostrar superior apesar dos muitos esforcos dos matematicos ingleses. A replicacao de resultados cientificos por grupos independentes e verdadeira chave do sucesso do metodo cientifico.

3) Verificar num dicionario de etimologia, nao tendo por perto um em portugues utilizei a palvra inglesa "investigation" que actualmente nao tem o mesmo significado mas tem as mesmas raizes:

early 15c., from L. investigationem (nom. investigatio) "a searching into," from investigatus, pp. of investigare, from in- "in" + vestigare "to track, trace," from vestigium "footprint, track" (see vestige).

Ou seja vestigare deriva de vestigium (pegada, pista).

Aqui o anonimo parecia saber qq coisa mas errou na conclusao. Podera' ter sido porque tem o "ego maior que saber"...

Ana disse...

O anónimo das asneiras já é de estimação: a sua presença é assídua em todos os textos publicados por Carlos Fiolhais. A sua demanda, a mesma: tentar trazer a lume incompetências imaginárias de Carlos Fiolhais. Quando a única coisa que consegue é chamar a atenção para a sua própria ignorância ou, talvez, mera associação errada de factos científicos consumados...

Qto à conclusão "Como tal, "investigatio" não significa literalmente "ir atrás de pegadas, seguir o rasto de alguém"... os dicionários etimológicos discordarão...

Confucio teria decerto algo a acrescentar...

Ana disse...

Quanto ao Texto de Carlos Fiolhais, decerto que muitos de nós o utilizarão quando quiserem comunicar o que significa ser investigador. ;-)

Unknown disse...

Interessante a abordagem do autor sobre o tema em questão, e como torna a investigação como um ato que prolonga-se além do ambiente acadêmico. Na vivência diária, deixando explícito sua importância no meio social, uma vez que investigar, como o próprio texto diz, é encontrar conclusões além do esperado.

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