sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Música a Cores

Crónica do nosso colaborador habitual António Piedade saído no "Boas Notícias" (o desenho é de Inês Massano):

O coração de Leonor batia numa cadência agitada. Parecia que o coração queria saltar-lhe do peito e ir dançar com ela e com as folhas que chovem das árvores no Outono. Mas não era só por causa disso que o sobressalto se adicionava ao tambor cardíaco.

Leonor estava ansiosa. Procurava sons da Natureza ao longo do caminho desde a escola até à sua casa. Mas o barulho da cidade era tão intenso, que não conseguia descortinar sons que associasse a outras coisas que não fossem carros, aviões, comboios, equipamentos de climatização, entre tantos outros elementos da orquestra citadina.

A professora tinha informado a turma da Leonor de que no dia 1 de Outubro se comemorava o dia Mundial da Música e pedido que, a propósito dele, todos fizessem uma composição sobre os sons da Natureza.

A professora explicou que o Dia Mundial da Música (aqui) fora instituído em 1975, por iniciativa de Lord Yehudi Menuhin e sob a égide da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), para ser celebrado no primeiro dia de Outubro e que seria dedicado a promover a arte da música por todos os povos, numa continuação dos ideais da paz e amizade entre todas as pessoas. Assim como comemoramos o nosso aniversário todos os anos, para nos lembramos do dia do nosso nascimento e nos rodearmos dos nossos amigos e familiares.

Como este ano de 2010 é dedicado à Biodiversidade, a professora da Leonor achou oportuno pedir que ela e os seus colegas encontrassem sons diferentes na Natureza e os descrevessem numa composição.

O seu colega João, que gostava muito de fazer compras, disse-lhe que, para ele, a natureza eram os legumes embalados e as frutas do supermercado, pelo que, a caminho de casa, iria passar por lá à procura dos sons da natureza.

Leonor, pelo contrário, achava que a professora se referia à natureza onde os passarinhos fazem os ninhos, onde as rãs coaxam em coro na fuga dos riachos, onde os cavalos relincham num andamento percutido sobre a terra.

E era sobre esses sons que ela queria escrever. Mas como, se os não ouvia entre o andamento congestionado da cidade?

Decidiu sentar-se num banco de uma alameda que pautava de verde o caminho até sua casa, fechar os olhos do barulho e “procurar” com os ouvidos.

Não esperou muito até que um belo dueto de trinados despertasse os seus ouvidos. E, curioso, apesar de ter os olhos fechados, o chilrear dos passarinhos foi acompanhado por uma sensação colorida. Foi como se o cérebro de Leonor associasse cores aos chilreios dos dois passarinhos a esvoaçar numa partitura ali perto.

De facto, já alguém lhe tinha dito que podíamos ver com o cérebro. E, sem abrir os olhos, imaginou a cor, a forma e o movimento dos passarinhos a partir dos sons com que eles a embrulhavam.

Concentrou-se nestas sensações e sentiu que as melodias a inundavam com uma paleta de cores que variava consoante a tonalidade do trinado era mais aguda ou mais grave.

Sem se aperceber disso, Leonor decidiu pintar o Dia Mundial da Música em vez de o escrever.

Iria partilhar a música da Natureza a cores.

António Piedade

15 comentários:

Bartolomeu disse...

Sem dúvida, um belíssimo texto, acompanhado de uma terna ilustração.
Mas, não basta treinar os sentidos na "filtragem" dos ruídos, aproveitando somente os sons, é importante entendê-los a exemplo do que fêz a Leonor e depois... pinta-los!

Anónimo disse...

Para continuar... discricionariamente:

A música tem cor, além de sons,
podendo ser azul, vermelha ou preta,
dourada, prateada, violeta,
numa orquestral variação de tons.

JCN

Anónimo disse...

É um prazer ler os seus textos, assim como ver as ilustrações de Inês Massano.
HR

Sílvia Ferreira disse...

Obrigada por nos proporcionar a leitura destes textos.

Anónimo disse...

SONS E CORES

A música tem cor, além de sons,
podendo ser azul, vermelha ou preta,
dourada, prateada, violeta,
numa orquestral variação de tons.

Azul é a "Para Elisa", aristocrática,
romântica, sensível como tudo,
lembrando reais mantos de veludo
e bagatelas líricas na prática.

Vermelha, rubra, é a "Heróica" dedicada
aos grandes feitos de Napoleão
fazendo correr sangue em profusão.

Pretos os "Requiem" são, como Deus manda,
roxa e triste é de Schubert a toada
e puxando ao dourado a "Sarabanda"!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Ana disse...

Uma pequena "polémica": e se a professora deste belo conto (que no fundo, deduzo, tb é uma metáfora para as constantes escolhas que temos de fazer, face a uma quantidade exorbitante de informação que mais não passa de ruído de fundo - um apelo ao espírito crítico, deduzo) tivesse um aluno surdo?...

;)

Ana disse...

Ps - provavelmente o aluno surdo pintaria os sons, da forma como imaginaria que eles sejam?... :)

Bartolomeu disse...

Não são surdos somente os que não ouvem, Vani, mas também aqueles que não querem ver.
E aqueles que conseguem ver com o coração aquilo que, nem com a visão os surdos são capazes de ver... esses, possuem o "dom" de pintar qualquer som, inclusivé o da alma.

Ana disse...

Bartolomeu, uma análise interessante e verdadeira. :) Contudo, eu referia-me aos aspectos práticos da questão e a um surdo que deve a sua surdez a uma deficiência no aparelho auditivo (e afins...).

Bartolomeu disse...

Sim Vani, percebi que no seu comentário se refere à mecânica.
No meu, refiro-me à possibilidade de ultrapassar um mau funcionamento mecânico, utilizando o expoente que nos permite substituir, ou potenciar todos os restantes sentidos.
Foi essa simbiose, entre mecânica e o sensorial, que entendi são feitos, o texto e o desenho.
;)

Ana disse...

:D Na verdade, confesso que o entendi num sentido metafórico. O de ser necessário aguçar o espírito crítico para "ver", "ouvir", "saborear", "sentir", "cheirar" :D.
O potenciar dos restantes sentidos é um pouco mais metafórico e mitológico que outra coisa. É lógico que um surdo tende a apoiar-se no seu sentido de visão para, por exemplo, proceder à leitura labial ou expressão corporal. Ou que um cego utiliza a audição para "ver". No entanto, não penso (pessoalmente) que seja uma questão de potenciar os restantes sentidos, mas sim de lhes dar um uso diferente.

Bartolomeu disse...

Vani...
Podemos dizer que tudo, não está livre de uma certa "dose" de metaforismo. Quanto à mitologia, naquilo que me parece ser o sentido que lhe pretende dar, lamento não poder conceder-lhe o meu acordo.
Afinal, cada um de nós é um microcosmos cuja vibração e vida, são mantidas pela força emanante dessa "peça" central que julgamos solitária, mas que na verdade se mantem conectada em planos absolutamente insondáveis, com fontes de energia de que nem suspeitamos a existência.

Ana disse...

O que eu queria dizer, em termos concretos, era que um surdo não passa a ter o sentido de visão mais potenciado por ser surdo. Nem passa a ter os sentido olfacto, paladar, tacto mais potenciados por ser surdo. O mesmo para um cego, substituindo-se a visão pela audição (por um cego, contudo, não poso falar). O que acontece, sim, é que a pessoa que vê um dos seus sentidos limitados aprende a tirar melhor partido dos restantes... repare, estes não ficam potenciados no sentido de se passar a ver comprimentos de onda que nunca antes viu ou a que desapareça todo o astigamatismo ou miopia que possa ter, se é que me entende. No entanto, passa a tirar outro partido do sentido da visão. Na verdade, um surdo ouve com os olhos. Tal como um cego vê com o tacto e a audição; mas o cego não passa a ouvir mais frequências que os restantes homo sapiens só por ser cego; passa sim, a tirar melhor partido da audição, e a utilizar as suas potencialidades já existentes de uma forma que as outras pessoas não fazem por disso não necessitarem.

Penso que, cada um com a sua perspectiva (lamento, mas não sou poética nem espiritual), estamos a dizer a mesma coisa. Eu somente associei o verbo potenciar ao aumento da capacidade fisiológica/mecânica auditiva, visual ou táctil e creio que é mais correcto referir-se ao processo de compensação da falta/deficiência de um sentido como uma diferente utilização do mesmo, talvez mais treinada, atenta e sensível.
A título de curiosidade, talvez para me justificar melhor, indico que falo por experiência própria :).

Bartolomeu disse...

:)
Concordo Vani, expomos de forma diferente, a mesma opinião, um na vertente mais física, o outro... servindo-se talvez, um pouco mais da espiritual.
Mas, vai ver que ambas se completam e se potenciam.
;)
Foi imenso, o gosto que tive nesta troca de opiniões, Vani.

Ana disse...

:) A ideia primordial das trocas de opiniões é os "opinadores" se complementarem, completarem e potenciarem uns aos outros. ;D Viver é aprender! :) E, se todos soubéssemos tirar partido disso sem preconceitos, ideias pre-concebidas, inflamações, arrogâncias, ignorâncias e afins... não estávamos no hiato existencial em que estamos.

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