quarta-feira, 21 de abril de 2010

Ordem dos Professores: breve historial das ordens profissionais

“O tempo passado e o tempo presente, fazem todos parte do tempo futuro” (T.S. Elliot, 1888-1965).

O prometido é devido. O meu último post -“Uma Ordem dos Professores?” (19/04/2010) – suscitou uns tantos comentários que agradeço porque, como defendeu Emerson, “todo o homem que encontro é-me superior em alguma coisa; e, nesse particular, aprendo com ele”.

Seis meses após a publicação da lei fundamental saída da Revolução de 28 de Maio, é publicada legislação para os diversos organismos representativos de profissões e seus destinatários, determinando que “as Ordens para as profissões liberais surgem ao lado dos grémios para industriais e comerciantes, sindicatos para operários e casas do povo para profissões não diferenciadas”. Reza ainda esta legislação que “os sindicatos nacionais dos advogados, dos médicos e dos engenheiros podem adoptar a denominação de Ordens” (Decreto-Lei 23.050/33, de 23 de Setembro).

Sempre que vem à baila a criação de uma Ordem dos Professores surgem vozes com o argumento volátil como o éter de que esta forma de organização profissional de direito público teve a sua etiologia no Estado Novo, sendo, consequentemente, atentatória da vivência democrática. Aliás, esta tese encontra cómodo respaldo na roçagante toga académica de Vital Moreira quando argumenta “que as ordens profissionais tiveram a sua origem no sistema corporativista do Estado Novo" (Público, 05/7/2005).

Dias mais tarde, este professor de Direito de Coimbra e eurodeputado do Partido Socialista, reforça o seu parecer com o argumento de que “a Ordem dos Advogados foi criada num dos primeiros governos da Ditadura que precedeu e preparou o Estado Novo, sendo depois integrada na organização corporativa juntamente com as demais criadas” (ibid., 26/07/2005).

Aceitar o argumento de tempos de governação que precederam o Estado Novo – dos primórdios da II República ao começo da I Dinastia – poderá responsabilizar D. Afonso Henriques, também ele, de ter sido o precursor do Estado Novo e, com isso, da Ordem dos Advogados. Acontece que “a Ordem dos Advogados foi criada sete anos antes da implantação do chamado Estado Novo, e uma escassa quinzena de dias após a Ditadura Militar que o antecedeu, pelo Decreto n.º 11.715/26, de 12 de Junho" (cf. site da Ordem dos Advogados, "Resumo histórico da Ordem dos Advogados”).

Esclarece-se que as ordens dos Advogados, dos Médicos e dos Engenheiros “foram depois representadas na Organização da Câmara Corporativa (Decreto-Lei 24.083, de 27.XI, 1934), representação que a Ordem dos Advogados repudiou por considerar deprimente, da sua corporação, a subordinação” (“Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira", vol. XIX, p. 577). Ainda segundo esta fonte, “todas as três ordens funcionam, mas somente a dos Advogados continua excluída da Câmara Corporativa”.

Só anos mais tarde surge a Ordem dos Engenheiros (Decreto-Lei 27.888/36, de 24 de Novembro) e a Ordem dos Médicos (Decreto-Lei 29.178/38, de 24 de Novembro), sujeitando-se ambas a ter assento na Câmara Corporativa. Após um prolongado hiato de 34 anos, é criada uma nova Ordem: a dos Farmacêuticos (Decreto-Lei 334/72, de 23 de Agosto).

Embora seja apresentada pelos seus opositores mais encarniçados, v.g., sindicalistas afectos ao Partido Comunista e não só, como uma espécie de “ultima ratio ou, mais prosaicamente, tábua de salvação, o óbice de natureza política antifascista de terem tido as ordens profissionais a génese durante a vigência do Estado Novo, esta falácia desmorona-se qual baralho de cartas viciadas se for tomada em linha de conta as inúmeras ordens profissionais criadas depois de 25 de Abril, que cito de memória e sem a preocupação de as alinhar em função da data da respectiva criação: Ordem dos Médicos Veterinários, Ordem dos Médicos Dentistas, Ordem dos Arquitectos, Ordem dos Economistas, Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, Ordem dos Biólogos, Ordem dos Psicólogos, Ordem dos Notários, Ordem dos Nutricionistas, Ordem dos Enfermeiros e Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas. Ou seja, quase o triplo das ordens profissionais criadas antes de 25 de Abril.

De interesse me parece, outrossim, a referência ao facto da filosofia que, inicialmente, presidiu à criação de ordens profissionais apontar inequivocamente estas associações profissionais de direito público exigindo, como condição sine qua non de inscrição plena uma licenciatura universitária responsável pela qualidade dos actos profissionais prestados à comunidade pelos respectivos membros.

No caso de profissionais sem este grau académico, era, apenas, facultada a inscrição de forma condicionada. Por exemplo, aos diplomados pelas antigas escolas médicas de Goa e do Funchal (escola com vida efémera e pouco conhecida) só era permitido o exercício profissional no então Ultramar Português. Aos diplomados pelas escolas de farmácia de Coimbra e Lisboa (a licenciatura era apenas ministrada na Faculdade de Farmácia do Porto) era vedado o exercício de análises clínicas, sendo-lhes apenas consentida a direcção técnica das farmácias.

Foi, portanto, com uma certa estranheza, ou mesmo estupefacção, que, em desrespeito por este modus faciendi, tomei conhecimento de que a então Associação Nacional dos Professores do Ensino Básico, constituída maioritariamente por professores diplomados pelas antigas Escolas do Magistério Primário, anunciar num seminário, realizado em Viseu, o firme propósito de se transformar em Ordem (Diário de Coimbra, 07/05/91). Hoje, com a posterior criação das ordens dos Enfermeiros e dos Técnicos Oficiais de Contas a exclusividade da exigência de uma licenciatura universitária passou a letra morta. A título de informação a latere, só em 83 foi criada no ensino politécnico a primeira escola superior de educação para ministrar, tão-só, cursos a nível de bacharelato para a formação de professores do 1.º ciclo do ensino básico e educadores de infância.

Em destacada notícia do Público (12/04/2010), é-nos dado conta que a antiga Associação Nacional dos Professores do Ensino Básico, hoje Associação Nacional de Professores ,passando a englobar professores de outros graus de ensino, “volta a pedir a criação da Ordem”.

Quando o Sindicato Nacional dos Professores Licenciados apresentou na Assembleia da República, em 25 de Fevereiro de 2004, uma petição para a criação de uma Ordem dos Professores, subscrita por cerca de oito mil assinaturas, que não foi votada sob a alegação do Partido Socialista de estar para breve a publicação de uma lei-quadro, por coincidência ou não, viviam-se resquícios do tempo agitado do não reconhecimento pela Ordem dos Engenheiros da licenciatura em engenharia de José Sócrates, obtida na extinta Universidade Independente, em 1996.

Essa legislação viria a ser publicada em 2008, Lei n.º 6, de 13 de Fevereiro, especificando no ponto 2 do respectivo artigo 2.º, destinar-se a regulamentar o exercício da profissão quando essa regulação “envolver um interesse público de especial relevo que o Estado não deve prosseguir por si próprio”. Mas não terá a Educação “ interesse público de especial relevo” na formação daqueles que, por exemplo, irão exercer a medicina ou a advocacia ou, ainda, a engenharia?

Defensor público, desde a primeira hora, desta forma de associativismo entendi a necessidade de mergulhar nas raízes das ordens profissionais, suas exigências e suas finalidades em Portugal contemporâneo sem o descuido de o fazer de “pena ao vento”, como diria Eça.

Em face deste statu quo, continuo na firme convicção – de cabeça fria e sem arrebatada paixão – que só a criação duma Ordem dos Professores poderá definir com toda a propriedade os deveres e os direitos dos docentes com a carne sofrida pelo azorrague da descriminação de que têm sido vítimas relativamente a outros profissionais de posse de uma ordem profissional criada, por vezes, por processos pouco claros na intenção, equivocados na atribuição e desqualificados pela menor preparação académica dos seus membros a nível de bacharelato ou, por vezes, nem isso.

Ainda mesmo sem querer assumir o papel de profeta da desgraça, uma classe que se não organize devidamente na defesa dos seus lídimos direitos, continua a caminhar para uma triste e vil servidão. E, de certeza, ninguém se deseja prefigurado em caricata sombra do prestigiado professor liceal de outrora ou numa triste e fragilizada figura de um forte e combativo Espartaco, agora, exangue para continuar a luta pela dignificação duma carreira docente liberta dos grilhos de prepotentes medidas oficiais em prejuízo dos professores e da própria Educação em geral.

Ou será que os professores portugueses, em nosso tempo, como escreveu o poeta francês de finais do século XIX, Jean Rimbaud, “acabam por achar sagrada a desordem do seu espírito?

P.S.: Tenho na forja um novo post em que será abordada a temática da profissão liberal, uma espécie de Fio de Ariadna.

4 comentários:

joão boaventura disse...

Vital Moreira explicava sentenciosamente as razões que justificavam a revisão ou a nova forma de que deveriam revestir-se as futuras Ordens Profissionais, no Diário Económico, de 10.10.07, constituindo-se como porta-voz do Governo que defendia o seu projecto na Assembleia da República, desde Junho de 007.

Decorridos quatro meses, depois deste aviso promissório, sai do prelo o novo Regime das Associações Públicas Profissionais, com o ritual temporal habitual: aprovado em 06.12.07, promulgado em 22.01.08, referendado em 24.01.08, publicado no DR n.º 31, 13.02.08.

A Ordem dos Engenheiros, ainda o normativo não passava do Projecto de Lei n.º 384/X, já opinva que:
“Comparando com o teor dos actuais estatutos da Ordem dos Engenheiros, nota-se uma clara redução de âmbito e de atribuições. / O presente projecto de lei remete as associações profissionais para uma actividade quase exclusiva de conservatória de registo de profissionais, o que não parece, de modo nenhum, aceitável.” (ver aqui.
Além deste pormenor, algumas Ordens opuseram-se à Declaração de Bolonha por o grau de licenciatura se alcançar ao fim de três anos (primeiro ciclo de seis semestres) e o de mestrado ao fim de dois anos (primeiro ciclo de seis semestres), o que, em engenharia, por exemplo, criaria uma desigualdade em relação às antigas formaturas, acrescentando que há actualmente 314 cursos de engenharia, mas a Ordem dos Engenheiros só reconhece 99, o que significa uma selecção muito rigorosa, e o descrédito de 68,5 % dos cursos. Daqui decorre que, face ao art.º 21.º, a Ordem os Engenheiros é compulsivamente obrigada a aceitar os profissionais forjados em cursos que não lhe merecem credibilidade.

Esta tomada de posição é séria se atentarmos nas construções de pontes e obras públicas ineficientes com a consequente morte de operários. Mas a lei do Regime das Associações Públicas Profissionais é peremptória e irresponsável ao estipular:

“Art.º 21.º (…) 3 – Em caso algum haverá numerus clausus no acesso à profissão, nem acreditação, pelas associações públicas profissionais, de cursos oficialmente reconhecidos.”

Com este articulado, tipifica-se um país periférico porque não lhe interessa a qualidade do ensino, mas a quantidade porque nela se desvanece aquela.

Relativamente à Ordem dos Professores, ficaria a Ordem impossibilitada de actuar como a Ordem dos Engenheiros que não admite engenheiros formados à pressão, problema que não afecta os Sindicatos por defenderem todo o tipo de tropelias nesta matéria.

Quanto ao ponto 2 do art.º 2.º, esclarece-se o óbvio:

“A constituição de associações públicas profissionais é excepcional e visa a satisfação de necessidades específicas (…), quando a regulação da profissão envolver um interesse público de especial relevo que o Estado não deva prosseguir por si próprio.”

A conjugação deste 2, do art.º 2.º, com o 3 do art.º 21.º, são pistas claras de que o Estado não larga mão da Educação porque consagra e enaltece a sua incapacidade de a gerir, além de consagrar a tecnológica sabedoria de que quanto menos a nossa juventude saber, mais e melhor a domina e domestica.

Melhor pano de fundo não lhe cabe: causa aequat effectuam (a causa iguala o efeito)

joão boaventura disse...

joão boaventura deixou passar

"...sabedoria de que quanto menos a nossa juventude saber, mais e melhor a domina e domestica."

fica-me mal fazer a emenda porque quem já leu deve ter corrigido automaticamente para

"...sabedoria de que quanto menos a nossa juventude souber, mais e melhor a dominará e domesticará."

Obrigado

Rui Baptista disse...

Caro João Boaventura:

O cerne de toda a confusão que se gerou no ensino superior nacional reside, em minha opinião, expressa em vários artigos de jornais e post's, no facto caricato do chamado Processo de Bolonha sofrer do pecado original da má tradução do grau académico anglo-saxónico de "bachelor" que qualquer dicionário baratucho nos diz ser a de bacharel.

Aliás, grau académico com longa e respeitada tradição no sistema educativo português. Sem ir mais longe, encontramo-lo na única universidade portuguesa do século XIX, a de Coimbra, e em figuras ilustres da Cultura como, por exemplo, Eça de Queirós, bacharel em Direito.

Inclusivamente, houve um curso de Direito nesta vetusta escola, depois de 25 de Abril, com a duração de três anos, com vida efémera ao contrário do que sucede neste país em que as asneiras têm a duração de verdadeiras pilhas "duracell" que duram, duram, segundo a propaganda comercial que lhes é feita.

Os anglo-saxónicos atribuem o grau de “bachelor”aos estudos de três anos de duração, nós que somos um país com oito séculos de história e que demos novos mundos ao mundo atribuímos o de licenciado. E assim chegamos ao ponto de termos que criar a distinção de cursos de licenciatura antes de Bolonha (a.B.) e depois de Bolonha (d.B).

Daqui a facilitar tudo foi o tempo de um simples suspiro. As ordens profissionais, garantia da qualidade dos cursos dos seus membros, mais precisamente, a Ordem dos Engenheiros teve o arrojo de contrariar o poder político ao não reconhecer os diplomas de licenciatura da Universidade Independente e o arrojo de, com isso, pôr em causa a licenciatura de José Sócrates gerando com isso um escândalo que ocupou as primeiras páginas dos principais jornais portugueses.

Tentou o ministério com a tutela do ensino superior segurar pelas pontas um diploma que não valia dez reis de mel coado, até que, finalmente, passado um ror de tempo, perante o clamor público,foi reposta a justiça e a Universidade Independente encerrou as portas.

Aliás, diz tudo isto Você, com a autoridade e a qualidade que preside aos seus textos. Eu limitei-me a trazer o seu comentário à colação para memória futura e para não cair no esquecimento.

Meu Caro João Boaventura, diz o povo que “água mole em pedra dura tanto dá até que fura”. Mas chegará toda a água das Cataratas de Niágara para furar o bestunto dos iluminados pelo estado a que chegou o ensino neste canto ocidental europeu?

maria disse...

Boa noite. Tenho lido textos do Nuno Crato e tenho-o ouvido falar na TV. Partilho várias das suas opiniões e gostaria de lhe colocar algumas questões mas não sei como fazer. Será possível indicarem-me como? isto se o Nuno Crato se disponibilizar, claro. Obrigada.

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