quarta-feira, 21 de abril de 2010

Cientistas em saldos II

Transcrevo o meu texto de opinião publicado hoje no Público:


Muitos funcionários públicos terão o seu vencimento congelado neste e no próximo ano. Os bolseiros de investigação científica têm os valores das bolsas congelados desde 2002. Se até 2013, como é previsível, não houver aumentos terão os seus vencimentos congelados por mais de dez anos. Isto é compatível com uma política séria de aposta na ciência?

Há não muito muito tempo atrás, o governo da anterior legislatura pediu à consultora Deloitte para verificar se as bolsas de investigação em Portugal estão "em linha" com as que são praticadas noutros países da Europa e América do Norte. A Deloitte disse sim senhor, a continha está nas costas da apresentação de slides e ainda lhe fechamos a marquise. E assim o governo decidiu manter as bolsas aos valores de 2002 até hoje, descansado com a fuga de cérebros.

A Delloite escolheu seis instituições estrangeiras para fazer a comparação dos valores das bolsas de doutoramento e quatro para as de pós-doutoramento (que considerou bastarem para representar toda a Europa e América do Norte), pegou nos valores e ajustou ao poder de compra de cada país. Em vários casos comparou as bolsas portuguesas com contractos aos quais estão associados mecanismos de protecção social efectivos que não existem para as bolsas portuguesas (e até fez essa ressalva). É completamente diferente ganhar 1000 euros por mês, já feitos os descontos correspondentes para a segurança social e com direito subsidio de desemprego, do que simplesmente ganhar 1000 euros por mês. E o simples senso comum bastará para concluir que 745 euros por mês (valor de algumas bolsas, que não foram consideradas no estudo comparativo), doze meses por ano, não poderá estar em linha com nada, a não ser com uma espécie de rendimento social de inserção para quadros qualificados. Será esta a melhor política para estimular a excelência na investigação em Portugal? Não obstante, foram chumbados recentemente dois projectos de lei (do BE e PCP) na Assembleia da República para actualização dos montantes das bolsas.

Mas nem tudo está perdido. Na mesma ocasião foram apresentados mais três projectos de lei que visam alterar o Estatuto do Bolseiro de Investigação Científica. Os projectos do BE e do PCP representam alterações profundas ao regime de contratação de jovens investigadores. O do CDS-PP propõe uma alteração pontual ao actual estatuto, de modo a enquadrar os bolseiros no Regime Geral de Segurança Social. Entraram os três em fase de discussão pública, uma vez que têm implicações na legislação laboral. A aprovação de qualquer um resultaria na integração dos bolseiros no Regime Geral de Segurança Social, o que seria um passo de gigante para a investigação em Portugal.

Explico porquê. Os bolseiros estão actualmente integrados no Seguro Social Voluntário, o que equivale a descontos para a segurança social pelo valor do Indexante de Apoios Sociais (€419,22). Ou seja, em caso de necessidade, por doença ou outra, o bolseiro fica a receber uma fracção de €419,22 (valor que também entrará para o cálculo da reforma) independentemente do valor real da bolsa. E não há subsidio de desemprego.

Não sou a favor de contratos vitalícios generalizados. Julgo que é saudável que as pessoas voltem ao mercado de trabalho de tempos a tempos e que as organizações se possam renovar. Mas é necessária alguma protecção social. E a integração dos bolseiros no Regime Geral de Segurança Social representa isso mesmo. Aliás, mais não é do que a tal Segurança Social igual para todos com o que governou acenou a quem não a queria no início da anterior legislatura. E a inclusão dos bolseiros (embora apenas os doutorados) no regime geral de Segurança Social até faz parte do programa do actual governo. No debate recente sobre estes projectos lei, o deputado Amadeu Albergaria mostrou a abertura do PSD para viabilizar esta proposta. Que desculpas haverá para não o fazer?

Os responsáveis da actual tutela gostam de evocar o grande aumento do número de investigadores por 1000 habitantes em Portugal, já superior à média europeia. A questão é como foi feito esse aumento (à custa da precariedade dos bolseiros) e se essa política de recursos humanos conduzirá a uma produtividade científica que contribua para o desenvolvimento de Portugal. Em Outubro de 2008, um conselheiro de Barack Obama disse que o financiamento da investigação fundamental não deveria ser vítima do colapso económico. Antes, deveria ser visto como uma maneira de fortalecer a economia. Se essa também é verdadeiramente uma orientação estratégia para o desenvolvimento de Portugal, então as políticas aplicadas às carreiras científicas têm que ser consequentes com isso. Pelo menos, minimamente. E esse mínimo, de momento, é integrar os bolseiros no Regime Geral de Segurança Social. E no actual enquadramento parlamentar há uma responsabilidade colectiva de todos os partidos nesse sentido.

13 comentários:

Fartinho da Silva disse...

Integrar os bolseiros no Regime Geral de Segurança Social? Já têm mordomias demais!

Agora, a sério: como é possível ainda termos investigadores? Por muito menos mudei de profissão!

Anónimo disse...

eu mudei de país.

Anónimo disse...

O direito ao trabalho é ainda um dos direitos fundamentais da Constituição da República Portuguesa, certo? Será pedir muito querer ser reconhecido como um trabalhador com todos os direitos e deveres? Infelizmente parece que sim!

Quanto a "Não sou a favor de contratos vitalícios generalizados. Julgo que é saudável que as pessoas voltem ao mercado de trabalho de tempos a tempos e que as organizações se possam renovar." ...esta frase soa bem, é certo, e também é certo que é necessário começar por algum lado, mas há também que mudar de mentalidades: ter 35, 40 ou 45 anos não pode ser visto como "demasiado velho para concorrer/arranjar um trabalho". Há que valorizar a experiência e dar oportunidades a todos e tem de haver um mercado de trabalho forte e saudável!!! Caso contrário de pouco vale a dita "mobilidade".

David disse...

Eu mudei de pais também!

José Mário Leite disse...

Há alguns factos que já ninguém questiona nos tempos actuais:
- a competitividade portuguesa não passa pela mão de obra barata e o jardim à beira-mar plantado só estimula o turismo que, sendo muito pouco para um país inteiro, qualquer vulcaozinho na Islândia ou outro capricho "natural" em Wall Street pode facilmente anular;
- a competitividade passa pela inovação;
- já não se inventa nada sem se saber muito (a evolução tecnológica é, definitivamente, de raiz científica)
- qualquer bom investigador é acarinhado e bem melhor remunerado no exterior

Se eles sairem à procura de melhores condições, quem mais perde é o país!

Se não fosse por uma questão de gritante justiça a melhoria das condições dos bolseiros de investigação científica justificava-se por uma simples questão de egoísmo nacional.

Pior que um cego é quem não quer ver!

José Mário Leite

Margarida Trindade disse...

Obrigada David, Achei o texto muito claro. Acredito que alguma falta de resposta da comunidade científica aos projectos de lei em discussão na assembleia da república deve-se a não se perceber bem o que está em jogo, pelo que textos como este são importantes.

Anónimo disse...

Um aluno (bolseiro ou não) de mestrado, doutoramento ou pós-doutoramento, é isso mesmo: um aluno (salvo situações de estatuto de trabalhador-estudante).

Este tipo de alunos recebem bolsas para fazerem trabalho de autoria, para o seu próprio CV - eles não estão a trabalhar para o benefício da comunidade (Meus Deus, quem acreditará nisso??!!)... no fim de terminarem os seus estudos de investigação, têm várias hipóteses: (1) docência; (2) carreira de investigador; (3) trabalho prático na comunidade (ah, pois é... é aqui que fazem falta!!!).

O facto de não haver vagas para as duas primeiras alternativas (que eram as mais apelativas, claro!!!), não justifica que agora se tranforme um percurso de sucesso pessoal numa profissão a remunerar pelo Estado!!!

Estamos em crise, e é necessário apoiar emprego efectivo - não alunos de doutoramento já a serem financiados pelo estado!!!

Rita disse...

Encontro-me na fase de procurar trabalho depois de um doutoramento em Portugal. Tive 3 entrevistas em grupos de topo na Europa e os 3 aceitaram pagar-me um ordenado; em Portugal foi-me dito que nao terei bolsa de posdoc. E esta hein?! quanto mais emprego...

Anónimo disse...

anónimo 22 de abril 2010 11:29,

considero que levanta genericamente boas questões, como por exemplo:

a) um aluno de doutoramento ou pós-doutoramento é um investigador?

b) qual o trabalho de investigação científica que tem valor para a comunidade (científica)?

c) o trabalho de um investigador reverte necessariamente para a sociedade? qual a taxa de retorno?

Quanto à pergunta a), a resposta é afirmativa. De um aluno de doutoramento espera-se que faça e apresente trabalho inovador, que conduz à publicação de 5 artigos em revistas internacioanis com arbitragem -- o número pode variar consoante a área --, pelo que é claro que estamos a falar de um investigador. A situação é ainda mais evidente se falarmos de pós-doutoramentos.

Quanto à pergunta b), parece-me difícil saber, mas o critério habitual é uma relação entre 4 variáveis: (i) número de artigos científicos; (ii) factor de impacto das revistas; (iii) citações por artigo; (iv) ranking na autoria.

Estará esquecido o caro anónimo, que se a revista for boa, e o artigo ainda melhor, então é bastante provável que muitas pessoas da comunidade científica o leiam e, espera-se, citem em trabalho próprio.

Acrescento ainda que um investigador não trabalha em isolamento, normalmente colabora com uma equipa, de pessoas mais experientes, e contribui positivamente para o todo. Portanto, não só se espera que o estudante de doutoramento seja um valor para a comunidade imediata com a qual colabora, como para toda a comunidade com a apresentação do seu trabalho, em diferentes formatos.

Portanto, como vê, as primeiras objecções que levanta não passam de ignorância.


Quanto à c), é uma pergunta difícil. Provavelmente a maioria não reverte. O problema é saber-se de antemão qual é que vai reverter e qual é que não vai reverter, e qual é o período de tempo que devemos admitir para fazer essa observação. Ora, ninguém sabe fazer isso, e toda a gente que tente fazer trabalho criativo (que é disso que estamos a falar) sabe que no próprio trabalho se encontram esquinas que parecem não levar a lado nenhum, quanto mais se aquilo poderá um dia reverter marginalmente para a sociedade.

Por outro lado, a ânsia de apresentar uma boa taxa de resultados (nº artigos por ano), que se pensa ser uma forma infalível de determinar o valor de um investigador, resulta em trabalho redundante com taxas de inovação muito pobrezinhas, i.e., a tender para zero.


Quanto à situação dos bolseiros. Sou a favor da sua integração no regime normal de segurança social, e da sua equiparação a um comum outro trabalhador, com todos os encargos que daí decorram.

A par disto é necessário um aumento no valor das bolsas, que para mim devia ser implementado cortando no número de bolsas atribuídas.

Délio Figueiredo disse...

Parece-me impressionante que continuem a haver "jovens executivos", como Rui Pedro Soares, ou mesmo "executivos sénior", como António Mexia, que ganhem milhões de euros por ano, enquanto que as bolsas de investigação continuam sem aumentos desde 2002. Que outro salário, subsídio, despesa de custo, ajuda de deslocação (a Paris ou a outro sítio qualquer), subsídio de reinserção, etc, é que não é aumentado desde 2002???

João André disse...

Só quem não compreende a realidade da investigação pode considerar que os estudantes de doutoramento não são investigadores. O anónimo das 15: 43 de 22 de Abril (não podem assinar com um nome qualquer, por favor?) já explicou porquê.

Quanto à questão do retorno para a sociedade há um aspecto importante a considerar. Não há um investigador que pense que o seu trabalho vai mudar o mundo. Habitualmente, o avanço científico é feito cumulativamente: acumulam-se diversas ideias e a certa altura alguém as junta todas e apresenta algo de novo.

Por outro lado, a contribuição do trabalho de um investigador não é facilmente compreensível por quem não esteja dentro do assunto (mesmo que seja alguém da mesma área científica). Sou engenheiro químico e fiz o meu doutoramento na área de membranas e não entendo exactamente qual a importância do trabalho da minha mulher, também engenheira química e que fez o trabalho na área de solventes para extracção. Compreendo o princípio sem problemas, mas não a aplicação, porque seria para uma indústria diferente daquela para a qual trabalhei.

Na Holanda, onde fiz o doutoramento, o financiamento estatal é obtido apenas se os proponentes assegurarem a participação de empresas que possam ter interesse na aplicação potencial da tecnologia em investigação. Na Alemanha, onde trabalho agora, os estudantes escrevem propostas de investigação (nem sempre para eles próprios) e complementam o financiamento do seu trabalho com projectos para empresas. Na Holanda os estudantes de doutoramento são chamados de "Assistentes de investigação". Na Alemanha são chamados de "Trabalhadores/Funcionários científicos".

Outra nota para quem escreva barbaridades destas: «[os BIC] não estão a trabalhar para o benefício da comunidade», uma pergunta: um engenheiro numa empresa de construção civil acorda todos os dias a pensar "bom, lá vou eu hoje ajudar a minha comunidade, que vida boa"? E que tal um gestor de conta num banco? Irá dizer "ainda bem que tenho este emprego e posso ajudar os outros"? Ou um médico, irá pensar que é bom poder ajudar os outros (ainda há quem pense desta forma, felizmente) ou antes pensará como é bom ter um emprego que é bem pago e com muitas opções?

José Mário Leite disse...

Para os que "não sabem qual o contributo da investigação para a sociedade" lembro que se estamos a discutir isso mesmo e com acesso a este blog, em qualquer parte do mundo onde estejamos é porque há satélites de comunicações.

O Sputnik, o primeiro satélite, que custou uma fortuna, dava voltas à terra e fazia pi-pi-pi.

Que interesse poderia ter isso para a sociedade?

José Mário Leite

Dolce far niente disse...

Olà David, muitos parabéns pelo artigo e por toda a valiosa discussao gerada.
Acho que existem algumas questoes de alguem que se calhar nao està bem por dentro da realidade cientifica, e é importante que estas discussoes surjam de forma a que todas as duvidas sejam exclarecidas.

Queria dar ainda uma achega. O dinheiro publico que paga os bolseiros vem da Fundaçao para a Ciencia e Tecnologia que é essencialmente financiada pela Comissao Europeia. Se deixar de haver investigaçao em Portugal, esse financiamento perde-se!

Sofia Leite

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...