sábado, 18 de outubro de 2008
A priori
A matemática é muitíssimo diferente da física ou de outras disciplinas empíricas porque se faz pensando apenas. É isto que em filosofia se entende por a priori. O a priori é todo o conhecimento que podemos obter pensando apenas, sem recorrer a qualquer informação empírica. Intuitivamente, a matemática dá-nos imenso conhecimento, mas não é conhecimento a posteriori ou empírico, pois os matemáticos não precisam de fazer experiências, nem observações. O a priori nada tem a ver com anterioridade, mas apenas com isto: depois de eu aprender os conceitos relevantes, depois de o meu cérebro se ter formado, depois de tudo isso, não posso saber se há água em Marte pensando apenas, por exemplo. Por isso, diz-se em filosofia que esse conhecimento é a posteriori. Mas estando na mesma situação, tudo o que tenho de fazer é raciocinar para saber o resultado de uma operação aritmética. Por isso, chama-se a priori a esse conhecimento. Precisamente porque podemos saber o resultado de uma operação aritmética pensando apenas é que um computador desligado da internet pode responder-nos à pergunta sobre uma operação aritmética, mas não pode dizer-nos se há água em Marte: o computador pode fazer um cálculo e dar-nos o resultado correcto no que respeita à aritmética, mas nenhum cálculo pode fazer para estabelecer se há ou não água em Marte.
O empirismo, defendido por filósofos como Carnap, Hume, Locke, Hobbes, Ayer, Berkeley, Quine e tantos outros, está obrigado a defender que afinal nada sabemos de substancial quando sabemos matemática. Isto porque o que caracteriza o empirismo é a ideia de que todo o conhecimento substancial é conhecimento empírico. Há quem pense que negar o empirismo é negar a ciência. Isto é falso. Russell, por exemplo, nega o empirismo, mas não nega a ciência. É verdade que Russell é muitas vezes classificado como empirista, mas não o é verdadeiramente, pois admite a existência de conhecimento a priori substancial.
De que lado está o ónus da prova? Parece-me que está claramente do lado de quem nega o conhecimento a priori. Este parece óbvio — fazemos matemática e lógica sem termos de recorrer à experiência: limitamo-nos a pensar. Temos de ter uma boa razão qualquer, que não seja circular, para recusar o óbvio. Acontece que não conheço qualquer boa razão para negar o óbvio, excepto a má razão ideológica de pensar que aceitar o a priori é abrir as portas à religião (não é) ou recusar a importância da experimentação nas ciências empíricas (não é) ou defender a prioridade da filosofia sobre a ciência (não é) ou... e há várias outras más razões deste género, todas ideológicas, todas falsas, e todas reveladoras de um tipo de prática intelectual que é a antítese da boa ciência. Ou de qualquer prática intelectual.
Eis duas teses diferentes: 1) todo o conhecimento substancial é empírico; 2) todo o conhecimento substancial da realidade espácio-temporal é empírico. 1 é muito diferente de 2 e uma pessoa pode aceitar 2 e rejeitar 1. Uma pessoa pode defender que há conhecimento substancial a priori, que é precisamente o caso da matemática e da lógica, mas que esse não é conhecimento sobre a realidade espácio-temporal. Essa pessoa terá então de dizer sobre que realidade é esse conhecimento. Russell, por exemplo, defendia que temos conhecimento a priori de universais e relações, e que este conhecimento é realmente substancial, mas não é conhecimento sobre a realidade espácio-temporal, e que todo o conhecimento da realidade espácio-temporal teria de ser a posteriori.
Mas uma pessoa pode ser mais radicalmente empirista, como os positivistas lógicos eram, e defender que o conhecimento a priori nem sequer é substancial, nem mesmo sobre qualquer realidade que não seja espácio-temporal, como os universais ou as relações. A rota típica para fazer isso é defender que o conhecimento a priori é meramente linguístico. Para fazer isto é preciso também conceber a linguagem não como uma coisa corriqueira do mundo, como árvores e mesas, mas antes como uma espécie de névoa fantasmagórica sem realidade definida. Isto porque se a linguagem tivesse uma realidade como as árvores e as cadeiras e dado que o conhecimento a priori seria conhecimento da linguagem, teríamos afinal de contas conhecimento substancial de uma realidade espácio-temporal: a linguagem. Esta posição é por isso teoricamente instável.
Outra posição muitíssimo radical, e que eu favoreço, é que sem o concurso da experiência e do a priori nada poderia ser conhecido. O conhecimento seja do que for tem sempre elementos empíricos e elementos a priori. Sem a experiência não posso saber se há água em Marte, mas sem a matemática não posso saber como é a órbita de Marte. Sem experiência não posso testar hipóteses, mas sem raciocínio não posso sequer levantar hipóteses e ainda menos concluir seja o que for com base na experiência. Quando se perde o medo virginal de misturar conhecimento a priori com conhecimento a posteriori ganhamos uma visão muitíssimo mais plausível do conhecimento humano. E que se lixe o facto de algumas pessoas pensarem que o a priori por alguma razão não é “científico”. Defender ideias com base no que queremos à partida que seja verdade para sustentar as nossas cruzadas ideológicas é uma perversão da capacidade humana para tentar descobrir como as coisas realmente são.
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43 comentários:
Caro Desidério,
Tu dizes:
"O empirismo, defendido por filósofos como Carnap, Hume, Locke, Hobbes, Ayer, Berkeley, Quine e tantos outros, está obrigado a defender que afinal nada sabemos de substancial quando sabemos matemática."
Quine defende que a matemática descreve entidades abstratas. Todavia, ele acredita que a evidência para isso é a experiência, pois ele acredita que a matemática é parte de uma teoria total sobre o mundo empírico. Se essa teoria postula entidades abstratas, so be it. Não estou defendendo a posição de Quine. Apenas acho que ela não se enquadra no que dizes no parágrafo supracitado.
Um abraço.
Acho que o Desidério acerta em cheio quando evidencia aqui a confusão que muita gente faz entre trabalho conceptual (filosófico analítico) e trabalho empírico (científico). Assim como nenhum matemático puro está à espera de uma experiência da física para resolver um teorema matemático, também nenhum filósofo analítico está à espera que a descoberta científica venha dizer ao filósofo o que faz e não faz sentido em relação a qualquer problema conceptual. Agora, o que novas descobertas científicas podem é desencadear novas questões conceptuais para o labor da filosofia analítica.
Muitas vezes acontece a aplicação por parte dos cientistas de conceitos inadequados às circunstâncias em que são aplicados, resultando depois daí inadequadas formulações das suas hipóteses e teorias. Muitas vezes os factos empíricos são correlacionados com conceitos injustificados. De facto muitos cientistas negligenciam a distinção entre questões a priori, ou conceptuais, de questões empíricas ou factuais. O Desidério tem razão quando diz que o ónus da prova está do lado de quem nega o conhecimento a priori.
«Quando se perde o medo virginal de misturar conhecimento a priori com conhecimento a posteriori ganhamos uma visão muitíssimo mais plausível do conhecimento humano.»
Concordo inteiramente.
Muitos cientistas não se apercebem dessa divisória categorial. Mas não há nada de misterioso nesta divisória. Na prática corrente do pensamento temos de cruzar constantemente esta divisória. De misturar categorias físicas com categorias fenomenológicas. O que acontece depois é cairmos inevitavelmente em dificuldades conceptuais. Como estas dificuldades não são factuais ou empíricas, não será de esperar que sejam resolvidas pelo labor científico.
Muitos cientistas consideram que isto que o Desidério diz, ou o que eu estou aqui a dizer, é uma bizantinisse da superficialidade das palavras, porque o que interessa são os factos. Mas os factos ou o pensamento científico depois só pode ser deslindado através da articulação de uma grande parte de conceitos previamente adquiridos, isto é, ‘a priori’.
Esta questão não tem tanto a ver com a verdade dos factos empíricos mas com aquilo que faz sentido e aquilo que é um contra-senso. O domínio do ‘a priori’ é o domínio do que pode ou não pode fazer sentido.
Perder o medo virginal é reconhecer que não é fácil detectar certas transgressões conceptuais, que se arrastam há séculos e que ainda hoje cientistas e filósofos continuam a transgredir, mas é ao mesmo tempo meio caminho andado para termos sucesso em nos desenredarmos delas.
Embora não pretenda criticar a sua tese central, aliás Kantiana, tal como Russell o reconhece (sem o concurso da experiência e do a priori nada poderia ser conhecido), portanto a noção de conhecimento como síntese de dois tipos de elementos, o raciocínio longo que apresenta está repleto de dificuldades, teóricas e de facto: a "antinomia" que traça entre a priori e a posteriori, donde derivam outras oposições, embora siga parcialmente Russell, esquece que a síntese de conhecimento está claramente explicitada em Kant, onde o "a priori" é também "anterior" ou, como dizemos hoje, uma "estrutura prévia" (dado rejeitarmos uma abordagem transcendental), que possibilita a própria síntese activa de conhecimentos que, em última análise, é realizada tendo em vista o conhecimento concreto da realidade empirica. Em última análise, o Murcho vê nessa oposição, empírico e "puro", a relação entre ciência empírica (física, por ex) e filosofia/matemática/lógica, mas numa perspectiva pré-crítica.
O a priori como "conhecimento que obtemos pensando apenas" é uma noção confusa, porque os identifica (pensamento e conhecimento) e despreza depois a mediação da linguagem e da tradição teórica e histórica. Pensar e conhecer são diferentes e, mesmo que fossem o mesmo, não pensamos a partir do nada: somos socializados em estruturas prévias de conhecimento e da lingua(gem) sem as quais não podemos nem pensar nem conhecer. Enfim, é um texto antifilosófico no sentido de ser pré-crítico, portanto, anterior a Kant. (Isto para já não falar do conhecimento inato que despreza!)
Olá, Alexandre! Obrigado pela correcção.
Já agora vale a pena acrescentar uma nota. A atitude antifilosófica gerou em mim, quando era estudante, uma ansiedade compreensível por saber se nas universidades a sério, as universidades de maior qualidade do mundo, a filosofia tinha realmente sido banida e seria vista como um arcaísmo místico irrelevante. Mais tarde descobri, claro, que esta atitude era fruto de profunda ignorância. Nenhuma das grandes universidades de excelência do mundo exclui um departamento de filosofia, e algumas delas têm dos melhores departamentos do mundo: MIT, Harvard, Princeton, NYU, Oxford, Cambridge, para citar algumas das melhores. E que tipo de trabalho se faz nestas universidades? Quem sabe o que se faz sabe que não se fazem conversas à balda, mas sim teorização extremamente sofisticada e importante sobre problemas centrais insusceptíveis de serem tratados empírica ou formalmente. O problema do cientismo é deitar este tipo de estudo ao lixo, precisamente por não ser formal (ou seja, matemático ou lógico) nem empírico. Dado que quem tem este tipo de posição tipicamente desconhece a bibliografia filosófica produzida por nestas universidades, a discussão é tola porque é como estar a tentar convencer quem nunca saiu do Alentejo que o Brasil não é uma mera invenção das telenovelas. Como se costuma dizer, a prova do pudim está em comê-lo. Se eu sustentei esta discussão com o Luís e o João é por achar que o tipo de posição que eles defendem pode ter efeitos desastrosos em muitos estudantes. Estou-me nas tintas para o que alguns dos meus colegas cientistas pensam da filosofia, dado ser evidente que outros não pensam desse modo (e por isso há um filósofo de serviço num blog de ciência). A filosofia não é conversa da treta, nem é ciência mal feita, nem é misticismo, nem é jogos de palavras. É uma disciplina que já produziu algumas das mais sofisticadas e sérias teorias humanas. Estas teorias são especulativas, porque não sabemos se são verdadeiras e provavelmente nunca poderemos saber. Mas saber o que podemos ou não saber e porquê já é um problema tipicamente filosófico. E afirmar que só a investigação empírica da realidade é legítima é em si uma posição filosófica, que não pode ser defendida empiricamente, pelo que é incoerente.
Parece-me fazer sentido favorecer o que diz o Desidério no seu post “que sem concurso da experiência e do ‘a priori’ nada podia ser conhecido” e no que acabou de acrescentar aqui no espaço dos comentários.
Isto parece que não entra em conflito com o que diz o Francisco.
É impressionante o conhecimento que resulta do meticuloso trabalho empírico da ‘ciência’. Mas depois, se os cientistas com tal trabalho não o acompanharem de um cuidadoso trabalho do aparelho conceptual, que tem em conta muito elemento ‘a priori’, acabam por se enredar em imensas confusões.
O pecado ‘virginal’ daqueles que desdenham isto, é a ignorância das armadilhas e das falácias conceptuais em que muitas vezes se enredam. E ignoram essas armadilhas porque não dedicam tanto tempo quanto era necessário para desenredar os nós lógico-gramaticais do pensamento. Por isso é que os cientistas argumentam cada vez menos porque se dedicam cada vez mais às experiências empíricas.
Ao fim e ao cabo, em parte, o que os filósofos analíticos fazem com o ‘a priori’ é compreender melhor o que já foi descoberto pela experiência e ensinar os empíricos a fazer melhor as perguntas para ver se conseguem descobrir o que ainda não é conhecido. E depois disto ser bem sucedido, voltam os filósofos analíticos para partir mais pedra conceptual.
Fernando Dias
Estamos de acordo quanto à necessidade de reintroduzir o espírito crítico na prática científica, sobretudo no domínio das neurociências. Porém, nos laboratórios a ciência que se faz é mais normal do que crítica, o confronto que abordo no meu post.
O que critico nos posts do DM, não por paixão mas por razões ligadas à responsabilidade pelo futuro, é uma certa prática "complexada" da filosofia, cujo domínio não se esgota nas suas relações com as ciências. Porém, o a priori como estrutura prévia está presente na prática científica: esse conhecimento prévio é que possibilita a síntese de conhecimento. Portanto, há um outro sentido de a priori que não se esgota na matemática ou na lógica, que tb requerem esse outro a priori. Todas as ciências são sínteses activas de conhecimento e, nesse sentido, incorporam o tal elemento "especulativo" (não gosto do termo), e a Filosofia não dispensa a empiria: nada impede um filósofo de usar procedimentos experimentais ou aplicar determinadas teorias matemáticas. Precisam é de adquirir esses conhecimentos.
E nada impede os cientistas de usam as teorias filosóficas e incorporá-las na ciência. De facto, a história da ciência revela essa prática de anexar. É tudo um problema de competência. Não sinto necessidade de traçar uma linha de demarcação entre ciência e filosofia. O que interessa mesmo é criar boas teorias e avançar..., sem perder o bom senso e a sensibilidade para outras formas de experiência e esquemas interpretativos. No domínio do conhecimento, o pluralismo teórico faz bem à saúde: possibilita a controvérsia e esta o avanço para a frente.
Quero aqui espressar o meu apoio a todos os estudantes de filosofia e o meu desejo que sejam pelo menos tão bem remunerados e ou reconhecidos como os seus semelhantes da ciencia (ou melhor da maneira que isto anda).
Não vejo como é que defender que todo o nosso conhecimento tem base na experiencia e que sem ela nós nem um cerebro formado temos, como seres e como especie, pode por em risco os estudantes de filosofia. Por isso não quero mais defender esse ponto de vista, não vá estar enganado. Eu não faço realmente questão. Quando ataquei os filosofos que escarneciam da experiencia, obviamente me referia a apenas esses, sejam eles quem forem, mas se calhar aqueles de quem o Desidério me falou que acham a ciencia a pior coisa do mundo. Não incluia os empiristas, por exemplo, nem outros como Bacon e Voltaire, Aristoteles, Einstein (sim eu acho que ele tambem era um filosofo mas se estou errado por favor não me espanquem).Na realidade uma boa serie deles. Quero que não haja duvidas nisso.
Para mais gostava de lembrar que a ciencia e a filosofia estão do mesmo lado da barricada na guerra contra o falso conhecimento. É por isso que não desejo nem vejo sentido em continuar a argumentar. Muito menos se alguma coisa pode ser tida como pessoal. As ditas guerras das ciencias tiveram o resultado lindo que tiveram.
Um bem haja a todos.
A Matemática faz-se pensando apenas? Penso que esta proposição é hoje contestada por alguns matemáticos, como Gregory Chaitin, que já a classificam de ciência “quase-empírica”, aproximando-a da Física. O que, creio, estará em harmonia com a ideia final do seu artigo: «...sem o concurso da experiência e do a priori nada poderia ser conhecido».
Paulo Guerra
Desidério,
«sem o concurso da experiência e do a priori nada poderia ser conhecido. O conhecimento seja do que for tem sempre elementos empíricos e elementos a priori.»
Então és tão empiricista como eu. Ninguém diz que se pode ter conhecimento proposicional sem ter uma síntaxe que permita exprimir proposições (isso seria contraditório). Sendo essa síntaxe o que se chama a priori, então há lá algo de a priori. Qualquer modelo simbólico da realidade pode ser gerado por uma máquina capaz de produzir a sequência correcta de símbolos. Por exemplo, um computador podia ter escrito esse teu post completamente a priori (era só uma questão de sorte o de numero de tentativas).
Mas o modelo só é conhecimento quando feito corresponder à realidade. E é por isso que não se pode dizer que há conhecimento a priori, e nem é verdade que se possa fazer matemática só a pensar. É que se for só a pensar podes definir cada operação e cada elemento como bem quiseres e vais acabar com algo muito diferente do que se chama matemática (e que não servirá para nada).
A logica e a matemática dependem de axiomas. Esses axiomas não os encontras só a pensar. Precisas de os criar à medida do que a tua experiência te indica ser necessário.
PS: foi pena não teres podido vir a Braga. Teria sido engraçado discutirmos estas coisas em pessoa :)
O modus ponens não foi descoberto empiricamente. É algo que se sabe a priori que é válido.
Outra coisa diferente é esta: o que o faz ser válido? O pensamento apenas? Não. A realidade. A explicação disto é simples: a validade dedutiva é o que acontece quando é impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Mas é a realidade que faz as proposições serem verdadeiras ou falsas. Logo, é a realidade, e não o pensamento, que faz as deduções válidas serem válidas.
Se o modus ponens fosse conhecido pela experiência, não poderia haver dedução. Tudo seria conhecido por indução. Se isto fosse verdade, teria de ser provado indutivamente. Ora, a indução científica não é conversa de café: é algo com um elevado grau de precisão, que envolve experimentação, controlo de terceiros, etc. Onde está a prova científica, indutiva, de que todo o raciocínio é indutivo? Argumentar dedutivamente a favor da tese de que todo o conhecimento é indutivo é auto-refutante.
"o que o faz ser válido? O pensamento apenas? Não. A realidade. "
Nao entendo onde entra aqui a realidade ... (i) o teorema de Pitagoras e' uma proposicao; (ii) a sua validade deduz-se, pelo pensamento apenas, a partir dos axiomas. Qual e' o papel da realidade na deducao do teorema de Pitagoras? Ou esta' a falar de algo totalmente distinto?
O teorema de Pitágoras não é válido. Nenhum teorema é válido. Só os argumentos podem ser válidos ou inválidos. Os teoremas são proposições e as proposições são verdadeiras ou falsas, mas não podem ser válidas ou inválidas.
"Validade" em lógica não quer dizer "fixe, interessante, com valor, verdadeiro, etc" tal como "massa" em física não quer dizer "esparguete, dinheiro, cacau, verdura, etc".
OK, obrigado,, ja' entendi.
Se alguém falar de massa, velocidade ou energia numa conversa sobre física, qualquer cientista ficaria incomodado se visse estes termos usados à maluca, como se fossem palavras de cozinheiros.
Mas em filosofia eu tenho de aceitar pacientemente que os colegas cientistas usem os termos da lógica como se a lógica fosse uma coisa de cozinheiros, com todo o respeito que me merecem os guisados e os refogados.
Algo está errado, ou estou a ver mal? Ainda preciso de demonstrar o cientismo óbvio desta atitude? Nenhum biólogo falaria levianamente de quarks. Mas então por que razão alguns cientistas falam levianamente da lógica e da filosofia? Resposta: porque a lógica e a filosofia é coisa de cozinheiros; não vale a pena levar a sério. Cada qual diz o que lhe apetece e pode filosofar à maluca, e está tudo ao mesmo nível.
Desiderio, eu acho que voce esta' certo numa parte, errado noutra. Esta' certo quando diz que os termos teem um siginificado tecnico em cada disciplina (seja em fisica ou filosofia). A conversa torna-se mais dificil quando parte das pessoas nao dominam os termos e os usam com significados diferentes. Esta' errado quando deduz que isso e' 'cientismo' e/ou desprezo pela filosofia. E' apenas ignorancia dos termos tecnicos.
Por outro lado, nao me parece que - nomenclatura 'a parte - eu estivesse a cometer um erro logico ou a fazer uma pergunta absurda no meu comentario das 18:42. 'Simplesmente, usava o termo 'valido' de forma pouco rigorosa quando queria na verdade dizer teorema 'verdadeiro'. Em vez de verdadeiro, disse teorema valido. Uma vez que a ambiguidade terminologica foi resolvida, ja' se pode avancar na discussao e eu percebi o que e' que o Desiderio queria dizer. Se eu tivesse sido muito 'bem educado' e nao quisesse incomodar o Desiderio correndo o risco de utilizar termos iandequados, o que e' que acontecia? Ficava a pensar que o Desiderio estava a dizer coisas erradas, porque simplesmente poderia nao me aperceber que o mal entendido residia numa ambiguidade terminologica.
Talvez tenhas razão, Miguel, e seja eu que estou a ver fantasmas. Mas dez anos volvidos a divulgar e publicar livros que apresentam a filosofia a leigos, o efeito parece-me ter sido nulo, ou perto disso. Ora, se as pessoas não estão interessadas em ler os livros que explicam cuidadosamente estas coisas, o que se pode inferir daí quanto ao interesse da discussão? Não sei se és biólogo ou outra coisa qualquer, mas imagina que há dez anos andas a divulgar a biologia e muitas pessoas -- ainda por cima não quaisquer pessoas, mas colegas académicos -- continuam a falar contigo presumindo que os seres humanos descendem dos macacos (versão pimba da teoria da evolução)?
O modus ponens não foi descoberto empiricamente. É algo que se sabe a priori que é válido.
Vejo que o sr. Desidério continua teimosamente na sua, e eu, para não desiludir, continuo na minha.
O modus ponens não foi descoberto empiricamente? Como? O modus ponens não passa de uma abstracção da causalidade. A causalidade não foi observada pelos humanos empiricamente durante centenas de milhares de anos desde que ganhamos consciência? Não perceberam os primeiros humanos que se fossem agarrados por um leão eram comidos? Que se bebessem água não morriam? Que se fizessem ferramentas, conseguiam fazer as suas tarefas melhor?
O modus ponens sabe-se que é a priori... as coisas que eu leio!
Não me leve a mal, Desidério. Agradeço imenso esta discussão, e admiro muito tudo o resto que tem escrito. Mas isto é falso! E foi-me logo arranjar um exemplo que é o mais fácil de refutar que todos! Acho que não existirá conceito mais empírico do que o modus ponens... mas sempre pode tentar descobri-lo!
O Desidério tem razão. Eu ultrapassei a minha area de conhecimentos e desrespeitei um trabalho que aprecio (ao contrario do que deixei transparecer). Ao olhar para os comentarios vejo que fui contra os meus proprios criterios. So uma coisa, eu tenho lido sobre filosofia sim, mas se calhar fui um mau aluno e tive maus professores nos livros de divulgação que escolhi. Tentei varias vezes estudar nos livros originais mas requerem como o Desidério refere um conhecimento especifico elevado e tive de desistir. Alem de pedir desculpa ao Desidério, gostava de lhe apontar uma qualidade que o fará estar acima de muitos outros divulgadores (para alem de filosofo) que é a coragem. Ha coisas que precisam de ser ditas mas poucas pessoas não têm coragem numa altura em que toda a gente tem direito a uma opiniao - Sobre o que faz chover, sobre o que cura, sobre a evolução na Terra. Eu aprendi a minha lição. Espero que o Desidério possa aceitar as minhas desculpas.
"Ha coisas que precisam de ser ditas mas poucas pessoas não têm coragem"
queria dizer: mas poucas pessoas têm coragem
Dá-lhes com força, Desidério! Que não te doam os dedos!
Gostaria também de adicionar uma pequena agulha provocatória. Quando o Desidério escreve isto:
De que lado está o ónus da prova? Parece-me que está claramente do lado de quem nega o conhecimento a priori. Este parece óbvio — fazemos matemática e lógica sem termos de recorrer à experiência: limitamo-nos a pensar.
Não estará realmente a escrever isto?:
Como eu não faço ideia como é que fundamento a minha teoria, e porque basicamente sou bués de inteligente e não suporto que venham praqui uns badamecos que na percebem peta de filosofia a mandar vir bitaites, mato dois coelhos numa cajadada e digo que são só eles que têm de provar a sua teoria, ahah, e se forem burros o suficiente para caírem na esparrela de o fazer, vou-lhes dar com a marreta em todos os erros técnicos que encontrar que nunca mais vão desrespeitar-me desta maneira!
Acham que esta é uma maneira errada de proceder? Provem-me! O ónus está do vosso lado!! (hihi, posso aprender de gostar disto!)
:p
Que tem o modus ponens a ver com a causalidade? Luís, estás a confundir tudo.
Mesmo admitindo que o modus ponens tem algo a ver com a causalidade, dizer como dizes que os seres humanos adquiriram por experiência ao longo de anos o conhecimento da causalidade é irrelevante para o a priori. Isto porque o que conta é que eu, hoje, não preciso de milhares de anos de experimentação para saber que o modus ponens é válido. Sei disso apenas a pensar.
Mas tudo isto é absurdo. Nós não sabemos que o modus ponens é válido por causa da causalidade. Tal como não sabemos por causalidade que se um objecto A é maior do que um B e B maior do que um C, então A é maior do que C.
Mas agora há um aspecto mais importante: o método. Não estou a fazer nada de especial quando digo que o ónus da prova está do teu lado. Na verdade, estou a fazer exactamente o tipo de coisa que tu como cientista fazes o tempo todo. Se tivesses de refutar todas as ideias malucas antes de poderes fazer seja o que for, não fazias ciência. Por exemplo, estás no laboratório e não acontece o que estavas à espera de acontecer. Terás de refutar primeiro a ideia de que um espírito oculto está a manipular a experiência? Ou terás de refutar primeiro que não estás a sonhar ou a ter alucinações sempre que conferes o resultado? Não. Partes do que é mais óbvio e mandas o fardo da prova para o outro lado.
Eu estou a fazer o mesmo. Qualquer pessoa excepto uma pessoa ideologicamente motivada por uma má compreensão da ciência vê que fazemos matemática e lógica a priori, e não empiricamente, como fazemos história ou sociologia. Poderá o conhecimento a priori ser uma ilusão? Sim. Poderá ser todo o conhecimento a priori reduzido ao conhecimento empírico? Sim. Mas o fardo da prova está do lado de quem quiser fazer a redução e não do outro lado. Caso contrário, com igual arbitrariedade eu posso dizer que a física é toda uma tolice que na realidade é feita exclusivamente com os dedos dos pés. E agora não arredo pé enquanto não me refutares isto, mostrando que é impossível.
Não dignificas este blog, nem a ti mesmo e ainda menos dignificas a ciência com esse tipo de atitude. É assim que escreves artigos científicos? À maluca? Claro que não.
Obrigado pelas tuas palavras, João.
Desidério, não se zangue. Eu não estou a levar esta conversa tão seriamente ao ponto de me zangar ou chatear, nem quero que faça o mesmo, e se porventura pensa que o zombei, peço desculpa, não foi a minha intenção, zombei de algumas ideias, o que é diferente.
Esclareço que respeito a sua autoridade sobre o assunto. No entanto, como todos sabemos, o argumento pela autoridade é sempre falacioso, e um espírito crítico é sempre saudável. Acontece que neste ponto preciso temos uma pequena diferença.
O que me espanta é que consegue ao mesmo tempo pensar que a inteligência e a observação são fundamentalmente necessários um ao outro, qual simbiose perfeita, mas depois descamba sempre num "a priori" da inteligência, e não vejo na sua exigência de provas em que isto não é assim senão um chutar para canto.
É claro que é injusto, por mais que pense o contrário. Não me é fácil provar um negativo, é muito mais fácil tentar encontrar um positivo (e assim refutar o negativo).
Parece-me apenas lógico que uma simbiose nunca exista sem um dos elementos, e se se postula que um desses elementos existe primeiro, é nesse preciso momento que se postula que o outro não tem ainda qualquer papel, que lhe é consequente. Isto parece-me inconsistente com a teoria da evolução.
Para mim, é tão inconsistente como dizer que o amor de um casal começa por existir "a priori" numa pessoa. A frase pode parecer verdadeira à primeira vista, mas temos de admitir que se não houvesse a segunda pessoa como haveria sequer esse amor? Percebemos que para existir tal fenómeno tem forçosamente que existir o par.
Não existe pensamento sem "matéria" para pensar. O Descartes percebeu isto bem: "Penso, logo existo", mas para o fazer, precisa de primeiro observar que existe.
Não pense que estou a tentar colocar o empírico antes do pensamento, acho que são instantâneos. Não existe observar sem pensar (ou pelo menos a memória desse pensar), não existe pensar sem observar (ou pelo menos a memória desse observar).
Fala do Modus Ponens e de como não é a causalidade que a gerou. Vejo o meu erro. No entanto, pode-se fazer a pergunta: onde se gerou o modus ponens? Como se criou tamanha coisa tão "abstracta" do universo, que até se pode considerar como "a priori"? Foi algum "Eureka"? Ou terá sido uma evolução lenta do pensar? Se foi a segunda, onde surgiu?
Mas o fardo da prova está do lado de quem quiser fazer a redução e não do outro lado.
Não. O fardo da prova está do lado de quem afirma determinada coisa. E não fui eu que escrevi o post, meu caro :). Escreveu X. Eu pergunto, "Mas porque é que pensa isso, onde está a prova?", resposta: "Porque é evidente, e se não acreditas em mim, prova que estou errado". Bom, evidente para si, mas pouco para mim. E estou ainda bastante insatisfeito...
Cumprimentos.
Os argumentos de autoridade não são sempre falaciosos. São falaciosos quando têm certas propriedades, não o são quando têm outros. Se todos os argumentos de autoridade fossem falaciosos, não poderíamos saber a maior parte das coisas que sabemos. Como sabe o Luís que é filho de quem pensa que é filho? Como sabe que há existia mundo antes de você ter existido? Como sabe que Neil Armstrong foi à Lua? Se você insistir em provar directamente todas estas coisas, em vez de confiar na autoridade de quem o informa disso, quase nada poderia saber.
E este é outro mito muito comum entre cientistas: a ideia de que todos os argumentos de autoridade são falaciosos. Curioso é saber de onde vem este mito: dos escritos dos grande Galileu. Mas Galileu não argumentava contra todo e qualquer argumento de autoridade, mas contra argumentos de autoridade falaciosos. E depois alguns cientistas posteriores desavisados, e obviamente não muito prendados em termos de raciocínio e compreensão, como é o teu caso (risos), baseiam-se cegamente numa autoridade que nem leram e repetem sem pensar que todos os argumentos de autoridade são falaciosos. Patético, Luís. Este tipo de tolices não é bom para a ciência, para a sociedade, para ninguém. Talvez seja bom para bestas como os criacionistas, porque se a ciência fosse realmente esta choldra, eles teriam razão em dizer que choldra por choldra, mais vale aceitar o que seja quem for acha que é espiritualmente confortável, seja por que razão for.
Se não há conhecimento a priori, Luís, não pode haver a simbiose entre a priori e empírico para produzir conhecimento. Se eu digo que a água é H2O, não posso ao mesmo tempo dizer que na verdade, vendo bem, não há O, tudo é H. E isto é o que você está a fazer, Luís.
A ideia de que não se pode provar uma negativa é outro mito científico, ou pelo menos de cientistas tolos como o Luís (risos). Podemos provar negativos sim. Por exemplo, provámos que não há flogisto. Como? Mostrando que não precisamos dessa hipótese. Esta é uma maneira de provar negativos. Outra maneira de provar negativos é mostrar que a hipótese da sua existência implica impossibilidades ou implausibilidades. Nenhuma destas provas é à prova de bala? Pois não. Mas nenhuma prova em ciência é à prova de bala, sejam provas de negativos ou não.
Portanto, Luís, juizinho (risos). Talvez seja melhor aparar a barba rija, que está a estorvar-lhe claramente os neurónios.
Fartei-me de gozar contigo para te mostrar que não estou zangado, ok? Agora não te zangues tu.
Decididamente, a internet é péssima a transmitir o "tom", caro Desidério. Nunca me zanguei na nossa discussão, e sempre li o que escreveu e escrevi as respostas com um sorriso na boca. Agora não é excepção. Tenho mais que fazer do que me zangar com alguém na internet!
1. Quanto à sua frase sobre o argumento pela autoridade, fez-me rir. Obviamente que todos os argumentos que são verdadeiros não podem ser falaciosos, independentemente de quem os profere, por definição! O que é falacioso (e perigoso) é pretender que o argumento é verdadeiro porque falou um especialista da matéria. Obviamente, tendo em conta a economia de recursos, não vou duvidar de tudo. No entanto a ciência deve a sua garra actual a esta dúvida permanente. E sempre que num campo específico o cepticismo é censorado, todo esse campo sofre um enorme retrocesso científico.
2.A ideia de que não se pode provar uma negativa é outro mito científico, ou pelo menos de cientistas tolos como o Luís
Mais tolo não será quem não souber ler? (repare, embora eu tenha gozado com as suas ideias, nunca até agora proferi uma ofensa pessoal. Constato que essa barreira é difícil de compreender até entre pessoas com elevado nível educativo) Eu nunca disse ser impossível, eu disse ser mais difícil. Essa é uma ratoeira onde não me pega (já li o bastante sobre essa temática). Convém colocar os óculos antes de mandar respostas "à toa". :p
3.Se não há conhecimento a priori, Luís, não pode haver a simbiose entre a priori e empírico para produzir conhecimento.
Mas aí é que está. Você diz que é impossível essa simbiose se a coisa fôr instantânea, e no entanto não é, somente é muito difícil. Não é por acaso que não aparecemos neste mundo e com os nossos conhecimentos "a priori" debastamos os mistérios como se fossem manteiga. O conhecimento é muito "caro" e é por isso que gastamos milhões a tentar divulgá-lo na educação.
Se eu digo que a água é H2O, não posso ao mesmo tempo dizer que na verdade, vendo bem, não há O, tudo é H. E isto é o que você está a fazer, Luís.
Onde fiz eu isso? A falácia do meio excludido diz-lhe algo? Não defendi eu precisamente que sem O e H ao mesmo tempo, não há água? O seu exemplo é perfeito, e agradeço desde já. Como pode o "O" ter algum "a priori" em relação ao "H"? Essa noção neste exemplo revela-se ridícula. Mais uma vez, obrigado pela excelente analogia.
Não há argumentos verdadeiros nem falsos.
E o a priori nada tem a ver com anterioridade nem simultaneidade.
Não há uma falácia do "meio excludido", há é uma verdade lógica chamada lei do terceiro excluído.
Que é precisamente um exemplo de algo que sabemos a priori e que não pode ser conhecido empiricamente.
"A ideia de que não se pode provar uma negativa é outro mito científico"
Agora até me vieram lágrimas aos olhos! Há pelo menos dois anos e meio que ando a defender isto em caixas de comentários de blogues, mesmo sem ter lido a bibliografia básica! Parecia lógico!
Mas fui enxovalhado, insultado, cuspido, escorraçado! Mas Deus é grande e pela mão competente de um ateu mostrou que eu tinha razão!
Bem hajas, Desidério!
Continuas a dar-me pauladas por tecnicismos e continuas a não responder-me realmente. Seja. Quando escrevi "a priori" significando antecedência sabia estar a cometer uma imprecisão que já tu tinhas esclarecido. Fi-lo por preguiça mental em descobrir outro termo mais apropriado. Não pensei que ignorasses o argumento por causa disso. Vejo também este assunto como uma poeira nos olhos, pois defines o termo "a priori" deste modo:
O a priori é todo o conhecimento que podemos obter pensando apenas, sem recorrer a qualquer informação empírica, e recorres a um link que mostra uma menor certeza sobre o assunto:
Further, a priori justification is fallible, and both it and a priori knowledge are defeasible, both by a priori and empirical evidence. Kant seems right in arguing that not only analytic propositions can be justified, and known, a priori, though many reject his account of how synthetic a priori knowledge is possible as obscure and unconvincing. Perhaps philosophers were mistaken in thinking that if there is an explanation of how a priori justification, and knowledge, are possible it must be of just one type.
Quando vejo muitos perhaps nas tuas fontes e contraponho-os com as tuas certezas vejo onde está o problema.
No entanto, usas termos como a posteriori para definir o contrário de a priori... confundindo ainda mais os termos.
Lê o comentário do Ludwig aqui em cima para compreenderes melhor o que indicamos:
A logica e a matemática dependem de axiomas. Esses axiomas não os encontras só a pensar. Precisas de os criar à medida do que a tua experiência te indica ser necessário.
Pensa em Newton, nas suas derivadas, pensa na raíz de menos 1, etc.
Talvez a melhor maneira de te expressar o meu argumento é dizer que todo o conhecimento da lógica vem de algum lado, e não necessariamente de nos fecharmos dentro de um quarto e pensar. Nós usamos essa lógica a priori (se usarmos o modo como usas esse termo), mas o conhecimento dessa lógica é uma dádiva, não uma capacidade inerente do ser humano. Do mesmo modo poderia eu dizer que sei que o Evereste é a montanha mais alta do mundo, porque é um conhecimento empírico que me foi dado. Eu compreendo a tua analogia do computador desligado, a minha contenção é que não existe computadores sequer se não existir um mundo "exterior" que os fabrique.
Faço uma última analogia. O conhecimento "a priori" que defines é igual a dizer que um trecho de uma ponte se encontra "a voar", sem tocar no chão. Ora, caro Desidério, evidente! A minha contenção é que sem pilares de vez em quando (chamadas à realidade, feedbacks, empirismo), a ponte colapsa. Do mesmo modo, podemos fazer muitas deduções e induções sobre o mundo quando dele desligados. No entanto, no final do dia, ou antes de publicar o capítulo, devemos sempre comparar essas conclusões com a realidade e ver se batem certo. É o que a minha cara mãe, professora de física, diz sempre aos seus alunos: se vocês estiverem a calcular a velocidade de uma bola em queda livre desde o terceiro andar no momento em que bate no chão e o resultado for 1000 km/h, algo não bate certo.
Concordo com este teu parágrafo:
Outra coisa diferente é esta: o que o faz ser válido? O pensamento apenas? Não. A realidade. A explicação disto é simples: a validade dedutiva é o que acontece quando é impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Mas é a realidade que faz as proposições serem verdadeiras ou falsas. Logo, é a realidade, e não o pensamento, que faz as deduções válidas serem válidas.
E no entanto, como sabes que a realidade está a fazer as proposições serem verdadeiras ou falsas, se não observares que de facto é assim? De que serviria a dedução se não funcionasse de facto? E antes que me dês na cabeça, repara que contra-sensos é o que a ciência mais tem descoberto no século XX. Questões como a causalidade, probabilidade, o gato de schrodinger, etc., são tudo coisas que atentam contra a lógica comum da indução e dedução. Existe o perigo actual de tudo ser senão uma questão probabilística. Compreendemos então que estas regras lógicas não são senão ferramentas úteis que por enquanto ainda funcionam excelentemente.
...Que é precisamente um exemplo de algo que sabemos a priori e que não pode ser conhecido empiricamente.
Mas não foi a experiência de debates que a formulou? É como dizeres que o conhecimento da existência da lua é "a priori", só porque digo que ela existe (e não a estou a vê-la neste momento). Eu tenho de a ter visto ou alguém contar-me da sua existência. Sempre. Será o reconhecimento de algo, algum fenómeno, algum maneirismo, sempre um conhecimento "a priori"?
«Parece plausível a um cientista que não se pode provar negativas porque não há experiências decisivas que possam provar negativas.»
Sim...
«porque não há experiências decisivas para provar seja o que for: mandamos uma sonda a Marte e ela fotografa água, mas a foto pode ter sido adulterada por qualquer coisa e ser enganadora; a máquina faz uma experiência química e manda o resultado»
Exacto!
Pode ser impossível provar certas negativas, no sentido «forte» do termo provar.
Mas é possível entender que estas negativas sejam tão palusíveis como a quadratura da terra, ou a teoria geocêntrica...
É como a ressurreição de Jesus, não podemos "provar" que não aconteceu (no sentido forte), mas não temos melhores razões para acreditar nisso do que para acreditar que existem sereias e Dragões.
Este esclarecimento do Desidério foi ao encontro daquilo que penso sobre este assunto.
Neste aspecto a distinção que os ingleses fazem entre "proof" e "evidence" é muito útil.
Infelizmente o termo "indício" parece muito fraco: temos mais do que "indícios" de que a terra é redonda, ou de que os Dragões não existem, mesmo que não tenhamos "provas" no sentido mais forte do termo.
Se não há a priori, a matemática devia ser banida das universidades boas. Isto porque os matemáticos não fazem experiências, não fazem inquéritos, observações, etc. Limitam-se a demonstrar teoremas e a propor axiomas e sistemas. Nada disto é científico se todo o conhecimento for a posteriori, porque para o conhecimento a posteriori ser científico tem de ser cuidadosamente construído. Do mesmo modo que não nos limitamos a pensar sobre a composição da atmosfera de Marte, sem recorrer a métodos empíricos, o matemático também não poderia fazer o trabalho dele sem recorrer a métodos empíricos.
O que a citação diz é o seguinte:
1) A justificação a priori é falível e derrotável. Isto é um resultado recente da filosofia. Antigamente os filósofos pensavam que a priori era sinónimo de infalível e derrotável. Por “infalível” queremos dizer impossível estar errado e por “derrotável” queremos dizer impossível descobrir que era falso. Ora, hoje sabemos que a justificação a priori é como a justificação a posteriori nestes dois aspectos: tanto podemos estar enganados quando justificamos algo a priori, como podemos estar enganados quando justificamos algo a priori; e podemos descobrir que algo que pensávamos que era verdade afinal é falso, quer isso que pensávamos tenha sido justificado a priori ou a posteriori. Por que razão as pessoas faziam e fazem estes erros? Porque quando pensam no a priori pensam em exemplos muito simples, do género os triângulos têm três lados, e quando se pensa nestes exemplos parece que o a priori seria infalível e inderrotável. Mas quando pensamos em exemplos muito mais complexos, isto é falso, pois é óbvio que nos podemos enganar. Se não pudéssemos enganar-nos, os estudantes de lógica e matemática tinham sempre 100% nos exames.
2) As crenças a priori são como as crenças a posteriori ainda noutro aspecto: podem ser refutadas tanto por indícios a priori como por indícios a posteriori. Ou seja: quando tenho uma crença justificada a priori tanto posso descobrir a priori como a posteriori que essa crença é falsa. Por outras palavras: tanto posso descobrir que um teorema afinal não é um teorema porque me enganei na demonstração (a priori) como posso descobrir que o teorema afinal não é um teorema porque algo na realidade empírica o refuta (e depois, claro, alguma coisa tem de estar mal na demonstração ou nos axiomas de partida ou nas regras de inferência usadas).
3) Kant defendia que nem todo o a priori é analítico. Os empiristas, desde Ayer, sempre rejeitaram isto precisamente porque implica que há conhecimento ou crença substancial a priori. Se dissermos que todo o a priori é analítico, isto significa que num certo sentido o a priori não é relevante por não ser substancial, num certo sentido do termo: é mera analiticidade. (Se bem que a analiticidade está longe de ser trivial como Ayer e os empiristas tipicamente pensavam.) O que a citação diz é que hoje em dia muitos filósofos defendem que nem toda a crença a priori é crença sobre verdades analíticas, mas não aceitam o tipo de sintético a priori de Kant. Mas defender isto é defender versões robustas do a priori: é defender que há crenças a priori robustas, que não são apenas crenças analíticas.
Finalmente, a citação diz que diferentes tipos de conhecimento ou crenças a priori poderão ter de ser explicadas de diferentes maneiras. Por exemplo, a crença a priori de que os triângulos têm três lados poderá exigir uma explicação diferente da crença igualmente a priori de que o Modus Ponens é válido, ou de que o último teorema de Fermat é verdadeiro.
Talvez eu consiga explicar melhor as coisas dizendo o seguinte: por a priori não queremos dizer inato nem anterior à experiência. Tal como por analítico não queremos dizer isso. O exemplo que dou no meu livro é este: foi cometido um crime na China e um detective chinês que não fala português encontra um bilhete escrito em português. A única maneira que o detective tem de descobrir o que diz o bilhete é empírica: tem de descobrir que língua é aquela, e depois tem de consultar dicionários ou perguntar a pessoas, etc. OK até agora? Ora bem, uma lei da natureza é que todo o tolo vai dizer: mas então nem sequer há analítico! Porque, afinal de contas, para aprender uma língua é preciso aprendê-la empiricamente. Isto é uma tolice. Porque depois de o detective ter aprendido português empiricamente, não vai precisar de aprender nada mais empiricamente para saber que “Nenhum solteiro é casado” é verdade. Mas esse mesmo conhecimento que lhe permite saber que esta frase portuguesa é verdadeira não lhe permite saber se a frase “Nenhum solteiro é infeliz” é verdadeira ou não. Por isso, apesar de haver evidentes continuidades e não ser uma distinção estanque, há frases claramente analíticas e frases claramente sintéticas. O mesmo acontece com o a priori. Apesar de o a priori e o a posteriori estarem geralmente misturados e não serem categorias estanques, há exemplos claros de a priori e de a posteriori, e os exemplos de a priori são compatíveis com o facto de o nosso cérebro ter evoluído e tudo o mais: tudo isso é tão irrelevante quanto o facto de o polícia chinês ter tido de aprender empiricamente a língua portuguesa.
Qualquer defesa de que não há a priori tem evidentemente de ser a posteriori ou empírica, para não ser auto-refutante O que significa que ou apresenta provas empíricas, resultados laboratoriais, experimentações, estatísticas, etc., ou é mera conversa de tolos, tal como eu posso falar longamente sobre a composição da atmosfera de Marte. Mas não poderei publicar um artigo classificado como científico sobre a atmosfera de Marte excepto se for cuidadosamente baseado em provas empíricas. Onde estão esses artigos empíricos para mostrar que não há a priori? Em lado algum. Se existisse tal coisa, os filósofos teriam parado de estudar o a priori, pois seria mais uma fantasia como o flogisto, que hoje sabemos não existir.
Finalmente: a priori por definição é o oposto de a posteriori, que por sua vez quer dizer apenas “empírico”. A priori não quer dizer em filosofia “anterior”, apesar de esse ser o significado original da expressão latina.
Só mais uma coisa sobre os axiomas. Imaginemos que os axiomas da lógica ou da matemática são descobertos a posteriori. Isto é claramente falso porque se fosse verdadeiro os matemáticos eram todos uns charlatães, pois nunca fazem estudos empíricos para defender os seus axiomas. Mas imaginemos que é verdade. Mesmo que fosse verdade, isso não provaria a inexistência de a priori. A ingenuidade é pensar em termos automáticos e o automatismo tem sido o grande obstáculo ao desenvolvimento das ciências e da filosofia. Até Galilei o automatismo era deduzir a natureza das coisas com base em Aristóteles, coitado, que não tinha culpa disso, e na Bíblia. Depois o automatismo é pensar que da observação pura nasce a ciência. Mas nenhum destes processos é automático; é preciso muita inferência, muita argumentação, muito ajuste, muitas escolhas entre o que consideramos mais ou menos plausível, o que envolve muita vagueza e consequentemente muita possibilidade de erro. Bem-vindos à realidade.
Ora bem, os teoremas derivam-se dos axiomas como? A ingenuidade automática diz: automaticamente. Isto é falso. Derivam-se recorrendo a regras de inferência. E as regras de inferência são muito mais básicas do que os axiomas porque podemos construir sistemas formais só com regras de inferência (na verdade, é o que eu ensino aos meus alunos de lógica) mas não podemos construir sistema formais só com axiomas. Os axiomas parecem muito mais importantes porque durante séculos ninguém reparava nas regras de inferência que usavam sub-repticiamente. Mas hoje temos conhecimento dessas regras, por causa do imenso desenvolvimento da lógica.
As regras de inferência, como o Modus Ponens, são conhecíveis a priori. Não fazemos experimentações, etc., para saber se o Modus Ponens é válido, e se as fizermos não se compreende como se poderá justificar a validade do Modus Ponens. Portanto, mesmo que os axiomas da matemática fossem conhecidos apenas a posteriori, sem o conhecimento a priori do Modus Ponens, não seria possível fazer matemática.
Uma última nota: o a priori é uma categoria epistémica e aplica-se a qualquer categoria epistémica, e não apenas ao conhecimento. Uma pessoa pode por isso defender que não há conhecimento a priori, por exemplo, mas ao mesmo tempo admitir que há crenças e justificação a priori, ou apenas crenças a priori.
Sim, João, a palavra inglesa “evidence” tem sido progressivamente usada de modo mais abrangente e muita gente usa o falso amigo português “evidência” sem noção de que em português uma evidência é algo que é evidente. Ora em inglês uma evidence pode não ser evidente. Evidence é o que eles chamam a “prova” no sentido em que usamos esta palavra nos tribunais: uma prova é um indício empírico forte mas não demonstrativo ou conclusivo a favor de algo. As demonstrações matemáticas não são evidence a favor das suas conclusões, originalmente, mas quer-me parecer que hoje muita gente diria que são realmente evidence, no sentido de serem uma razão a favor da conclusão. Em português temos a palavra “prova” que é boa para a maior parte dos usos de evidence, temos a palavra “indícios” que tem a desvantagem de ser demasiado fraca, e temos a palavra “demonstração” para o que os ingleses chamam “proof”: as derivações da lógica e da matemática.
Lido e aceite.
Ha no entanto entidades com impacto na literatura cientifica que a têm traduzido como eu fiz. A medicina baseada na prova é traduzida no meio medico-cientifico como medicina baseada na evidencia. Acho que vai pegar.
A língua portuguesa académica está cheia de coisas como essa, desde há séculos. Todas pegam e nenhuma pega pela simples razão de que a produção científica e cultural portuguesa é estatisticamente irrelevante. Como dizia o Eça, a cultura portuguesa é apenas a cultura estrangeira mal traduzida. Nenhuma pessoa que escreva muito em português quererá usar a palavra "evidência" para falar de indícios empíricos, porque depois fica sem a mesma palavra para quando quiser falar de do que é evidente, a que os ingleses chamam "apparent". A menos que queiram também usar a palavra "aparente" E já agora, "notório" para "notorious", etc., etc. :-D
Vou acompanhando o blogue do Ludwig sempre com bastante interesse, e eis que ele objecta ao conteúdo deste post com argumentos interessantes. Está tudo aqui:
http://dererummundi.blogspot.com/2008/10/priori.html
Uma discussão bastante interessante :)
ups!
Enganei-me, o link adequado é:
http://ktreta.blogspot.com/2008/10/ainda-o-conhecimento-priori.html
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