domingo, 8 de junho de 2008

Publicidade de “boas maneiras”


No meu dia, Dia da Criança, gostava que me levassem ao [nome de um centro comercial] para ver o espectáculo musical [designação do grupo musical].
Um beijinho,
[espaço para a criança escrever o seu nome]



Estas são as palavras de um bilhete com design agradável que me chegou às mãos, via escola, pouco tempo antes de 1 de Junho.

A estratégia que aqui está subjacente não é nova, já a descobri há alguns anos, mas parece-me que tem vindo a ganhar terreno e a tornar-se comum.

Refiro-me, muito concretamente, a certas ligações que empresas e marcas estabelecem com escolas: financiam projectos, obras, materiais, ou, simplesmente, propõem-se ilustrar, apoiar a leccionação de temáticas curriculares nas mais diversas áreas como a saúde, a cidadania, a cultura...

Sem ter feito qualquer investigação para perceber em profundidade as características e extensão de tais ligações, baseando-me apenas e só na constatação que o quotidiano permite, darei exemplos, que fui guardando, daquilo que refiro.

- Escolas do Ensino Básico promovem um concurso de desenho. O vencedor vê o trabalho impresso em sacos de supermercado com o seu nome e da instituição a que pertence.
- Uma escola decide transformar um dos seus ginásios em anfiteatro. As obras são patrocinadas por um Banco a troco da afixação de um enorme cartaz publicitário na parede mais exposta aos olhares de quem passa;
- Escolas implementam o cartão electrónico para controlo de entradas e saídas e de outros passos dos alunos com o apoio de fábricas da região. O logótipo dessas fábricas consta, naturalmente, nos ditos cartões.
- Escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico recebem um escritor. Num cartaz, onde se destaca a editora, solicita-se aos meninos que comprem um livro.
- Jardins-de-Infância levam as crianças a um certo centro comercial, onde alunos de medicina ou enfermagem simulam uma consulta aos bonecos que os petizes levam e explicam os riscos de apanhar Sol. Trazem para casa amostras de um certo protector solar.
- Escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico deixam entrar profissionais da saúde para elucidar as vantagens da higiene bocal. Trazem para casa amostras de pasta de dentes, elixir, e uma escova de uma certa marca.

Poderia dar outros exemplos, mas penso que estes são suficientes para tecer algumas considerações.

Em todos os casos, a coberto de um bem intencionado e abnegado apoio à educação, que vai ao encontro ao desenvolvimento da criatividade e à promoção da leitura, da segurança e bem-estar dos alunos, além de complementar o trabalho de educadores e professores, a publicidade infiltra-se num terreno fácil e fértil na obtenção de resultados em seu próprio proveito, à revelia das regras que, no geral, lhe são imposta por lei.

Por outro lado, as orientações da tutela para a educação vão no sentido de se estabelecerem ligações entre a escola e o meio envolvente, de se sensibilizarem as crianças e os jovens para os problemas do quotidiano, e para se envolverem em situações concretas, pressupondo-se que, assim, o seu interesse pelas aprendizagens aumenta e estas se tornam mais significativas.

Além disso, não tenho dado conta de que os pais ou encarregados de educação se queixem. Pelo contrário, o que ouvi foram elogios às práticas que descrevi.

Parece, então, estar tudo certo.
Mas não está, está tudo errado.

Sob o ponto de vista da publicidade, as crianças e os jovens são um público apetecível: além de ficarem a conhecer empresas e marcas, de que serão potenciais clientes durante os longos anos de vida que terão pela frente, levam para casa um conhecimento paralelo ao escolar e, portanto, com o mesmo peso ou um peso maior. Isto, claro, sem falar na persuasão que este público exerce sobre os adultos para comprar isto e aquilo, ou isto em vez daquilo.

Mas não é às empresas e marcas que se deve imputar, em primeiro plano, a responsabilidade da situação de que falo, mas sim às escolas.

A lógica das primeiras é sabida: imporem-se no mercado e terem lucros. Por isso, a publicidade a que recorrem foi, é e será interesseira. Sempre poderemos alegar que os meios não justificam os fins, mas não iremos longe com este argumento.

Já as escolas deveriam fazer jus ao que uma certa retórica indica: serem centros de aprendizagem crítica. Ou seja, o que se ensina, deveria ensinar-se livremente sem amarras políticas, religiosas ou… económicas. Logo, não tem sentido que a publicidade, pela sua própria natureza sectária, lá entre. E, no entanto, pelo que percebo, ganha cada vez mais espaço nos manuais escolares, nos muros das escolas, nos materiais escolares, nos projectos em que os alunos se envolvem.

Paradoxalmente, isto acontece ao mesmo tempo que circulam no sistema de ensino diversos programas de educação para o consumo consciente e para a gestão do pecúlio, que têm, geralmente, lugar na área curricular não disciplinar que se designa por Formação Cívica.

Vejo, ainda, um outro problema na intrusão a que me refiro: quando, empresas e marcas entram na escola e contactam directamente com crianças e jovens estão em vantagem, por exemplo, em relação a investigadores. Estes, para realizarem os seus estudos em ambiente escolar público com alunos menores, têm de submeter os seus pedidos e obter autorizações por escrito das seguintes entidades e pessoas: (1) Comissão Nacional de Protecção de Dados; (2) Direcção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular; (3) Agrupamento de Escolas ou Escola; (4) Professores (caso se justifique); e (5) Pais/encarregados de educação.

Devo, a terminar, esclarecer que não defendo uma escola fechada sobre si própria, mas a abertura ao mundo que a cerca tem de ser criteriosa: a porta não pode estar franqueada a tudo e a todos; por sua vez, os alunos, nessa qualidade, não podem ser conduzidos a qualquer lado.

Imagem retirada de:
http://farm3.static.flickr.com/2345/2384287748_3019ce575d.jpg

10 comentários:

Adelaide disse...

Parabéns por este elequente artigo. Sim, há muito que isto me preocupa.
Adelaide Chichorro Ferreira

Adelaide disse...

eloquente, quero dizer.ACF

Fernando Martins disse...

xcelente! Eu também tenho essa preocupação, como professor, mas é difícil à Escola fugir a estas coisas - basta dizer que a minha Escola gere um orçamento inferior ao que tinha há 6 anos, tendo agora nela incluídas mais 10 Escolas do 1º Ciclo e 5 Jardins de Infância...

E depois, há ainda esta coisa que o Ministério da Educação quer impor (vender...) às Escolas:
http://emdefesadaescolapublica.blogspot.com/2008/04/e-se-se-ensinasse-antes-ler-e-escrever.html

Anónimo disse...

Embora perceba a preocupação com esta intrusão, penso ser necessário distinguir casos. Aquele que refere no início do post é claramente um caso que se deveria evitar a todo o custo, porque é pouco ético, mas também porque não existe qualquer benefício inerente para as crianças e para a escola. Já o caso de haver um banco a patrocinar obras de remodelação em troco de um cartaz, penso ser apenas e só uma questão racional. Pode chocar quem tenha uma visão purista da educação, mas a verdade é que se trate de uma forma de as escolas conseguirem algo que de outros modo não teriam verbas para o ter.

Vou dar um exemplo prático: uma pessoa conhecida andou durante esta ano a efectuar palestras junto de alunos do 8º e 9º ano acerca de questões relacionadas com a adolescência (a nível social e emocional) com maior foque em questões de higiene feminina ao nível da menstruação. Todo o programa que decorre em todo o país é patrocinado por uma marca de produtos de higiene feminina, sendo os exemplares usados na palestra dessa marca e dando-se às alunas a possibilidade de receberem amostras desses produtos (penso ser fundamental o dar-se a opção de receber com o consentimento dos pais do que simplesmente entregar). Embora alguns professores estivessem em desacordo com o cariz publicitário da iniciativa, reconheceram ser útil por abordar questões importantes naquela faixa etária e para as quais os professores na maioria não estão habilitados (ou não se sentem confortáveis) a abordar (de referir que as pessoas recrutadas eram todas licenciadas em áreas ligadas às questões abordadas: psicologia, biologia e educação sobretudo). Neste caso, temos um exemplo de uma iniciativa, que no fundo é apenas marketing, que traz valor aos alunos e às escolas.

Penso ser essa a questão central: se uma iniciativa destas trouxer valor, seja em termos materiais ou em termos humanos, não vejo nenhum mal na sua existência. Já em casos em que apenas se faz promoção a uma marca ou produto sem haver um benefício para a escola e, principalmente, para os alunos o caso é outro.

Adelaide disse...

As marcas não devem invadir as escolas. Não devem comprar os conselhos directivos das mesmas. O dinheiro que está a ir para o TGV e quejandos devia ser usado para garantir a aquisição livre e isenta de conhecimentos pelas crianças. As marcas devem ficar where they belong: os centros comerciais.
Adelaide Chichorro Ferreira

ali_se disse...

A Escola deveria ser um espaço de aprendizagem a priorizar valores éticos e estéticos.
Mas infelizmente a publicidade está a invadir e a dominar toda uma sociedade que se deixou levar por ela.
Mas tanto o Ministério da Educação como da Cultura, são os culpados de tudo isto e exactamente porque estão a direccionar áreas como estas, para serem rentabilizadas, o que eu penso que jamais terão qualquer benefício para uma Aprendizagem, um Ensino, uma Escola, uma Educação e uma Sociedade saudável. A Educação e a Cultura não se podem tornar numa qualquer coisa comercializável.
A ignorância (em que tudo é possível ser vendável) está-nos a levar por caminhos muito destrutivos.
Há que proibir o mais rapidamente possível que a publicidade penetre nas escolas.

Unknown disse...

parabéns. sempre me irritam aquelas idas à escola de fotografos... entre outros!

Clairvoyant disse...

Se as marcas não entrarem nas escolas, onde vão ficar? À porta? Isso é solução?

Imaginemos de forma análoga a questão da segurança. Não são admitidos actos de vandalismo nas escolas, nem entrada de pessoas estranhas. Ninguém as pode impedir de estar à porta. Isso não faz com que os alunos estejam em segurança. Só torna a escola num oásis de segurança.

A ideia de Helena Damião parece-me acertada. Não devemos nunca isolar as crianças do mundo, só porque está feio, porco e mau. É nele que terão de viver, e não podem ser protegidas a vida toda. Há que as dotar de consciência do que as rodeia o mais rapidamente que a sua maturidade permita.

Só somos persuadidos a algo quando nos tornamos permeáveis a tal. A publicidade pode passar por nós sem nos afectar, e não nos levar a consumismos. Mas temos de ter uma postura que permita esse comportamento.

Recordo-me de uma daquelas lições de vida que me foi ensinada quando estava na paródia com uns colegas de trabalho. Alguém insistia em encher-me o copo constantemente. Eu reclamava mas continuava a beber, até que alguém me disse: "Só o podem continuar a encher se o vazares. Deixa escorrer para fora, não te rales."

E não é que funcionou? A outra pessoa também não queria ver o vinho a sujar a mesa e o chão, e portanto, parou. Problema resolvido.

Alguém tem de chegar aos ouvidos dos garotos e dizer-lhes para não vazarem o copo. Os tipos da publicidade depressa se hão de cansar e ir pregar para outra freguesia. Nessa altura eles perceberão que as mesmas crianças dentro das escolas são alunos, fora das escolas até podem ser consumidores.

Cada macaco no seu galho!

Anónimo disse...

este post é muito simplista e insere-se na "mentalidade bloco de esquerda".

então não é que a publicidade, esse instrumento do mal ao serviço do capitalismo, anda a oferecer aquilo que o estado e a sociedade não conseguem? malvados!!!!!

este tipo de mentalidade, muito na moda, diga-se, também estava presente quando as grandes empresas e corporações começaram a ter políticas ambientais e de responsabilidade social. havia sempre quem dissesse que "a coberto de um bem intencionado e abnegado apoio" a um desenvolvimento sustentável as empresas queria o seu próprio proveito: o lucro.

e qual é o mal disso, se isso se traduzir num benefício para todos?

Porque é que as escolas não aproveitam o momento para ensinar os seus alunos a desconstruírem o discurso publicitário, dando como exemplo as próprias acções das marcas nas escolas? Talvez fosse mais proveitoso, não?

qual é o mal de uma marca patrocinar uma acção numa escola em que alerta as crianças para a necessidade de uma boa higiene oral?

Eu só consigo é ver muito preconceito, lugar comum, frases feitas, e muito paternalismo.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

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