segunda-feira, 23 de outubro de 2023

MEU PREFÁCIO A “O FUTURO DA CIÊNCIA E DA UNIVERSIDADE” (ALMEDINA, OUT. 2023):

Em 1970, no rescaldo da crise académica de 1969 na Universidade de Coimbra, tomou posse de ministro da Educação José Veiga Simão que era professor de Física desta universidade e havia sido primeiro reitor da Universidade de Lourenço Marques. Nessa ocasião, anunciou claramente ao que vinha: “Educar todos os portugueses, onde quer que se encontrem, na aldeia escondida ou na cidade industrializada (…) é o princípio sagrado de valor absoluto e de transparente importância à escala nacional”. 

Logo no ano seguinte submeteu a discussão pública dois documentos que seriam basilares do que hoje chamamos Reforma Veiga Simão, “O Projecto do Sistema Escolar” e as “Linhas Gerais da Reforma do Ensino Superior”. Comum aos dois era a preocupação de alargamento da escolaridade. Em particular, eram necessários mais diplomados do ensino superior. Em 1973, foi promulgada uma lei de base do sistema educativo, a qual consagrava o direito de todos à educação, “sem outra distinção que não seja a resultante da capacidade e dos méritos de cada um.” 

Passou a ser possível a muitas pessoas de classes sociais baixas terem filhos no ensino superior (o próprio Veiga Simão vinha dessas classes). Para isso, foi necessário criar instituições desse ensino em vários sítios do país (em Lisboa, Braga, Aveiro e Évora), concretizando uma reforma universitária como já não se via desde 1911, quando a Primeira República fundou as Universidades de Lisboa e do Porto. Não faltaram reacções contrárias ao projecto de Veiga Simão, como a daquele deputado que disse na Assembleia Nacional que “democratizar o ensino é o mesmo que dar a qualquer cidadão o direito de ser doutor; mais não é do que entender que qualquer burro tem direito a ser cavalo.” 

A Revolução do 25 de Abril impulsionou os sectores da educação e da ciência, beneficiando de um consenso generalizado na sociedade. Mas os progressos foram, de início, mais visíveis na educação do que na ciência. O impulso decisivo para a instalação do nosso sistema científico e tecnológico só surgiu em 1995, com a tomada de posse de José Mariano Gago, físico como Veiga Simão, mas da Universidade Técnica de Lisboa, como Ministro da Ciência e da Tecnologia no primeiro governo de António Guterres.

As ideias-chave – como investimento, internacionalização, avaliação, cultura científica, etc. – já estavam delineadas no Manifesto para a Ciência em Portugal, publicado em 1990 pela Gradiva. Mas a sua concretização por políticas que foram ajudadas por fundos da União Europeia fez-se num conjunto de vários mandatos ministeriais, os últimos dos quais juntavam o Ensino Superior com a Ciência e Tecnologia. Que hoje somos todos herdeiros de Veiga Simão e de Mariano Gago transparece com clareza desta oportuna iniciativa do “Encontro Nacional – Universidade: Chave para o Futuro”, organizado em Dezembro de 2022 pelo Iscte - Instituto Universitário de Lisboa em colaboração com o CRUP - Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, que, celebrando os 50 anos da Reforma Veiga Simão e os quase 50 anos da Revolução do 25 de Abril, discute o estado actual do nosso ensino superior. 

O Encontro foi muito rico e quem não esteve presente beneficiará da leitura desta compilação de textos assim como do registo dos debates que se encontram coligidos nesta obra. Fazendo jus ao título do encontro, há aqui “chaves para o futuro”. O futuro tem de ser continuamente aberto. Depois de uma primeira parte, mais de enquadramento político (“Pensar o futuro da universidade”), e antes de uma conclusão pela actual Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, o livro que documenta o Encontro divide-se em duas partes: “Para novas políticas de ensino superior, ciência e inovação” e “Para uma universidade mais aberta.” Na primeira, reconhece-se a existência de um problema de articulação entre, por um lado, a ciência e a tecnologia, e, por outro, o ensino superior, aqui centrado nas universidades. Reconhece-se também o insatisfatório impacto do sistema de ciência e tecnologia na economia do país.

Na segunda parte, discutem-se três questões muito actuais do ensino superior: a meritocracia e a justiça social, a pedagogia universitária, designadamente à luz das novidades trazidas pela digitalização, e, finalmente, o papel da língua portuguesa no país e no mundo como língua de ciência e, mais em geral, de conhecimento. Seja-me permitido fazer um resumo. Em primeiro lugar, a questão da ligação entre ciência e tecnologia e ensino superior. Quando Mariano Gago montou o sistema hoje instalado, entendeu – e tinha as suas razões – fazê-lo ao lado do sistema de ensino superior e não lá dentro.

Como a maior parte dos investigadores do sistema público está nas universidades – mais ainda, a maior parte do financiamento público da ciência e tecnologia é a parcela das remunerações dos universitários de acordo com o seu tempo dedicado à investigação – é claro que a ligação entre ciência e universidades é muito forte.

Mas os mecanismos criados para acesso rápido ao financiamento canalizado em boa parte pela Fundação para a Ciência e Tecnologia – como as várias instituições privadas sem fins lucrativos – deixou os órgãos de gestão das universidades à margem da política de ciência e tecnologia. Esta é uma situação bastante estranha, que originou um conjunto de problemas que estão à vista, designadamente o subfinanciamento das universidades, com a consequente não renovação atempada dos quadros, e o aparecimento de um largo corpo de investigadores qualificados com ligações precárias às universidades se é que de todo as têm. 

Acontece que as universidades não são definitivamente as mesmas de finais do século passado e, pesem embora as legítimas dúvidas que alguns possam ter, devem ser valorizadas, confiando nelas para gerirem fundos adicionais, direccionados para a ciência e tecnologia, incluindo desde logo a provisão das carreiras das pessoas que investigam, prevendo naturalmente a competente avaliação dos resultados alcançados com o novo modelo. Convém lembrar que os diplomas de doutoramento são outorgados pelas universidades, sendo inteiramente justo que elas reclamem condições para que os trabalhos doutorais possam ser feitos no seu seio. Também os pós-doutoramentos têm, em geral, lugar nas universidades.

Tanto os doutorandos como os post-docs são dos investigadores mais activos e produtivos. Acima de tudo, é preciso, como mostram alguns dos dados estatísticos reunidos nesta obra, reconhecer que o nosso financiamento para investigação e desenvolvimento é muito diminuto, comparado com os padrões europeus. O último valor publicado é de 1,7% do PIB, quando a União Europeia tem como média 2,3%. A meta da União Europeia, que alguns países já alcançaram, é 3% do PIB em 2030 e, faltando sete anos, não se está neste momento a ver como é que o nosso país vai conseguir cumprir esse objectivo. Não o irá alcançar se continuar no caminho de estagnação que vivemos na última década, depois da intervenção da troika, que serviu a alguns responsáveis como justificação para uma «poda» da ciência. Os números não mentem: em 2009, o investimento era 1,6% do PIB e hoje é de 1,7%. Durante todo este tempo a ciência e a tecnologia andaram sempre incensadas pelos poderes com elegias um pouco ocas.

Foi uma década perdida e razão tem a reitora do Iscte, Maria de Lurdes Rodrigues, quando escreve «A estagnação do crescimento do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, registada desde 2011, deveria fazer soar os alarmes.» Pergunta ela: «Significa que está esgotado o modelo de desenvolvimento da investigação dos últimos 30 anos? É este o momento de repensar as políticas públicas de ciência e a sua articulação com as políticas de ensino superior e as políticas de economia?» A estas duas questões não tenho dúvidas em responder que sim.

Para profissionalizar os investigadores a quem foi proporcionada a mais alta formação afigura-se necessário um salto grande dos orçamentos universitários, de modo não só a substituir a geração que está a sair (a minha, que entrou na universidade no tempo de Veiga Simão e que acompanhou Mariano Gago no movimento de ascensão da ciência) como a proporcionar novos lugares de docência e de investigação.

Os desafios do futuro são múltiplos e complexos – alterações climáticas, inteligência artificial, biomedicina, ética e direito, etc. – que só com mais mentes e mentes jovens, a trabalhar de uma forma criativa, podem ser enfrentadas. O financiamento das universidades não pode ser feito, como ainda hoje é em larga medida, atendendo ao número de estudantes: tem de atender também à produção de conhecimento e à sua ligação à sociedade, pois essas são também missões da universidade. Uma alternativa, que não tem sido discutida, seria a criação de uma rede de laboratórios públicos bem financiados através do Orçamento de Estado centrados em certos temas de investigação de interesse público (as sementes poderiam ser os actuais Laboratórios Associados), que funcionassem em complemento à rede universitária: foi esse o caminho seguido há muitos anos na Espanha, na França, na Alemanha, etc.

Mas a necessidade de investimento seria maior, afigurando-se algo incertas as sinergias que pudessem ser criadas entre as duas redes. De qualquer modo a ciência e a tecnologia são num país democrático bens de todos e o seu financiamento, obedecendo a políticas públicas, deveria estar claramente dentro do perímetro do Orçamento do Estado. Uma outra questão na qual temos de realizar progressos é a investigação e desenvolvimento em ambiente empresarial. No Encontro foram apontados os traços caricaturais da investigação que é realizada no sector privado quando se oferecem incentivos fiscais mal regulados e mal fiscalizados. Algumas das empresas que dizem fazer a maior investimento afinal não têm nem doutorados, nem artigos, nem patentes… Isto é, quando se diz com satisfação que, dos 1,7% do investimento em ciência e tecnologia do PIB, 1,0% vem do sector privado, estamos certamente a enganar-nos a nós próprios. Tem de vir mais e são precisos incentivos para que isso aconteça, mas não desta maneira.

O número de investigadores científicos em Portugal, com o sector privado a exceder o público, originando uma estatística razoável na comparação europeia, levanta muitas dúvidas. Apesar dessa boa comparação, é óbvio que a nossa economia ainda não é competitiva à escala internacional. Algumas andorinhas não fazem a Primavera. Faltam designadamente bens exportáveis com alto valor acrescentado, aquilo a que hoje chamamos produtos inovadores. Sendo assim, continuamos a viver demasiado dependentes de serviços como os do turismo. E continuamos atrasados. Em Junho de 2021, a Comissária Europeia para a Coesão e Reformas, a economista portuguesa Elisa Ferreira, punha o dedo na ferida, numa entrevista ao Jornal de Negócios: “é penoso ver que, com tantos anos de apoio, ainda estamos entre os países atrasados.” 

As universidades têm um papel a desempenhar na dinamização económica, mas para isso não podem desistir ou desvirtuar o seu papel, absolutamente imprescindível, na criação de ciência fundamental, que, tarde ou cedo, vai ser, com grande probabilidade, aplicada. Não estou certo de que o anunciado desvio de um quinhão das bolsas de doutoramento para o ambiente das empresas possa dar grandes frutos sem um apoio e compromisso das universidades. Em segundo lugar existem questões de abertura da Universidade ao mundo, que vão muito para além do seu papel de motores da ciência e tecnologia. 

Foi bem feita a escolha de tópicos neste Encontro: as questões do mérito, do digital e da língua. Haveria outras, por vezes relacionadas, como a internacionalização, a cultura científica, e a distinção e relação com os politécnicos. Hoje o significado e o papel da «meritocracia», que Veiga Simão advogava sem margem para dúvidas, fazem parte da agenda da sociologia e da política. Persistindo as desigualdades, deveremos culpabilizar e estigmatizar os indivíduos desde pequenos por falta de mérito? É uma boa pergunta para a qual temos de procurar boas respostas.

O filósofo norte-americano Michael Sandel fala em “tirania do mérito.” Nas páginas seguintes encontram-se algumas pistas para uma discussão que deve continuar. Vivendo nós num mundo cada vez mais digital, quais são as condições e os limites da digitalização? Na minha opinião, pese embora o grave constrangimento da pandemia, já se foi demasiado longe na substituição das naturais relações necessariamente humanas entre professores e alunos por ambientes virtuais. Abandonar os jovens a ambientes digitais, cada vez mais incríveis (na verdadeira acepção do termo), significa desistir da educação, tanto no ensino básico e secundário como no superior. 

O neurocientista francês Michel Desmurget fala de “fábricas de cretinos digitais”. As universidades deviam ser os sítios onde, jamais se desistindo do espírito crítico, se estude e valide o que é anunciado, por vezes com grandes parangonas e fortes interesses comerciais, como pedagogias novas. Por último, qual é o papel da língua portuguesa num mundo global onde o inglês (ou melhor o mau inglês, das transacções turísticas e comerciais) impera? Tenho para mim que a língua portuguesa é uma língua de conhecimento desde que ficou consolidada há vários séculos. Lembro que o médico flamengo Charles de l’Écluse teve no século XVI de aprender algum português para traduzir para latim os Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia, publicados em 1563 em Goa. Não desprezando o papel do inglês num mundo onde os saberes tendem a ser universais e as pessoas circulam amplamente, penso que já se foi longe demais no detrimento daquela que é a quinta língua mais falada do mundo, sendo a primeira no hemisfério Sul. 

É nossa obrigação valorizar a língua portuguesa, o que, para além do seu uso nas universidades, passa também por amplos processos de digitalização de conteúdos em português, colocando-os no processo a que se convencionou chamar Ciência Aberta (como se a ciência não fosse aberta, por sua própria natureza) à disposição de uma audiência global. Há, nesta obra, muito alimento para o cérebro (não digo food for thought) e só fico à espera de que se desenvolvam consensos para que algumas das ideias nelas expressas encontrem a merecida concretização na nossa vida. Não sei se as universidades, que remontam à Idade Média, serão eternas. 

Mas têm decerto um amplo caminho à sua frente. Elas são os sítios onde se prepara o futuro, que será tanto melhor quanto melhor for essa preparação. Alguém disse no Encontro que à sua geração, que é também a minha, foram dadas, pela anterior, maiores oportunidades do que aquelas que estamos a dar à geração seguinte. Dar mais à próxima geração é dar mais ao futuro e o ideal seria que conseguíssemos sempre dar mais do que aquilo que recebemos.

Medicina e outras ciências em 1923

 

Artigo do jornalista  Pedro Bastos Reis noa revista «Urologia actual» que resume a intervenção que fiz na sessão de encerramento do Congresso Centenário da Associação Portuguesa de Urologistas, a mais antiga associação de especialistas médicos do país:

É este o título da conferência de encerramento deste Congresso Centenário, que será proferida por Carlos Fiolhais, professor de Física da Universidade de Coimbra aposentado. Partindo dos Prémios Nobel de diferentes áreas atribuídos em 1923, ano em que foi fundada, a 15 de novembro, a Associação Portuguesa de Urologia (APU), o físico e reconhecido comunicador de Ciência em Portugal vai comentar alguns avanços dessa época no âmbito da Medicina, mas também de outras áreas científicas, assim como da Política, Educação e Cultura, traçando uma comparação com a atualidade.

Na sua conferência, Carlos Fiolhais pretende apresentar “um balanço do século”. Para dar conta dos “progressos extraordinários” desde a fundação da APU até aos dias de hoje, vai pôr em retrospetiva a atribuição do Prémio Nobel em diversas áreas. “Em 1923, o Nobel da Física foi atribuído a Robert Andrews Millikan, por ter medido a carga do eletrão e por ter realizado experiências do efeito fotoelétrico”, recorda o professor.

“Em 2023, este prémio foi atribuído a três físicos [Pierre Agostini, Ferenc Krausz e Anne L'Huillier] que apuraram uma técnica para ver os movimentos de um eletrão quando se separa do átomo. Vejam bem a diferença: há um século, falávamos da ionização em bruto. Agora, estamos no pormenor de ‘fotografar’ a evolução dos eletrões”, sublinha Carlos Fiolhais. Foi também em 1923 que faleceu Wilhelm Röntgen, o primeiro vencedor do Prémio Nobel da Física, em 1901. “Ele descobriu os raios-X e, para mim, é o físico que maior contributo deu ao desenvolvimento da Medicina, incluindo, claro, a Urologia”, comenta o conferencista.  

No âmbito da Medicina, há 100 anos, o Prémio Nobel foi entregue a Frederick Banting, que “conseguiu o feito na época extraordinário de isolar a insulina”. “Em 2023, este prémio foi atribuído a Katalin Karikó e Drew Weissman pelo desenvolvimento da técnica das vacinas de ARN mensageiro utilizadas contra a Covid-19 e com outras aplicações na Medicina. É impressionante a evolução registada nos últimos 100 anos! Para a perceber, basta olhar para os prémios Nobel de 1923 e de agora”, reitera o professor de Física..

Política, Educação e Ciência

Na sua palestra, Carlos Fiolhais pretende ir além da Medicina e da Ciência, não deixando de lado as questões políticas. Nesse sentido, começa por notar que, em 1923, o Prémio Nobel da Paz não foi atribuído. “A Primeira Guerra Mundial tinha acabado há poucos anos e o mundo atravessava um tempo de grande instabilidade, com graves problemas económicos e assomos de autoritarismo”, explica. E acrescenta: “Foi em 1923 que se deu um golpe de Estado em Espanha, com Miguel Primo de Rivera, e que se começou a ouvir falar de Adolf Hitler, que, nesse ano, tentou um golpe em Munique, contra o governo da Baviera, pelo qual foi preso, mas não cumpriu a pena na totalidade”. Além disso, em 1923, Benito Mussolini tinha acabado de subir ao poder em Itália.

Em Portugal, com a República implantada há 13 anos, “vivia-se uma grande instabilidade governativa”. “Em 1923, o presidente do Conselho de Ministros era António Maria da Silva, que liderou vários governos, tendo um terminado a 15 de novembro desse ano. Ou seja, no dia em que nasceu a APU, caiu o governo”, ironiza Carlos Fiolhais.

            Já no campo da Educação, “em 1923, existiam 33 liceus em Portugal, com cerca de 10 000 alunos. Atualmente, nos 2.º e 3.º ciclos do básico e no  secundário, há mais de 900 000 alunos. Há 100 anos, só havia três universidades, em Lisboa, Coimbra e Porto, com um total de 3400 alunos, e hoje há, no ensino superior, cerca de 450 000 alunos.

Quanto à produção científica, Carlos Fiolhais enaltece que, atualmente, Portugal tem cerca de 50 000 cientistas e investigadores, sendo publicados “mais ou menos 30 000 artigos científicos por ano”. “Entre 1915 e 1924, só foram publicados 11 artigos científicos, um exemplo claro da debilidade da Ciência entre nós na altura”, esclarece.  

Colocando várias dimensões em perspetiva, o cientista não tem dúvidas de que o ano de 1923 constituiu um marco para a evolução médica e científica no mundo e no nosso país. “Foi um grande ano para a Medicina nacional, desde logo porque nasceu a nossa primeira associação médica de especialidade, à qual se seguiram outras, imitando o exemplo da APU”, remata Carlos Fiolhais.

Elogio aos precursores da Urologia

Alguns dos precursores da Urologia em Portugal merecerão particular atenção na conferência de Carlos Fiolhais. Desde logo, Artur Ravara, que, além de primeiro presidente da APU, “em 1902, inaugurou a primeira consulta de Urologia, no antigo Hospital do Desterro”. Anos depois, “criou o Serviço de Urologia do Hospital de São José”, destaca o conferencista.            

Carlos Fiolhais também evidencia o papel do segundo presidente da APU. “O ensino da Urologia em Coimbra começou em 1909, impulsionado por Ângelo da Fonseca, que tem a particularidade de ter sido um dos responsáveis pela criação em Coimbra da Faculdade de Letras e pela sua reintegração nessa cidade depois de ter sido transferida para o Porto”, sublinha.

Por fim, o físico enaltece o legado de Reynaldo dos Santos, quarto presidente da APU: “Na Medicina, foi um grande professor e cirurgião, que desenvolveu várias técnicas inovadoras. No entanto, o mais notável é que foi também um homem da Arte e da Cultura, um dos maiores críticos de arte portugueses. Era uma mente excecional.”

"O problema da democracia é que exige educação, conhecimento"

Lembrou, em entrevista com poucos meses, Fernando Savater:
"O problema da democracia é que exige educação, conhecimento. Os gregos foram os inventores da democracia e também da pedagogia. Há que criar cidadãos capazes de decidir. Se te disserem o que deves decidir, não és livre. A educação é o que dá sentido à democracia."

Por esta razão, ainda que não só por ela, devemos ficar muitíssimo preocupados com os aplaudidos discursos que, de modo mais ou menos explícito, desvalorizam o conhecimento que tem sido confiado à escola, o conhecimento mais erudito, do passado, inútil... sobretudo se ele se situar na área dita humanística. Essa desvalorização põe em causa a formação individual e o funcionamento da sociedade, num horizonte de vida pacífica.

PS: Com a afirmação que acabo de fazer não traço uma relação linear, de causa-efeito, entre a aquisição de conhecimento e a contribuição individual e social para essa vida que, por certo, muito de nós almejamos. Tal relação é mais complexa do que isso, ainda assim, há que contar com ela.

Maria Helena Damião

domingo, 22 de outubro de 2023

A REVOLTA DOS ALUNOS LICEAIS CONTRA OS UNIVERSITÁRIOS NA COIMBRA DOS ANOS DE 1930

No Diário de Coimbra de hoje, é recuperada uma notícia publicada no mesmo jornal em 1934 que dá uma visão pior da vida académica do que aquela que temos hoje, não obstante os muitas excessos das praxes.
 

Eis a importância de revisitar a história, por exemplo, através dos jornais:

 
"Os alunos dos liceus de Coimbra – “bichos”, na terminologia da praxe académica – eram alvos frequentes das trupes que após o anoitecer percorriam a cidade em busca de “tresmalhados”, caloiros em especial mas também outros estudantes de “categoria inferior” na hierarquia praxística, que ao desrespeitarem o toque vespertino da cabra de recolher para o estudo, e sen­do apanhados em zonas que não lhes eram permitidas, se sujeitavam a humilhantes cortes de cabelo e outros vexames. 
A 20 de novembro de 1934, os alunos dos liceus José Falcão e Júlio Henriques (ambos instalados no Colégio de S. Bento, na Alta da cidade) mobilizaram-se num protesto contra a praxe dos universitários, cujas práticas também os abran­giam. Após reunirem para deliberar, juntaram-se às 16h00 na Praça da República e seguiram «em manifestação pa­ra a Baixa, até à Rua Ferreira Borges, onde tiveram de dispersar por se terem dado vários conflitos com académicos, que obrigaram a polícia a intervir», relatou o Diário de Coimbra na edição do dia seguinte."

Maria Helena Damião

TRASLADAÇÃO DOS RESTOS MORTAIS DE EÇA DE QUEIROZ PARA O PANTEÃO

 Por Eugénio Lisboa

O Supremo Tribunal Administrativo decidiu a favor dos herdeiros de Eça de Queiroz, que desejam a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional.

A lei, bem ou mal interpretada por esse tribunal, deu-lhes razão. A razão dos herdeiros, apoiada na lei jurídica, ganhou. A justiça à memória do escritor, não. A lei escrita obriga, muitas vezes, à injustiça. 

Não é a primeira vez que lei e justiça se opõem. E não será a última. 

E já vem, pelo menos, dos tempos remotos de Antígona. O funeral do autor de O CRIME DO PADRE AMARO vai, provavelmente, ter os ritos da trasladação abençoados, com a aprovação comovida dos que herdaram o nome, mas não o espírito, do grande escritor, por um qualquer dignitário da Igreja.

E o criador do Conselheiro Acácio vai ter de ouvir, lá no assento etéreo, onde se encontra, as beatas e conselheirais palavras de um qualquer orador que ali vai buscar os seus quinze minutos de glória. 

Espero que, na urna onde os seus ossos se encontrarem, haja espaço suficiente para ecoar o som da inconfundível gargalhada que ali se vai percutir. 

É bem verdade: os grandes homens nem sempre têm os herdeiros que os conhecem e os merecem. 

Por isso, o grande George Steiner propunha que as viúvas desses grandes homens – no sentido muito lato de “viúvas” – deviam, à cautela, ser lançadas à pira, para evitar desacatos.

É uma proposta que merece a mais séria consideração das mentes legislativas. 

Eugénio Lisboa

sábado, 21 de outubro de 2023

O JARDINEIRO DA FELICIDADE HUMANA

Por Eugénio Lisboa

Agora, que, por todo esse mundo, avançam as radicalizações, à direita e à esquerda, convém ir lembrando de que metal são feitos os tiranos. 

São gente perigosa, porque, mesmo quando o seu comportamento é ostensivamente grotesco, guloso de glorificação, para além daquele teor mínimo de megalomania que assiste a qualquer ser humano, arranjam sempre uma corte de bajuladores que se atropelam uns aos outros para verem quem mais se destaca na arte de bajular.

Vou aqui transcrever um excerto de um capítulo do excelentemente documentado livro A CONTRA HISTÓRIA DO COMUNISMO, do espanhol Fernando Díaz Villanueva: O JARDINEIRO DA FELICIDADE HUMANA 
“Os tiranos foram sempre muito dados a olhar para o umbigo e a obrigar toda a gente a admirá-los. Por isso, aquilo a que hoje chamamos culto da personalidade – expressão extraída directamente do marxismo – teve lugar em todas as civilizações, independentemente da época e do lugar. 
Os egípcios antigos divinizaram os faraós, que, mais do que simples reis, eram deuses num corpo mortal que estavam de passagem pela Terra. Em Roma, os governantes começaram a investir-se de divindade, assim que a antiga república deu lugar ao Império. Incas, aztecas, tibetanos e chineses transformaram os seus governantes em algo muito semelhante a deuses, quando não directamente em deuses. Na China, a filosofia política prevalecente era a do mandato do céu, que era muito similar à que, na Europa, legitimava a monarquia de direito divino. 
Mas, ainda que pareça mentira, foi no século XX que o culto da personalidade alcançou o seu máximo esplendor, em boa medida, graças ao aparecimento de novas tecnologias e meios de expressão como a fotografia e o cinema e, principalmente, à irrupção dos totalitarismos após a Primeira Guerra Mundial. Os fascistas e os bolcheviques perderam a cabeça com o culto ao líder e aos poderosos. As suas ideologias anómicas tinham essa veneração no código genético e os avanços técnicos da época tornaram realidade os seus sonhos idólatras. 
O fascismo italiano, como em muitas das formas exteriores do socialismo, foi o primeiro. Mussolini revestiu-se de uma autoridade inspirada no culto dos antigos césares. Os uniformes, os desfiles, o passo de ganso, as saudações romanas, tudo isso marcou um estilo que os nazis rapidamente adoptaram. 
Os bolcheviques distanciaram-se ligeiramente da estética fascista, mas reforçaram ainda mais a veneração do líder. Isso aconteceu já nos tempos de Lenine, mas, como ele não viveu o suficiente para completar a sua obra, foi na era de Estaline que o culto da personalidade atingiu a sua máxima expressão. A loucura começou com os nomes do inominável. Ninguém no seu perfeito juízo se referia a ele como Joseph, o seu nome próprio, mas como Estaline, o seu cognome revolucionário, que em russo quer dizer qualquer coisa como “feito de aço”. Os aduladores depressa começaram a arranjar-lhe sobrenomes grandíloquos, como Pai dos Povos, Líder e Mestre dos Trabalhadores do Mundo, Titã da Revolução Mundial, Corifeu da Ciência, Jardineiro da Felicidade Humana, Brilhante Génio da Humanidade, Grande Arquitecto do Comunismo ou Sábio Timoneiro. Utilizavam esses vários epítetos grandiosos, consoante a época e a ocasião. A princípio, a designação que mais lhe agradava utilizar para ganhar legitimidade era a de Discípulo Predilecto do Camarada Lenine, depois, quando o seu poderio se tornou incontestável, passou a preferir a de Pai dos Povos, que foi muito utilizada fora da URSS após a Segunda Guerra Mundial, ou a especialmente cómica designação de Amigo Benevolente de Todas As Crianças. Não parou aqui a megalomania. Dezasseis cidades de diversos países mudaram de nome em homenagem ao líder de aço. A maior e mais famosa foi Estalinegrado, à qual a História reservou um papel especialmente heroico.” 
De todos os títulos grandiosos, escolhi, para encabeçar esta transcrição, o de O JARDINEIRO DA FELICIDADE HUMANA, por razões de ferina ironia. Quando, ainda na vigência do regime soviético, visitei Moscovo e Leninegrado (hoje, de novo, S. Petersburgo), achei tudo aquilo tão tenebroso, tão soturno, tão absurdamente cruel (não encontrei rigorosamente nada que me apetecesse trazer como recordação), que cogitei, com os meus botões, nunca ter visitado nada de onde a felicidade humana estivesse tão arredada. 

Eugénio Lisboa

O INEVITÁVEL DECLÍNIO DAS ENTIDADES PSEUDO-EDUCATIVAS

Em tempos recentes, Coimbra rendeu-se à instalação, num edifício central e nobre da cidade, de um “centro de tecnologias digitais criativas”, derivado de uma “associação de natureza privada sem fins lucrativos”.

Esta informação, por si só, nada terá de relevante.
Sendo assim, por que me detenho nela? 
Porque esse centro – explica-se na plataforma online que o apresenta – é de “educação” e propõe-se levar os jovens em idade escolar, que designa por “alunos”, a adquirirem “competências técnicas avançadas em áreas relevantes na atualidade e no futuro”. Recorre, para tanto, a um “programa educativo que combina tecnologia com criatividade”. 

Cada “aluno” segue um “plano de aprendizagem personalizado gerado pelo software”, progredindo por níveis; no final terá um “diploma vivo”. 

Querendo saber que “modelos pedagógicos inovadores” o concretizam, abri uma ligação de pé de página para uma outra entidade. Leio, no mesmo estilo retórico, que se trata de “experiências de aprendizagem envolventes e centradas no aluno que promovam o pensamento crítico, liberem a criatividade e despertem uma forte ligação à aprendizagem". A "missão é capacitar as gerações futuras com as habilidades e o conhecimento para prosperar num mundo em constante evolução”.
Como se percebe, não está aqui configurado um modelo pedagógico e o que é dito nada tem de inovador...
O texto avança fazendo notar que a missão não envolve "fins lucrativos", antes decorre do empenho dos proponentes "em criar mudanças positivas na educação", para o que se estabelecem parcerias com "diversas partes interessadas" num esforço para "revolucionar a educação" e "causar um impacto duradouro nos alunos de todo o mundo".
Propositadamente, não identifiquei, até aqui, a entidade que cito. Pode ser qualquer uma das incontáveis – centenas, milhares... – que têm emergido, sobretudo na última década, por todo o mundo com, declaram, a intenção de o salvar através da educação

De origem privada – em empresas e fundações, mas também ONG –, operam, de modo uniforme, a partir da ideia distorcida de "responsabilidade social" e, mais do que envolverem o sector público, reivindicam o seu apoio, que, de resto, conseguem com grande rapidez e eficácia.

Surgem num determinado país e vão-se expandido para outros, sempre com a devida pompa e circunstância: os meios de comunicação social passam a mensagem, partes interessada associam-se-lhes, políticos acolhem-nas, academias e escolas abrem-lhes as portas, o comum dos mortais acha muito bem. 

A entidade que cito – designada por Tumo Center for Creative Technologies – é, pois, um dos exemplos desse tipo de entidades. 

Um exemplo, de resto, que se afigura bem sucedido em Coimbra (ver aqui): o financiamento da autarquia foi relevante, o mais alto representante desta instância consta entre os seus notáveis, teve a bênção do Governo (pelo menos um dos seus representantes deslocou-se lá), a Universidade e o Politécnico estabeleceram protocolos de colaboração com ela, o mesmo acontecendo com todos os Agrupamentos de Escolas do concelho. 

A entidade declara que "a abertura em Coimbra marca o início de uma campanha de expansão de centros de educação TUMO por todo o território nacional". E estabelece Lisboa como próximo destino. O processo de instalação é o mesmo: conseguido o apoio da autarquia e reunidos mecenas, aguarda luz verde do Governo (ver aqui)...

A infiltração deste tipo de entidades nos sistemas educativos – pervertendo-os, esboroando-os e, em última instância, enterrando-os – não se deve só nem principalmente à sua pro-actividade, à sua desfaçatez, à sua falta de limites, à sua ambição desmedida e afirmação de poder, à sua completa falta de sentido do que é a educação, deve-se, isso sim, antes de mais, antes de tudo, ao Estado, que abdica de fazer o que lhe compete em termos educativos, às Instituições de Ensino Superior e às Escolas, que perderam o sentido da sua função, abastardando os valores que lhes conferem identidade.

Sabemos, contudo, que a racionalidade acaba por sobressair, libertando a educação de poderes – religiosos e políticos, e agora económico-financeiro-tecnocráticos – que a obscurecem. Pode ser por breves momentos e só em alguns lugares do mundo, mas é inevitável que isso aconteça porque a liberdade de pensar, à margem de todo e qualquer poder instituído, é a essência da educação.

A expansão das entidades a que me refiro pelos sistemas educativos, pelas instituições de ensino superior, pelas escolas tem, pois, os dias contados!

Maria Helena Damião

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

UMA VERGONHA CULTURAL: A CÂMARA MUNICIPAL DE VILA DO CONDE

Por Eugénio Lisboa

Vila do Conde teve o privilégio de lá ter nascido uma das maiores figuras literárias de Portugal, de todos os tempos. Grande poeta, grande dramaturgo, grande ficcionista, no conto, na novela e no romance, notabilíssimo ensaísta e crítico literário, diarista e autobiógrafo, artista plástico e empenhado colecionador de arte popular, sacra e profana, que soube preservar, José Régio é um excepcional ícon daquela terra que cantou em versos imortais e em inesquecíveis páginas de prosa. 

Quando se tem um ícon desta dimensão e desta projecção, há que acarinhá-lo, divulgá-lo, preservando-lhe dignamente a memória. 

Isso tem sido feito pelo CENTRO DE ESTUDOS REGIANOS, da Câmara Municipal de Vila do Conde, mas graças ao esforçadíssimo empenho, admiravelmente desinteressado, de competentes e devotados regianos, de que saliento o nome de Isabel Cadete Novais, a todos os títulos digna da admiração dos vilacondenses e dos portugueses, em geral.

Preservando e divulgando o espólio e organizando, incansavelmente, colóquios, congressos, exposições, por todo o país, Isabel Cadete tem desenvolvido uma admirável obra de perpetuação da memória de um grande e singularíssimo escritor português. 

A propósito, ficaria bem, à Presidência da Câmara Municipal de Vila do Conde reconhecer esta obra de grande valor com uma mais do que merecida medalha de Mérito concedida a esta notável trabalhadora. E também, daqui a recomendo ao Senhor Presidente da República, para que o seu trabalho seja reconhecido com uma adequada comenda.

Porém, à Câmara de Vila do Conde, recomendo algo de igualmente urgente: a reparação, cuja necessidade se arrasta há anos, do tecto da Biblioteca do Centro de Estudos Regianos, porque a chuva que dentro dela cai já destruiu espécies bibliográficas valiosíssimas. 

Os apelos repetidos e angustiantes feitos pela directora do Centro, à Câmara, têm caído em ouvidos moucos. Tratar assim um símbolo cultural desta estatura é uma vergonha, porque expõe de maneira gritante o pouco ou nenhum valor que essa Câmara ou a sua vereação da cultura a esta atribui. 

Eugénio Lisboa

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

O ENVIESADO VALOR TERAPÊUTICO DA IDEOLOGIA

Por Eugénio Lisboa 
A paz é o único combate que vale a pena travar. 
Albert Camus 

Há quem viva só de ideologia e esteja completamente anestesiado para a sensibilidade, não sendo capaz de reagir ao horror da destruição e preferindo refugiar-se na abstracção fria das estatísticas e dos clichés ideológicos.

A ideologia é um colete que os protege do sentir e simpatizar com a dor verdadeira: a dor que doe aos de um lado e aos do outro. A ideologia é, muito frequentemente, um escudo contra a dura realidade. É uma ideologia fria e calculista, sem ouvido nem simpatia para o adversário e que, diante de uma vala comum de cadáveres apodrecidos, pergunta, primeiro, quem matou, para saber se deve ou não condenar. 

Porque há, como já se tem ouvido, assassinos maus e assassinos bons. Os actos dos bons escondem-se debaixo do tapete e a sempre prestável História que os absolva. Há guerras boas e guerras más, dizem os ideólogos amigos destas dicotomias confortáveis. 

Mas Hemingway, que chafurdou em três guerras tremendamente mortíferas e, numa delas, se feriu, sabendo portanto bem do que falava, avisou-nos de que mesmo as guerras boas eram obviamente más. Porque viu o sangue, a lama e a urina, o vómito, os corpos estropiados e os piolhos em escala apocalíptica e, em face de tal visão, não havia lugar para finas destrinças ideológicas: era tudo infame, de um lado e do outro.

O “não matarás” não se aplica só ao outro lado, aplica-se também ao nosso. E, para este mandamento, não pode haver “mas”. O ideólogo frio e manietado por clichés é um assexuado do sentir, um estropiado da sensibilidade.

A filologia leva ao crime, mostrou Ionesco, numa peça célebre. O ideólogo agarra-se à filologia, como boia de salvação que lhe permite flutuar no mar do não sentir. Diante de um amontoado de mortos anónimos, só lhe interessa saber se são mortos do lado certo ou do lado errado. O espectáculo do massacre não o arranha minimamente, o importante é receber o recado certo, do mandante seguro: que lhe diga, sem pestanejar, se deve ou não condenar. O ideólogo refugia-se em clichés mortos, porque estes não sangram nem doem. Três milhões de mortos não têm importância, se o morticínio estiver do “lado certo da História”, signifique isto o que significar. O horror justificado não cria pesadelos. Substituir a fotografia de uma cidade destruída por uma frase desinfectada e maravilhosamente abstacta dá garantias de sonos bem dormidos. Enquanto debitam parágrafos sobre os ventos da História e sobre a inescapável justiça que esta fará aos da “boa doutrina”, não se é obrigado a reparar no Holocausto vigente. 

Há enormes promessas de conforto na filologia que, não só leva ao crime, como serve para o esconder debaixo do tapete. Entretanto, vamo-nos inclinando cada vez mais para a convicção de que não há nada tão reles como a boa consciência dos patifes. Para estes, a razão serve para justificar que tudo pode ser justificado com ela. 

Eugénio Lisboa

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

OS FAUTORES DA GUERRA

As guerras são todas más, mesmo as boas:
as guerras só sabem produzir horrores.
Os horrores bons da esquerda são loas,
os da direita prós comendadores.

Os horrores não têm qualquer cor,
a cor das guerras é sempre o preto.
Os políticos não têm pudor
e tornam sempre o morto obsoleto.

Quem ordena a guerra é delinquente,
sobretudo se acha que é necessária:
só a acha necessária quem mente

ou antes afaga conta bancária!
O fautor da guerra boa ou má
mais cedo ou mais tarde pagará.

Eugénio lisboa 

Pagará ou receberá: é conforme.

domingo, 15 de outubro de 2023

NOVIDADES DA GRADIVA

JAPÃO, 11 DE MARÇO DE 2011.

Um terrível terramoto deu origem a uma enorme onda, que atingiu o nordeste do país com toda a força. É aí que se situa a central eléctrica de Fukushima Daiichi. A violência sem precedentes do cataclismo conduziu a um acidente nuclear devastador. Como devemos reagir ao caos? O que fazer quando o inconcebível acaba de acontecer? Masao Yoshida, o director da central, tem de responder com urgência. A reputação do país está em jogo e as vidas dos seus colaboradores e concidadãos dependem disso. Os primeiros cinco dias serão decisivos. Num cenário catastrófico, em que os edifícios estão mergulhados na escuridão, as explosões se multiplicam e a radiação se torna cada vez mais tóxica, há que tomar decisões difíceis. Mais tarde uma comissão de inquérito ouve o testemunho de Yoshida, para compreender a magnitude da tragédia que tiveram de enfrentar.

Este é o seu relato.


UMA NOTA QUE PODE AJUDAR A PENSAR A DIGNIDADE DA PROFISSÃO DOCENTE

Aos professores cabe desempenhar a “nobre e exigente tarefa de ensinar”. Esta declaração consta no Decreto-lei n.º 79/2014, de 14 de Maio, que aprova o regime jurídico da habilitação profissional para a docência na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário. Para tanto, afirma-se no normativo, é preciso "reforçar instrumentos que propiciem, a médio e longo prazo, ter nas nossas escolas os mais bem preparados, mais bem treinados, mais vocacionados e mais motivados para desenvolver" essa tarefa.

Passaram nove anos sem que os imprecisos "instrumentos" referidos na Lei tivessem sido (devidamente) accionados. A formação, nas circunstâncias em que é realizada, não tem conseguido concretizar as intenções previstas, o sistema não tem conseguido manter os (melhores) professores e, contra a própria lei, recruta quem não é profissional. As condições económicas e materiais são adversas sobretudo para os professores (ou alguém contratado como tal) deslocado. Tudo isto tem saído à rua, caído na rua, abrindo feridas cada vez mais profundas na dignidade docente. 

Posições sindicais e relações entre sindicatos, manifestações e slogans vazios, declarações atabalhoadas de políticos mas também de professores, opiniões aos milhares na comunicação social sobretudo de quem nunca se dedicou a estudar o que seria preciso para opinar, têm mostrado faces pouco edificantes das entidades envolvidas, contribuído para o desprestígio de uma profissão que tem de ser referência em qualquer sociedade.

Em particular, acampamentos, greves de fome e, mais recentemente, uso de carro para dormir são iniciativas que não duvido decorrerem de uma atitude genuína e generosa por parte dos professores que as tomam, mas também não duvido que, apesar de serem, no imediato, muito apelativas para jornais, televisões e redes que lhe imprimem os ingredientes para fazer as pessoas olhar e comentar, não sobreviverão ao imediato. 

Sobreviverá, isso sim, a imagem, progressivamente construída, do professor desprofissionalizado e precarizado. Numa sociedade em que as pessoas são avaliadas positivamente pelo sucesso económico que ostentam, temo que os professores, os que o são realmente, demorem mais do que podemos supor a reerguer a sua condição.

Lamento dizê-lo, mas o gesto do Presidente da República para com um professor, divulgado ontem pela Agência Lusa e replicado na comunicação social (ver a colagem acima) não contribuiu para isso, mas para consolidar a imagem que referi. Até porque se trata do mais alto representante de um país.

"TUDO O QUE É PRECISO É UM BURACO NA PAREDE". E TODOS APRENDERÃO!

O projecto Hole in the Wall, destinado à educação de crianças e jovens com base "no computador e na internet", foi concebido por um académico com formação em Física, de seu nome Sugata Mitra. Apresentado no final dos anos de 1990, tem sido dado como um caso de inequívoco sucesso. Dispensando a observação e a crítica isentas, tem sido implantado em inúmeros países "em desenvolvimento". Nada de novo, nada de especial: na educação surgem, como regularidade, epifenómenos, sobretudo destinados aos "mais desfavorecidos", assemelhados a milagres, que convém não investigar, sob pena de se perceber a falácia.

Sugata Mitra vem em breve a Portugal, a convite de uma empresa, apresentar o seu método de aprendizagem "baseado na ideia de que as crianças são naturalmente curiosas e motivadas a aprender", mostrando-se "flexível e adaptável às necessidades individuais". Estará acompanhado de nomes que comungam deste pressupostos, propondo-se, como previsto na "nota de imprensa", "debater a educação do futuro" (ver aquiaqui). Outra vez!

Convém dizer que o referido projecto é mencionado no relatório da UNESCO Uma tragédia Ed-Tech?, recentemente publicado. Reproduzo abaixo o essencial da análise que apresenta, nada favorável ao seu acolhimento, sendo, portanto, uma boa ideia descartá-lo da "educação do futuro". (ver aqui, páginas 48 e seguintes). 

(...) A experiência – e as poderosas imagens de esperança que evocou – ajudou a normalizar a ideia de que os computadores podem fornecer a espinha dorsal para uma educação em tudo superior à que as escolas, onde os professores ensinam, pode proporcionar. 
Para a experiência, Mitra (...) colocou um computador pessoal de acesso gratuito com sistema operativo Microsoft Windows no nicho de um muro que separava a universidade onde trabalha, em Nova Deli, de um bairro pobre adjacente. A sua equipa observou como as crianças, presumivelmente sem nenhum contacto anterior com computadores, usavam a tecnologia. Pouco tempo depois, anunciou resultados impressionantes: com intervenção mínima de adultos, as crianças aprendiam línguas sozinhas, melhoravam os conhecimentos de matemática e ciências, formavam opiniões independentes e desenvolviam competências digitais, isto entre outras conquistas (...). 
Mitra caracterizou a sua abordagem como “minimamente invasiva à aprendizagem”. A referência manifesta à cirurgia foi provavelmente intencional. Em termos médicos, uma operação cirúrgica “minimamente invasiva” significa que é realizada através de pequenas incisões para diminuir danos ao corpo. Aplicado à educação, sugeria que as estruturas formais de aprendizagem – escolas, professores, horários, disciplina e assim por diante – eram “invasivas” da aprendizagem, que poderiam atrapalhar e causar danos. O computador, por outro lado, permitia que as crianças aprendessem livremente, desinibidas e “não invadidas”. 
Encorajado pelas solicitações de Mitra, um empreendimento cooperativo com apoio do Banco Mundial começou a estabelecer “estações de aprendizagem” não supervisionadas em áreas desfavorecidas de Nova Deli e noutras comunidades. Mitra rapidamente construiu uma marca pessoal, bem como uma empresa, a Hole-in-the-Wall Education Ltd, em torno da promessa de aprendizagem sem atrito, com tecnologia. 
Em pouco tempo, "estações de aprendizagem" do tipo "buraco na parede" começaram a surgir em todo o mundo, no Camboja, Uganda e muito além. De notar que Mitra e Negroponte (famoso pelo OLPC) [One Laptop per Child] eram aliados ideológicos, tendo Negroponte escrito o prefácio para um dos primeiros livros de Mitra sobre o potencial dos computadores para “a aprendizagem auto-organizada” que “tornaria as crianças mais inteligentes e mais criativas”. 
À medida que se espalhavam as notícias sobre a experiência do "buraco na parede", esta foi recolhendo elogios e entusiasmo: continha narrativas convincentes sobre a inovação, a engenhosidade e a curiosidade das crianças e a capacidade humana de resolver desigualdades de longa data recorrendo-se a soluções tecnológicas simples (...).
Com a crescente disponibilidade da internet, as afirmações de Mitra tornaram-se cada vez mais ousadas: crianças de qualquer lugar e origem poderiam descobrir assuntos complexos, como sequenciação de ADN e trigonometria, sem currículo, professores, escolas ou outros componentes tradicionais da educação escolar. Bastava um computador conectado e o incentivo ocasional dos adultos. 
Sem ironia, Mitra defendeu o recrutamento de 'Grans´ – uma abreviação de “avós”, ou professores reformados – para um trabalho, não especializado, de encorajamento (...). O artigo que publicou em 2009, intitulado Presença remota: tecnologias para 'transmitir' professores para onde eles não podem ir, descreve (...) como uma plataforma síncrona de ensino a distância poderia funcionar, prenunciando práticas que seriam adotadas, com pequenas modificações (...), à escala global. 
Além dos computadores e dos ‘Grans’, a visão de Mitra integrava as vantagens da comunicação entre pares. Ao contrário de muitos proponentes seus contemporâneos da tecnologia, sustentava que as crianças deveriam aprender com a tecnologia conectada em grupos e não individualmente. 
À medida que os preços da tecnologia conectada caíram durante a década de 2010, [esta] abordagem (...) foi deixada de lado em favor da abordagem de um aluno para um dispositivo, promovida e normalizada pelo trabalho OLPC de Negroponte e outras iniciativas. Passaram a ignorar-se as descrições de Mitra sobre a comunicação entre pares, prevalecendo o entusiasmo pela tecnologia (...). 
Em 2010, Mitra fez uma palestra TED (Tecnologia, Entretenimento, Design) intitulada A educação orientada para a criança [quando esta plataforma ganhava destaque, conseguindo] (...) a atenção global para as ideias sobre o potencial educativo emancipatório da tecnologia (...). [Na sua] terceira palestra TED, intitulada Construir uma escola na nuvem Mitra [foi] mais contundente [advogando] a dissolução das escolas. “As escolas como as conhecemos agora estão obsoletas”, disse. [O argumento] é que elas são como fábricas que produzem “pessoas idênticas” [na] “máquina administrativa burocrática” que alimenta o Estado moderno. Em vez disso, defendeu “ambientes de aprendizagem auto-organizados, de colaboração e incentivo” (...).
As escolas, afirmou, subvertem a aprendizagem ao impor uma organização hierárquica rígida e restritiva; sufocam em vez de facilitar a educação. A chave era substituí-las por computadores conectados (...). A professora ou avó facilitadora (...) precisava apenas de fazer perguntas, encorajar e [observar] enquanto as crianças progridem. 
[Com esta palestra], Mitra ganhou um prémio TED no valor de 1 milhão de dólares, o que impulsionou ainda mais as suas ideias. [Esta organização apoiou-o, tendo, por exemplo, patrocinado um documentário sobre a sua obra, lançado em 2018]. A voz de Mitra ouve-se enquanto passam imagens de salas de aula superlotadas e alunos entediados: “Qual é o futuro da aprendizagem? Será que precisamos de ir à escola? Ele responde a essas perguntas com outra pergunta: “Será que no momento em que precisamos saber alguma coisa, podemos descobri-la em dois minutos?”. Com o som da música a aumentar, mostram-se pessoas a carregar equipamentos de informática para vilarejos remotos na Índia e crianças entusiasmadas aglomeradas junto a ecrãs, realizando pesquisas na internet e – o espectador é levado a supor – aprendendo. A narração de Mitra continua: “Se as crianças puderem pensar de maneira caótica, elas fixar-se-ão em grandes ideias. E à beira do caos, tudo acontece”. São mostrados trechos rápidos de pesquisas na internet: “O que é eletricidade?”, “Por que cantam os pássaros?”, “Quem inventou a internet?”.  
A mensagem inequívoca é que a aprendizagem espontânea, confusa e “caótica” com tecnologia conectada é mais rica e profunda, além de evitar os controlos opressivos da escolaridade formal. Esta mensagem constitui a base de livro com o mesmo título da palestra (...). Publicado alguns meses antes da pandemia, prometia ajudar os leitores a “vislumbrar o futuro emergente da aprendizagem com tecnologia” (...).
Com ou sem pandemia, as pessoas de dentro e de fora da educação passaram a ver a tecnologia como [capaz] de melhorar e transformar a aprendizagem. Foi entendida como o motor essencial para (...) as novas lógicas em rede da “era da informação”, da “economia do conhecimento” e da “Quarta Revolução Industrial”. Mesmo a linguagem contemporânea da reforma escolar, com os seus apelos à “actualização”, “recodificação”, “religação” e “reformatação” dos processos educativos tradicionais, adoptou o léxico da tecnologia e da computação. Finalmente – e de forma crucial – a tecnologia foi amplamente vista como uma primeira opção de solução para crises educativas. 
Porém, nem todos na comunidade educativa aderiram com entusiasmo a esta visão optimista. Académicos têm notado que a metáfora da escola como fábrica pode ser “enganosa, hiperbólica ou obsoleta” e que é frequentemente utilizada, em situações de emergência, e com interesses comerciais. No entanto, os seus trabalhos têm sido geralmente ignorados, tal como as tentativas de questionar se a tecnologia permite realmente alcançar os resultados educacionais que os seus promotores alegavam. 
A antropóloga Payal Arora, por exemplo, visitou dois locais na Índia onde foram montados quiosques de aprendizagem. Viu que, apesar do significativo investimento, eles estavam “parados” e pareciam “mal ter tocado a comunidade”. Apenas dois anos após a implementação do projeto (...) quase não havia “memória comunitária dele”. Também verificou “a ausência de investigação independente” (...), os poucos investigadores que analisarem os quiosques não ficaram impressionados e encontraram pouco que sugerisse que eles facilitavam uma aprendizagem significativa e sustentada. 
Depois de observar crianças a utilizar os quiosques em Nova Deli e de falar com elementos da comunidade, Mark Warschauerinvestigador da educação, concluiu que o termo mais preciso para o modelo de “educação minimamente invasiva” (...) era “educação minimamente eficaz”. Criticou o "projecto do buraco na parede" e outros semelhantes por desconsiderarem os sistemas humanos e sociais onde a tecnologia foi implantada. 
Talvez a investigação mais rigorosa deste projeto tenha sido a realizada por Frank van Cappelle (2003 a 2005), que passou seis meses em aldeias indianas onde estavam localizados quiosques. Falou com crianças, pais e professores e fez capturas de ecrãs, entre outras modalidades de pesquisa. A sua conclusão central foi que os quiosques, quase sempre instalados em espaços públicos não supervisionados, reproduziam as desigualdades existentes na comunidade: de casta, género, estatuto socioeconómico e idade (...). Os principais utilizadores eram rapazes, mais velhos (depois dos 12 anos), mais ricos e mais alfabetizados digitalmente (...). Van Cappelle notou ainda que os computadores eram usados ​​quase sempre para entretenimento (...). Os usuários regulares adquiriram algumas habilidades básicas de alfabetização digital (...) e pareciam desenvolver confiança na utilização dos computadores, além disso, passavam algum tempo em grupos, interagiam, comunicavam e colaboravam, como faziam noutros ambientes. 
Mas estes lampejos positivos não corroboram os impressionantes ganhos educacionais apregoados por Mitra (...) o título que deu à sua investigação – O lado mais negro da exclusão digital – denota precisamente o contrário. 
(...) Entre os projetos que direcionaram recursos para escolas desfavorecidas, geralmente em países em desenvolvimento, está o OLPC [ver acima]. Uma das poucas avaliações independentes que se fez dele, no Peru, não encontrou evidências de aumento de aprendizagem em matemática e línguas (...) 
Larry Cuban, historiador da educação da Universidade de Stanford e cético de longa data em relação às soluções tecnológicas para a educação, lamentou (...) que parece não haver “fim para o pensamento mágico quando se trata de ensino de alta tecnologia”. 
Apesar de vozes como esta, muitas pessoas – hipnotizadas pelo crescente poder e omnipresença da tecnologia conectada – permaneceram firmes na convicção de que mudanças educacionais transformacionais estão prestes a acontecer na esquina (...) catalisando a aprendizagem com maior facilidade, menor custos e menos intervenções escolares e docentes. Quando o novo vírus começou a espalhar-se em todo o mundo no início de 2020, a tecnologia era amplamente aceite – ainda que não necessariamente por pessoas mais próximas da educação – como uma ferramenta capaz de transformar a educação para melhor. Era a ferramenta disponível e as pessoas acreditavam nisso fervorosamente.

sábado, 14 de outubro de 2023

DOS QUE ENCOMENDAM AS GUERRAS NÃO SE DEVE FALAR COM PANINHOS QUENTES

As guerras matam os corpos dos que morrem 
e matam a alma dos que sobrevivem.
Os enterrados que os vermes roem 
não estão mais mortos do que os que vivem.

Quem manda matar é muito pior 
do que aqueles que de facto matam. 
Ordenar a morte é crime maior, 
é um nó que os deuses não desatam. 

Ordenar matar é matar a frio, 
é matar sem ter medo de morrer,
 é copular, ficando aquém do cio! 

Quem manda matar sem ter de sofrer
é voyeur que só consegue gozar,
desde que outro consiga transar!

Eugénio Lisboa

"Até o silêncio já é ofensivo"

O que acha? O que pensa? Disto, daquilo, dos mais variados assuntos, acontecimentos, casos pontuais.

De tudo e sobre tudo as pessoas têm de manifestar a sua opinião, dizer o que sentem, o que acham, mesmo que nada percebam do assunto de que estão a falar. Sentir e achar tornaram-se os verbos mais usados nos meios de comunicação social, usados em abundância pelos jornalistas, que interrogam as pessoas na rua para saber o que sentem sobre determinado acontecimento. Ganham, porém, destaque especial nas redes sociais, onde tudo é comentado, tenha ou não um interesse geral, ou seja apenas uma intromissão na vida íntima desta ou daquela figura pública.

Vivemos tempos confusos, mesmo para quem, com serenidade, com reflexão e com conhecimento baseado na razão, queira exprimir a sua opinião sobre determinado assunto.

Assim, quem critica é criticado, quem não critica é criticado também, porque não reagiu, não se pronunciou e os jornalistas estão sempre à espera da "reacção" deste ou daquele.

O escritor e jornalista espanhol Arturo Pérez-Reverte, analisa este tema numa das suas crónicas semanais sob o título geral Patente de Corso.

No es ya que desde hace tiempo, sobre todo a través de las redes sociales, la peña pida tu opinión sobre esto o aquello: eso es legítimo, y también a mí me interesa la opinión de mucha gente, sobre todo si es cualificada, e incluso —a veces más interesante aún— de la que no lo es. Pero una cosa es dar tu opinión sobre algo, y otra plegarse a la contumaz exigencia de todo cristo.

E assim, diz ele:

se elogias, ofendem-se os que detestam; se criticas, ofendem-se os que defendem. E se elogias e criticas ao mesmo tempo o que achas positivo e negativo em algo ou alguém, ficam todos furiosos.

alheios à fértil incerteza da inteligência, para eles só existe o branco e o negro, nunca o matiz, o raciocínio,o debate, a complexa gama de cinzentos...

e vêm os insultos " misógino, masón, rojo de mierda, fascista, vendepatrias, dinos quién te paga".

Mas isto já não acontece só quando dás uma opinião, também quando ficas calado. Agora também te insultam por ter a boca fechada, como se abri-la fosse obrigação ineludível de qualquer um que tenha voz pública. São capazes de interpretar até o que não dizes.

Las redes sociales, el paisaje de hoy, están en manos de innumerables cretinos, cuando no malvados – unos pueden convertirse en otros con facilidad – que no desean escuchar opiniones sino confirmación de sus amores y odios personales. No quieren debate, ni pensamiento; no buscan convencer, sino acusar.  Anhelan sentirse parte de un grupo y enemigos de otro, en un mundo que ha sustituido humanismo por humanitarismo y razón por sentimientos. 

Para qué voy a pensar, si es más cómodo sentir. Tal es la ideología asquerosamente emocional de este siglo: un estúpido simplismo de buenos y malos, necesitado de claras líneas divisorias que hagan sentirse confortable a uno u otro lado, según cada cual. 

Como não leram história, nem viram nada para lá do ecrã do telemóvel — e nem mesmo nele — ignoram que tudo se passou antes.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

MARIANA ALCOFORADO

Os homens inventaram os conventos,
pretendendo que não eram prisões,
e ali fecharam, fora dos ventos,
onde a vida prospera sem grilhões,

meninas com destino feio e lento,
emocionalmente assassinadas,
como a Mariana – que não invento! –
ali jazendo, de asas cortadas!

Mas, um dia, uma explosão de vida,
que lhe fez palpitar o coração
descido até onde a vida é cerzida,

fê-la conhecer finalmente o êxtase,
belo como a fúria de um vulcão
que lava com a sua lava a apóstase!


Eugénio Lisboa

Para assinalar o tricentenário da morte da freira de Beja. A Câmara de Beja patrocinou a publicação de um belo álbum/livro, com ilustrações de Francisco Simões e uma longa introdução de Isabel Ponce de Leão.

PRÉMIO CAMÕES ATRIBUÍDO A JOÃO BARRENTO

 Por Eugénio Lisboa

A uma pessoa amiga, que me perguntou o que achava do PRÉMIO CAMÕES, atribuído a João Barrento, respondi nestes termos: 

Acho que foi bem merecido. Só pela belíssima tradução que fez, do FAUSTO, de Goethe, merecia todos os prémios. É um belo tradutor e um excelente ensaísta. Só não percebo a devoção dele pela Gabriela Llansol. Mas todos nós temos direito às nossas idiossincrasias e não é isso que lhe diminui o mérito. É um homem sério, um empenhado estudioso, talvez com um (pequeno) teor de snobismo erudito, mas quem lhe pode atirar a primeira pedra? Fiquei muito contente com terem-lhe conferido o galardão, embora conheças o meu cepticismo, em relação a prémios… Não sei se ele se sentiu bem servido com o Prémio, mas o Prémio ficou bem servido com ele. 

Eugénio Lisboa

DANIEL BARENBOIM E EDWARD SAID: DOIS HERÓIS DA CONCÓRDIA NUMA GUERRA INTERMINÁVEL

Na procura que fiz na internet de uma fotografia para ilustrar este texto, vejo uma em que Daniel está de pé, com uma mão pousada no ombro de Edward, que está sentado. Sorriem para a câmara. Noutras fotografias, vejo-os a olharem-se nos olhos e a sorriem em uníssono ou, então, enleados numa conversa.

A bela relação de amizade cúmplice, entre Daniel Barenboim, israelita, e Edward Said, palestiniano, representa, no meu quadro mental, a melhor expressão da vontade e da possibilidade da concórdia, mesmo quando a guerra não tem fim à vista. E, mais do que isso: de, através da cultura, em concreto, da arte, podermos/devermos tentar construir um futuro melhor do que o presente.

Muitos leitores do De Rerum Natura, saberão que eles criaram, em 1999, em prol da paz no Médio Oriente, a Orquestra West-Eastern Divan, destinada a jovens músicos dessa região. Por esse feito receberam em 2002 o prémio Príncipe das Astúrias da Concórdia (aqui). Os discursos que, à altura, proferiram parecerão, face a esta nova e terrível guerra, pueris e, em última instância, inúteis, mas poderemos desistir das palavras que os compõem, sem desistirmos da humanidade? Penso que não. Por isso mesmo aqui as reproduzo.

DISCURSO DE DANIEL BARENBOIM

Vossa Majestade, 
Vossa Alteza,
Excelências,
Senhoras e Senhores,
Gostaria de expressar, em primeiro lugar, a minha profunda emoção e a mais sincera gratidão pela atribuição deste prémio (...), não a alguns homens, mas a uma ideia, às centenas de jovens do Médio Oriente que fizeram com o seu valente esforço uma música que é harmonia, diálogo, que é, em suma, a expressão daquela concórdia que Edward Said e eu temos orgulho de representar esta tarde. 
Compartilhar isso com ele é uma grande honra para mim, dada a admiração que tenho por ele há muitos anos. 
O nosso projeto pode não mudar o mundo, mas é um passo, e são esses passos que todos temos a obrigação de dar com base na nossa responsabilidade e nas nossas possibilidades. Sentimos o pulsar de muitos corações que nos acompanharam ao longo destes anos e sentimos uma enorme satisfação por hoje a Fundação Príncipe das Astúrias, os membros do seu Conselho de Curadores e o povo do Principado se juntarem à nossa iniciativa e nos terem dado o espírito do nobre projeto que dedicam à humanidade e ao humanismo desde 1980.
Edward Said e eu concebemos o nosso projeto como um diálogo permanente. Este prémio constitui uma manifestação de concórdia, de diálogo e harmonia. A West Eastern Divan, na linguagem universal e metafísica que é a música, mantém um diálogo com os jovens e entre eles. 
Averróis e Maimonides, defendiam, na sua cumplicidade filosófica, que deve haver um equilíbrio entre a razão e a metafísica, e recusando ser chamados professores, ouviram e dialogaram com os seus discípulos, como fazemos com estes jovens que, aprendendo alguns conhecimentos modestos ou técnicas que lhe facultamos, muitas vezes oferecem-nos grandes lições.
Edward Said e eu, seguindo as personagens do diálogo platónico ION, o rapsodo e o filósofo que debatem o conhecimento racional e a inspiração, mantemos um diálogo permanente. Como na obra de Platão, o diálogo é um fim para refletir e chegar a conclusões, e também um meio, uma forma de conceber a existência e a amizade.
Também a Espanha é um território de diálogo. Nas Astúrias começa o período histórico da reconquista, que é uma aventura humana de encontros e desentendimentos (...). 
A vida de Edward Said e a minha representam o drama que os nossos povos viveram no século passado. A nossa amizade e o trabalho que realizamos juntos representam também a esperança, porque dois nómadas como nós decidimos viver nesse território.
O West Eastern Divan também viajou e encontrou um lar em Espanha, na Andaluzia, a cujo povo e a cujo governo gostaríamos de agradecer o seu inestimável apoio. 
A concórdia é expressa musicalmente como harmonia. A orquestra exige que os músicos se escutem, que ninguém tente tocar mais alto que o outro, que se respeitem e se conheçam. É uma canção de respeito, de esforço para conhecer e compreender o outro, algo fundamental para poder superar um conflito que não tem solução militar. A solução política pode estar longe, e isto reforça o meu sentimento de que é dever primordial do indivíduo reflectir, agir de acordo com os seus próprios meios. 
Considero que desta forma poderá surgir um movimento independente entre os dois povos que os ajude a dar uma contribuição para superar o ódio que hoje os confronta. 
A música é impossível de definir por palavras, porque se o fizéssemos reduzi-la-íamos. Ela oferece uma linguagem universal fora do tempo. É ar sonoro, como disse Ferruccio Busoni, sua força é a fusão entre um elemento físico – o som – e um conteúdo humano, que não mudaram ao longo da história e das civilizações. 
Há uma reflexão sobre Séneca da grande pensadora espanhola María Zambrano que hoje podemos recordar: A verdadeira medida do ser não pode ser encontrada num dogma, mas num homem concreto que percebe a harmonia do mundo na sua harmonia interior. Trata-se de ouvir – diz-nos –, uma virtude musical do sábio. É uma atitude incessante que percebe, e é um acorde contínuo. É, em suma, uma arte. A moralidade resultou na estética e como toda estética tem algo de incomunicável.
É verdade que há algo incomunicável na música, algo que vai além das palavras, e talvez seja este fenómeno que faz com que jovens israelitas e árabes se unam para viverem juntos a transformação do som numa experiência musical. 
Vossa Majestade,
Vossa Alteza,
Excelências,
Senhoras e Senhores,
Vivemos num mundo de contrastes permanentes, entre a harmonia e a dissonância, entre a irracionalidade e a racionalidade, entre a privação da palavra e o diálogo, entre as trevas da violência e a luz do humanismo. 
Todos os dias encontramos argumentos que nos lembram que a história humana oferece exemplos permanentes da parte mais negativa destas equações. 
Há muitos séculos, no Reino das Astúrias, o BEM-AVENTURADO DE LIEBANA deu uma das mais preciosas contribuições à cultura ocidental. Na sua obra ele evocou uma Jerusalém celeste no quadro de uma visão apocalíptica. Mas outro paraíso estava a ser construído não muito longe daqui, com a contribuição de muçulmanos, cristãos e judeus. 
O facto de dois amigos, dois irmãos, teremos conseguido lançar este pequeno projecto, o facto de vós estardes aqui hoje a prestar-lhe homenagem, faz-nos pensar no que há de mais positivo no ser [humano], e faz-nos desejar que talvez juntos, vós e nós, estamos a contribuir para os povos palestiniano e judeu com algo sem o qual um homem não pode viver: a esperança de uma vida melhor, que, sem dúvida, terá de ser expressa numa Jerusalém terrena onde os homens vivam juntos mantendo as suas identidades, criando uma ponte entre oeste e leste.
Espero que este prémio abra espaços para essa esperança e para a paz que contém. 
Muito obrigado. 
Daniel Barenboim,
Oviedo, 25 de outubro de 2002.
DISCURSO DE EDWARD SAID
É uma enorme honra receber este prémio extraordinário e poder partilhá-lo com o meu querido amigo e colega Daniel Barenboim. Não encontro palavras para agradecer aos membros do júri do Prémio Príncipe das Astúrias da Concórdia por nos terem escolhido para receber este maravilhoso reconhecimento. Gostaria também de felicitar os outros premiados cujas realizações excepcionais nas Artes e nas Ciências foram igualmente aqui hoje reconhecidas. 
O mundo de hoje está cheio de identidades nacionais e nacionalismos concorrentes. Há anos que vêm enchendo as notícias e muitos são o resultado do que aconteceu quando os grandes impérios clássicos começaram a desmoronar-se após a Segunda Guerra Mundial. Demasiadas vezes, os programas de redistribuição dos impérios, como os da Índia e da Palestina, agravaram as tensões intercomunitárias ainda mais do que antes e não pareceram resolver nada. 
Os nacionalistas muçulmanos e hindus continuam a sua luta e os árabes palestinianos e os judeus israelitas ainda estão muito longe de qualquer perspectiva de paz. 
O princípio e a prática da coexistência e da igualdade parecem tão distantes que são utópicos quase ridículos. 
Longe de conseguir algo que se torne realidade, nações colocadas umas contra as outras causam diretamente a terrível violência da guerra e dos longos conflitos. Outras lutas latentes em favor da identidade nacional estão prestes a explodir, com feridas subjacentes e um sentimento de injustiça que muitas vezes terminam em confronto aberto. De facto, em todos os casos, ambas as partes em conflito sobre a identidade nacional acreditam que têm a justiça do seu lado. 
Mas onde está a justiça? Trata-se de continuar a lutar mesmo que o poder de uma parte tenha ultrapassado em muito o do seu inimigo? Ou trata-se de se opor a ações injustas e de chamar constantemente a atenção para as violações dos direitos humanos e políticos? Ou trata-se de assumir uma posição de superioridade e fingir que a identidade nacional não é da sua conta?
O problema de fundo em tudo isto é que é impossível ser neutro ou considerar estas tensões à distância. Por mais objetivos que tentemos ser, de uma forma ou de outra, são questões de vida ou de morte para todos os seres humanos.
Cada um de nós pertence a uma comunidade com a sua própria narrativa nacional, as suas próprias tradições, língua e história, ideias básicas e heróis. Estes fornecem a substância com a qual todas as identidades nacionais são formadas, embora nem todas estejam em guerra e sob pressão constante. Além disso, é verdade que nenhuma identidade nacional se estabelece para sempre, pois as dinâmicas da história e da cultura garantem constante evolução, mudanças e reflexão. 
O pior é quando indivíduos ou grupos fingem ser os únicos verdadeiros representantes de uma identidade, os únicos intérpretes legítimos da fé, os únicos porta-estandartes da história de um povo, a única manifestação real de uma determinada identidade, seja ela islâmica, judaica, árabe, americana ou europeia. 
De tais convicções insensatas surgem não só o fanatismo e o fundamentalismo, mas também uma total falta de compreensão e compaixão pelos outros. 
Para mim, uma das características especialmente atraentes da identidade espanhola é o facto de ser uma nação que negociou com sucesso o pluralismo - e até enfrentou contradições - na história da sua complexa identidade. As histórias islâmica, judaica e cristã da Espanha fornecem, em conjunto, um modelo para a coexistência de tradições e crenças. O que poderia ter sido uma guerra civil sem fim levou ao reconhecimento de um passado multicultural e a uma fonte de esperança e inspiração, em vez de antagonismos e desacordos. O que outrora foi reprimido ou negado na longa história de Espanha recebeu o devido reconhecimento graças aos esforços históricos de resgate de figuras heróicas como Américo Castro e Juan Goytisolo.
Como palestiniano nascido em Jerusalém, a minha história nacional e a sociedade dos meus antepassados ​​estilhaçaram-se em 1948, quando o Estado de Israel foi criado. Desde então - durante a maior parte da minha vida - tenho participado na luta não só para trazer justiça e restituição ao meu povo, mas também para manter viva a esperança da autodeterminação. 
A nossa história moderna como povo está repleta de sofrimento não reconhecido e de desapropriação contínua.
Como americano com uma vida privilegiada e que estudou na Universidade de Columbia, onde tive muita sorte de me tornar professor, percebi cedo que precisava de escolher entre esquecer o meu passado e dos muitos familiares que se tornaram refugiados sem lugar em 1948, ou aliviar os efeitos dos traumas produzidos pelo sofrimento e pela desapropriação, escrevendo, falando e testemunhando a tragédia da Palestina.
Tenho orgulho de dizer que escolhi o último caminho e, com ele, a causa de uma política americana não-militarista e não-imperialista. Sempre acreditei na superioridade do argumento racional sobre a luta armada, na franqueza e na honestidade usadas não para exclusão, mas para inclusão. 
Como podemos conciliar a realidade de um povo oprimido e explorado, a quem foram negados os seus direitos políticos e humanos, com a realidade de outro povo cuja história de perseguição e genocídio, na minha opinião, anulou injustamente a existência de outro povo indígena no seu caminho de autodeterminação? 
Esta foi a questão. Consistia em ter a cooperação de muitas pessoas, muitos companheiros e amigos com ideias semelhantes, de árabes e judeus, e de não-árabes e não-judeus, cuja paixão pela justiça os uniu ao povo da Palestina, que sofreu sob a ocupação militar israelita durante trinta e cinco anos. Este sofrimento, somado à desapropriação de toda a nação palestina no exílio, clamava por justiça e reconhecimento.
Foi uma luta dura e estamos longe de chegar ao fim. Os sacrifícios diários de corajosos palestinianos que continuam com as suas vidas apesar dos recolhimentos obrigatórios, das demolições das suas casas, dos assassinatos, das prisões em massa e da expropriação das suas terras. 
Precisamos sempre de apoio moral, precisamos da imaginação do mundo, precisamos de demonstrar àqueles que acreditam que a Palestina/Israel é a terra de um só povo, que é uma terra para dois povos que não se podem exterminar ou expulsar um ao outro, que, de alguma forma, têm de se aproximar uns dos outros como iguais, com direitos iguais para viverem juntos em paz e segurança. 
Portanto, para mim, é essencial reconhecer a força e a dedicação daqueles israelitas e judeus que superaram as fronteiras da convenção, da conformidade e identidade autoritária e reconheceram a sua responsabilidade moral para com uma causa que, em muitos aspectos, é também a sua causa. 
Gostaria de prestar homenagem a Daniel Barenboim que nos ofereceu, a nós, palestinos e outros árabes, os seus grandes dons de músico como expressão da mais elevada forma de solidariedade humana.
Embora possa parecer estranho, é a cultura em geral e a música em particular que fornecem um modelo alternativo para identificar conflitos. 
Só posso falar aqui como palestiniano, mas sempre fiquei surpreendido com o quanto a nossa vida de luta nos empobreceu e limitou, simplesmente porque, como povo privado do direito à cidadania, temos tendência a concentrar todas as nossas energias na objetivo imediato de alcançar a independência pelos meios mais diretos possíveis. Claro, isso é compreensível. Mas existe o que eu chamaria de política cultural de longo alcance, que proporciona um espaço literalmente mais amplo para a reflexão e, em última análise, para a concórdia, e que pode substituir a tensão e o desacordo permanentes. 
A literatura e a música abrem este tipo de espaço, porque basicamente são artes não de antagonismo mas de colaboração, receptividade, recreação e interpretação coletiva. Ninguém escreve ou toca um instrumento para ler ou ouvir-se a si mesmo. Existe sempre o leitor ou o ouvinte, e com o tempo o público cresce. 
O meu amigo Baremboim e eu escolhemos este caminho mais por razões humanísticas do que políticas, porque pensamos que a ignorância e a auto-afirmação repetida não são estratégias de sobrevivência sustentáveis. 
A disciplina e a dedicação proporcionaram-nos uma força motriz que nos permite unir as nossas comunidades sem ilusões, sem abandonar os nossos princípios. 
O que é encorajador é ver o número de jovens que responderam e a forma como, mesmo em tempos tão difíceis como estes, os jovens palestinianos decidem estudar música. Quem sabe até onde iremos e quem conseguiremos fazer mudar de opinião.
A beleza desta pergunta é que ela não pode ser facilmente respondida nem descartada. 
O seu reconhecimento dos nossos esforços, no entanto, ajuda-nos a dar um grande passo em frente.

EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o s...