sexta-feira, 19 de julho de 2019

(Ep. 67) "Um neurocirurgião em construção" de João Lobo Antunes

(Ep. 68) "O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer"

Um beco com saída


Início do texto inédito do jornalista do PÚBLICO Nuno Pacheco, que fecha o seu livro  Acordo ortográfico. Um beco com saída, que acaba de sair na Gradiva (também eu sou contra o Novo Acordo Ortográfico, para o qual nunca encontrei explicação suficiente):

O Acordo Ortográfico de 1990 nasceu de um perigoso casamento: o do medo com a mentira. O medo, antigo, é de que no Brasil se ouça finalmente o há muito brandido grito do Ipiranga linguístico e a língua portuguesa, ali, passe a denominar‑se «brasileiro». A mentira, muitas vezes repetida, é a de que o português seria a única língua com duas ortografias oficiais. O acordo, sob a capa da unificação ortográfica (uma «causa» de décadas), viria assim travar a desagregação do universo da língua portuguesa e criar, enfim, uma ortografia unificada.

 Sobre estes dois temas, já muitos textos foram escritos, esgrimindo argumentos com bases científicas ou simplesmente brandindo opiniões fundadas apenas em crenças. Não valerá a pena remexer nelas, a não ser para sublinhar o óbvio: a causa do «brasileiro» será tanto mais forte quanto mais se insistir na miragem da «unificação»; e a ortografia, por mais que se afiance o contrário, tende a ser plural nos idiomas mais difundidos no Universo (veja‑se o inglês, o francês, o espanhol ou o árabe com, respectivamente, 18, 15, 21 e 16 variantes ortográficas reconhecidas) e não unificado. Por uma razão bem simples: a cada desenvolvimento de uma língua e respectiva escrita, corresponde uma matriz cultural de séculos, que a vai moldando, alterando, reconfigurando. Não só na criação de novos vocábulos como na morfologia de várias palavras, nos seus significados e nas estruturas frásicas, ou seja, na sintaxe. A cada ano que passa, a ideia de uma uniformização afasta‑se naturalmente, para se aproximar do reino das quimeras. Os seus arautos, ainda que não o saibam (ou não queiram saber), são já parte de um pequeno exército retrógrado, a lutar contra a inexorabilidade deste destino.

Porém, mesmo assim, surgiu no universo da língua portuguesa (e foi aprovado, por força de duvidosas convicções políticas) algo de que nenhuma outra língua nacional precisou para sobreviver, singrar ou até expandir‑se no globo: um acordo ortográfico. É uma originalidade estranha, que só vingou devido ao perigoso casamento a que se aludiu no início do texto. Medo e mentira, juntos, ao longo da História, têm sido adubo para inúmeras carnificinas e monstruosidades, das quais só se acorda quando o mal está feito. Não é exactamente o caso deste «acordo», que não provocou a morte de ninguém, embora os seus malefícios tenham, na escrita, no entendimento dela e até mesmo na fonética, graves efeitos a médio prazo. O máximo a que nos conduziu, e que persiste, foi a um clima de animosidades, desconfianças, a erros feitos norma, a um caos ortográfico desnecessário e a um empreendimento desastroso do qual não é visível qualquer benefício, dos tantos propalados no início eufórico desta triste aventura. Encontramo‑nos, pois, no fundo do abismo. Sorte nossa, ainda nos restam cordas para tentar a escalada, íngreme, fincar de novo os pés na terra e evitar futuras quedas. 

Se pudéssemos retroceder uns séculos (e isso é possível com uma paciente consulta de livros em bibliotecas nacionais, aqui como no Brasil), veríamos que a ortografia, embora fosse já motivo de discussão desde o século xvii (primeiro com Bento Pereira ou João Franco Barreto e posteriormente, já no século xviii, com Luís António Verney ou Moreira Feijó), não era uniforme em Portugal ou no Brasil. Escritores houve que tinham várias ortografias, usando‑as consoante os seus escritos fossem cartas, livros ou outros documentos. A ideia de uma simplificação, vinda já de Verney (no seu Verdadeiro Método de Estudar, 1.ª edição impressa em Nápoles, 1746), havia de encontrar eco mais tarde, no início do século xx.

 Foi a Academia Brasileira de Letras que deu o primeiro passo, em 1907. E nomeou, em Maio desse ano, uma comissão para levar a cabo uma reforma ortográfica. Como escreveu mais tarde o académico Evanildo Bechara, num prefácio ao livro de actas da ABL, «a Academia conseguiu, àquela primeira fase, discutir a sistematização ortográfica, divididas as hostes entre os fonetistas, com Medeiros de Albuquerque à frente, e os etimologistas, chefiados por Salvador Um beco com saída 189 Mendonça». Após várias sessões, a proposta foi aprovada em 17 de Agosto de 1907, ainda com Machado de Assis presidente da ABL, cargo que ocupou de 1896 a 1908. Não contavam os Brasileiros que, em Portugal, o advento do republicanismo levasse ao derrube da monarquia em 5 de Outubro de 1910 e que, em consequência de tal revolução política, os Portugueses resolvessem avançar com a sua própria reforma ortográfica, destinada a, diziam, «favorecer o ensino fácil da leitura e da escrita, tanto quanto um idioma secularmente literário o permite» (Nova Ortografia Portuguesa, Oficialmente Adoptada, Porto, 1911). Foi uma reforma unicamente portuguesa, alheia ao Brasil; que aliás, como se viu, avançara anos antes com a sua, sem nenhuma preocupação com «unificações». O que não impediu os Brasileiros de apontarem um dedo acusador a Portugal: «Apesar de tudo [da escrita consuetudinária e das variações ortográficas consoante autores, escolas, épocas e lugares] não existia o problema, se prevalecia o critério etimológico. Em 1911 dele se apartou Portugal, com o sistema simplificado que Gonçalves Viana preconizara.» Isto pode ser lido na edição do livrinho Acordo Ortográfico entre o Brasil e Portugal, publicado no Brasil, em 1947, pelo Jornal do Commercio, e que incluía o texto do Acordo Ortográfico de 1945. O texto, que omite o passo dado pela ABL em 1907 no sentido de uma reforma unilateral do Brasil, conclui: «Em 1931 verificaram as Academias brasileira e portuguesa que, devido àquela atitude isolada, realmente se cindira o idioma em duas escritas, a fonética e a etimológica.» É aqui, neste pequeno e singelo momento, que se esboça a mentira.

 Desde então, a busca de «um tratado que de novo a unificasse» (a escrita, bem entendido) não mais parou. Reuniões, conclaves, consultas, esboços de acordos, acordos assinados e depois rasgados, modificações parcelares, tudo em busca do almejado graal. Não houve, ao longo de todo esse tempo, entre os negociadores, alguém que parasse por um momento a avaliar o enorme absurdo de tal empreitada. O objectivo era tudo: unificar, mesmo que isso já não existisse antes. Ninguém pensou, por um só segundo, na insanidade que seria voltar atrás noutras coisas (países, bandeiras, hábitos, culturas), mas a escrita sim, devia voltar «ao que era».  E o que era, antes? O que se sabe: herança de séculos, um belo idioma que se foi desenvolvendo e tomando novos sons e formas consoante as geografias. Não seria isso unidade bastante? Como a de pais e filhos, que não têm de ser iguais nas opções de vida ou nos gostos para partilharem o mesmo sangue? Não. E insistiu‑se no acordo «unificador».

(...)

Nuno Pacheco

UM MAU SERVIÇO À EDUCAÇÃO

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Meu artigo de opinião para o site Ponto SJ:


Foi há semanas anunciado que o Colégio dos Jesuítas em Cernache, perto de Coimbra, denominado “Colégio da Imaculada Conceição” (CAIC), foi forçado a fechar portas, devido ao “final dos contratos de associação com o Estado Português, em vigor há 40 anos. Tratou-se de uma opção repentina e unilateral tomada, na altura [2016], pelo Ministério da Educação,  à qual o CAIC foi alheio e à qual se opôs desde a primeira hora, mas sem sucesso” (transcrevo do comunicado afixado como no sítio da Internet que era do CAIC).

Resido em Coimbra e conheço o trabalho do CAIC. Conheci alguns professores que lá trabalharam e fui lá uma vez, convidado, dar uma palestra sobre Física para os alunos. Considero que foi um erro grave a extinção, imposta pelo governo, de um estabelecimento de ensino com amplas provas dadas, desde 1955, na formação de numerosos alunos, mais de dez mil, de uma região periférica – e bastante desfavorecida – de Coimbra. Ouvi alguns debates sobre o fim dos referidos Contratos de Associação e pareceram-me, em geral, tolhidos pela ideologia:  os defensores da medida governamental partem do princípio de que um serviço público só pode ser prestado por uma entidade pública, o que não é verdade, por abundarem os exemplos, entre nós e lá fora, de serviços públicos prestados por entidades privadas com o necessário apoio estatal. O ponto principal, julgo que incontestável, é que o encerramento da escola – para além do prejuízo dos professores e funcionários, alguns deles com carreiras de muitos anos – redundou num claro prejuízo para os alunos, que não dispõem de uma solução com as mesmas proximidade e  qualidade. Costuma dizer-se que os colégios são, em Portugal, lugares dos “meninos ricos”. Mas este não era seguramente o caso do CAIC, frequentado maioritariamente por crianças e jovens de camadas sociais baixas, como mostram as estatísticas dos resultados escolares (é conhecida a correlação entre estes e o estatuto económico-social das famílias dos alunos).

Um aspecto que merece relevo é a aparente ignorância da história que mostraram os nossos actuais políticos, que determinaram ou permitiram o fecho desta escola. Não sabem, por exemplo, que uma das mais antigas casas de formação dos jesuítas em todo o mundo foi o Colégio de Jesus, em Coimbra, fundado no ano de 1542 (o seu edifício é hoje parte da Universidade de Coimbra e, portanto, Património Mundial da Humanidade; no Museu da Ciência, que ocupa uma parte dele, tem estado uma exposição sobre os Jesuítas e a ciência). A Companhia de Jesus, fundada sob o forte impulso de Inácio de Loiola e reconhecida por bula papal em 1540, chegou a Portugal neste mesmo ano. O Colégio de Messina, na Sicília, foi fundado pelo próprio Loiola em 1548. O Colégio Romano, que tomou o de Messina como modelo, só foi fundado em 1551, isto é, quase uma década após as primeiras casas portuguesas (em 1542 também tinha surgido o Colégio de Santo Antão em Lisboa), mas logo se constituiu o nó central de uma rede pedagógica que, com a ajuda da plataforma portuguesa, se estendeu rapidamente a todos os continentes. Pode dizer-se que Portugal, que acolheu S. Francisco Xavier e Simão Rodrigues, ambos do grupo inicial de Loiola, foi a “rampa de lançamento” dos Jesuítas no mundo. É algo paradoxal que Coimbra, que instalou uma das primeiras escolas dos Jesuítas do mundo, não tenha agora nenhuma. Um filósofo espanhol que visitou há anos a Lusa Atenas perguntou-me onde estavam os Jesuítas, sabendo bem da influência que tiveram os Conimbricenses no século XVII (até Descartes, embora torcendo o nariz, estudou por eles no Colégio de La Flèche, o mais importante de França). Respondi-lhe que havia muito poucos na cidade: tinham uma casa próximo da Universidade e um colégio nas vizinhanças. Agora o colégio já não existe…  Os governantes que na prática mandaram fechar o CAIC, prestando um mau serviço à educação, desconhecem provavelmente os contributos dos Jesuítas para o ensino, para  a ciência e para a cultura. Não devem saber, por exemplo, o que foi o Ratio Studiorum, o código das orientações pedagógicas que, oriundas do Colégio Romano, se espalharam ao longo de uma rede global.  O mesmo se aplica aos autarcas  de Coimbra, que não se moveram em defesa dos interesses dos munícipes afectados.

A história dos Jesuítas em Portugal é trágica. Em 1759 o Marquês de Pombal expulsou-os, fechando ou reconvertendo as suas escolas. Os historiadores tendem hoje a concordar que a interrupção da rede de colégios inacianos conduziu a uma ruptura do ensino secundário de que o país demorou a recuperar. Não havia alunos em número suficiente para alimentar a reformada Universidade de Coimbra (reforma que, em muitos aspectos, era de resto necessária). Os Jesuítas regressaram a Portugal em 1829, mas só permaneceram cinco escassos anos. Regressaram de novo em 1848, mas voltaram a ser expulsos em 1910, para regressarem de novo em 1923.

Hoje só existem dois colégios jesuítas em Portugal: o das Caldinhas, em Santo Tirso, que remonta a 1932, e o de S. João de Brito, em Lisboa, inaugurado em 1947. Um maior conhecimento da história assim como uma melhor ponderação do interesse dos alunos teria levado a uma decisão diferente da que excluiu Coimbra e a região Centro do país de uma escola que se integrava uma rede que tem feito jus ao seu lema, “educar para servir.”

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Minha entrevista a Ricardo Lopes ("The Dissenter", no YouTube)

Introdução à edição portuguesa de "O Cálculo da Felicidade"



Prefácio especialmente escrito pelo autor para a edição portuguesa de "O Cálculo da Felicidade" que acaba de sair na colecção Ciências Aberta da Gradiva:

A Universidade de Coimbra, uma das mais antigas do mundo, teve um papel pioneiro nas aplicações práticas da matemática. O famoso matemático português Pedro Nunes foi responsável pelo ensino da matemática  na Universidade de Coimbra,  em meados do século XVI;  os seus ensinamentos, as obras que escreveu, os seus inventos revolucionaram a ciência da navegação.

A promulgação dos Estatutos Pombalinos de 1772 veio reforçar ainda mais a importância do estudo da matemática e das suas aplicações. O símbolo da Academia de Ciências de Lisboa, fundada alguns anos depois, em 1779, tem inscrita essa visão da matemática – contém o texto em latim “Nisi utile quod facimus, stulta est gloria”, que significa “Se não for útil o que fizermos, a nossa glória será vã.”

Um requisito dos Estatutos de 1772 foi a exigência de que os livros de matemática fossem disponibilizados (em português) aos estudantes portugueses. Esta edição do livro O Cálculo da Felicidade honra, à sua maneira, o espírito daquela exigência – todos os estudantes portugueses devem ter acesso a uma educação matemática de qualidade superior e manter a tradição portuguesa de valorizar as aplicações da matemática.

Como os autores portugueses que reconheceram a utilidade deste tema, também eu acredito firmemente na aplicabilidade intrínseca da matemática, sou por formação um profissional da matemática aplicada. Essa foi a minha motivação para escrever O Cálculo da Felicidade. Já foram escritos muitos livros sobre as aplicações da matemática nas ciências, nas engenharias e noutras áreas do conhecimento. Mas foram relativamente poucas as obras que se concentraram nos usos práticos e pessoais da matemática que aprendemos na nossa juventude. Os tópicos que aprendemos – que incluem conceitos como funções, logaritmos ou probabilidades – são frequentemente aplicados em contextos que o cidadão comum não experimenta (por exemplo, medir o período de decaimento de um isótopo radioactivo). Assim, não nos pode surpreender que, quando ensinada desse modo, a matemática adquira, ao longo do tempo, uma conotação de estudo abstracto de várias fórmulas que nunca serão usadas fora da sala de aula.

O Cálculo da Felicidade é uma refutação directa dessa abordagem do ensino da matemática. É um livro projectado para mostrar as aplicações da matemática dos ensinos básico e secundário que são particularmente relevantes no nosso dia a dia. Ensina-nos como a matemática nos pode ajudar a ser mais saudáveis. Ou como poderemos lidar melhor com as nossas finanças pessoais. E até ilustrará como é possível quantificar vários aspectos das nossas relações, tanto românticas como não românticas.

Mais importante ainda, O Cálculo da Felicidade possui um objectivo central: incentivar os leitores a adoptarem uma abordagem matemática da vida. A matemática é um dos assuntos mais antigos que é universalmente reconhecido ao longo da história da humanidade como um pilar essencial da educação de cada pessoa. Uma das razões é que a matemática não é uma colecção de fórmulas, mas sim um desenvolvimento sistemático e cumulativo de ideias e pensamentos lógicos, limitados apenas pela imaginação. Uma grande parte da matemática consiste, portanto, em trabalhar matemática, e não apenas em ler matemática. Por isso, sugiro vivamente que trabalhem ao longo do livro e experimentem o que irão aprender para apreciarem realmente o que quero dizer com “adoptar uma abordagem matemática da vida”.

A concluir deixo aqui algumas palavras de incentivo dizendo que serão capazes de aprender, apreciar e dominar a matemática. Ela já está à vossa volta, mesmo no interior de cada um de vós, antes de eu me esforçar por vos convencer disso neste livro; tal como no caso da aprendizagem de uma língua nova, apenas vão precisar de imergir nela, praticá-la e trabalhar para melhorar a vossa fluência.

Espero que aprecie O Cálculo da Felicidade.

Oscar Fernandez

Professor associado de Matemática
Departamento de Matemática
Wellesley College, Wellesley, MA, EUA

NOVIDADES DA GRADIVA EM JULHO

Lista de novidades que a Gradiva publica no mês de Julho de 2019, recebida da editora: 

O Cálculo da FelicidadeOscar E. Fernandez
Saiba como a matemática tem as chaves para melhorar a saúde, a riqueza e o amor!
O matemático norte-americano Oscar Fernandez, usando apenas alguma matemática dos ensinos básico e secundário, mostra-nos como esta fornece indicações preciosas para melhorar a nossa vida. O Cálculo da Felicidade ensina-nos o enorme poder da matemática.
«Ciência Aberta», 248 pp., 15,00 €
https://www.gradiva.pt/catalogo/46521/o-calculo-da-felicidade


Acordo Ortográfico - Um Beco com Saída Nuno Pacheco

Os arautos do pseudo Acordo Ortográfico são um exército retrógrado, a lutar contra a evolução natural da escrita, porque esta passa pela fixação e reconhecimento das variantes ortográficas nacionais e não pela sua «unificação».
O Acordo Ortográfico é um embuste. Meteu-nos num beco, mas esse beco
tem saída.






«Trajectos Portugueses», 208 pp., 13,00 €
https://www.gradiva.pt/catalogo/46522/acordo-ortografico:


A Religião dos Fracos – O que o jihadismo diz de nós
Jean Birnbaum

«Nós amamos a morte como vós amais a vida»: com esta frase, o jihadista obriga-nos a dizer «nós». Revela a fragilidade do «nosso» universalismo. E somos por isso obrigados a ver de modo diferente as relações de força passadas e presentes, a ver com
um novo olhar as liberdades que distinguem a Europa como civilização. Ao espelho do jihadismo, descobrimos aquilo em que as nossas convicções se tornaram: a Religião dos Fracos
«Trajectos», 208 pp., 15,00 €
https://www.gradiva.pt/catalogo/46525/a-religiao-dos-fracos


Inquisição e Cristãos–Novos 
António José Saraiva


«O processo inquisitorial era secreto, sem apelo, deixava nas mãos dos inquisidores o poder praticamente absoluto e arbitrário de condenar ou absolver. E o Tribunal do Santo Ofício, que vivia dos bens confiscados dos réus, era parte interessada nos processos.» Inquisição e Cristãos-Novos é, 50 anos após quatro edições fulgurantes, a melhor introdução a um universo kafkiano que o presente imita sob outras formas.

«Obras de AJS», 304 pp., 16,00 €
https://www.gradiva.pt/catalogo/46526/inquisicao-e-cristaos-novos



Prometeu e a Caixa de PandoraLuc Ferry , Giuseppe Baiguera, Clotilde Bruneau 
Nos Clássicos gregos está tudo, para a eternidade: o amor, a amizade, o ódio, a lealdade e a traição, a liberdade, a opressão, a angústia, o espanto, o racional, o irracional, tudo.
Um conjunto de bandas desenhadas que respeitam os textos fundadores originais, enriquecidas por dossiers complementares PROMETEU E A CAIXA DE PANDORA é o primeiro livro desta colecção publicado pela Gradiva.

A guerra dos Olimpianos contra os Titãs terminou com a vitória dos primeiros, conduzidos por Zeus. Mas a euforia rapidamente dá lugar ao tédio. Já não se passa nada no Universo. Então, para distrair os deuses que a paz anestesia lentamente, Zeus pede a Prometeu que faça seres mortais, para que a história e a vida regressem ao cosmos. Prometeu engendra então uma espécie que, dotada do fogo e das técnicas, ultrapassa todas as outras. Isto vai valer-lhe a fúria do rei dos deuses, convencido de que a Humanidade ameaça agora a ordem do mundo...
Por Luc Ferry
Luc Ferry é um autor de referência sobre a mitologia grega, com várias obras publicadas acerca do tema. Nascido em Colombes em 1951, Luc Ferry é um filósofo e político francês. Foi Ministro da Educação em dois governos sucessivos. É autor de muitas obras filosóficas, incluindo Le Nouvel ordre écologique (Prémio Médicis de ensaios e Jean-Jacques Rousseau em 1992). Entre outros temas, dedica-se ao estudo das ligações entre a filosofia e a mitologia grega, no qual se enquadra Prometeu e a Caixa de Pandora

A Sabedoria dos Mitos, 56 pp., 16,50 
https://www.gradiva.pt/catalogo/46527/prometeu-e-a-caixa-de-pandora



As Pálidas Colinas de NagasáquiKazuo Ishiguro
A história de Etsuko, uma japonesa que vive sozinha em Inglaterra, chorando o suicídio recente da filha.
Refugiando-se no passado, dá consigo a reviver um Verão particularmente quente em Nagasáqui, quando ela e as amigas se esforçavam por reconstruir as vidas após a guerra.
«Um enigma arrepiante e irrepreensivelmente engendrado.»
Sunday Times

«Um romance delicado e irónico, com personagens extraordinariamente convincentes.»
New York Times Book Review

«Um génio original e notável.»
New York Times

«Gradiva», 224 pp., 15,00 €
https://www.gradiva.pt/catalogo/46520/as-palidas-colinas-de-nagasaqui


Movimentos anti-vacinas no século XIX - David Marçal na Rádio Renascença

O segundo dos cinco episódios da minha participação no programa Tim-Tim por Tim-Tim da Rádio Renascença (2/5).

quarta-feira, 17 de julho de 2019

As pedras são os livros onde estão escritas as histórias da Terra e da Vida...


... e as letras dessa escrita são, sobretudo, os minerais e os fósseis, mas também os elementos químicos e os isótopos Na imagem, uma escultura do espanhol José Manuel Lopez.

A. Galopim de Carvalho

Sobre previsões falhadas - David Marçal na Rádio Renascença

Minha participação no programa Tim-Tim por Tim-Tim da Rádio Renascença. Aqui, o primeiro dos cinco episódios (1/5)

MIL CENTO E QUARENTA VEZES A HISTÓRIA DE PORTUGAL

(Do meu livro “COMO BOLA COLORIDA – A Terra, Património da Humanidade”, Âncora Editora, Lisboa, 2007).


No dia-a-dia, o tempo mede-se em horas, minutos e segundos nos mostradores dos nossos relógios de pulso. Na História, mede-se em anos, séculos e milénios, usando, para tal, pergaminhos, tabuletas de barro, papeis e outros documentos com significado cronológico.

Na Pré-história do Homem faz-se outro tanto com base em utensílios e outros objectos e fala-se de milhares e, nalguns casos, de milhões de anos. A escala do tempo dilata-se ao historiarmos o passado geológico e ainda mais se recuarmos aos começos do Sistema Solar e do Universo, onde os milhares de milhões de anos marcam as etapas percorridas com uma imprecisão que se esfuma nessa “eternidade”.

Mil milhões de anos a mais ou a menos, nos primórdios da matéria de que somos, representam o mesmo grau de imprecisão do milhão de anos a mais ou a menos no tempo dos dinossáurios, do mais ou menos um ano na história do velho Egipto, ou do mais dia - menos dia, mais minuto - menos minuto, no tempo que estamos a viver, mais segundo-menos segundo nos cronómetros dos corredores desportivos.

No decurso da nossa existência revemos, sem dificuldade, o nosso tempo, o dos avós e até o da História, mas é com esforço que abarcamos ou evocamos a vastidão do tempo geológico, com cifras que só encontram paralelo na imensidão das distâncias astronómicas. Como na História, também a Geologia necessita de documentos e esses temo-los nas rochas, quer sejam os fósseis, quer alguns dos seus minerais contendo isótopos radioactivos.

Entre as variáveis susceptíveis de serem correlacionadas com o tempo, apenas duas têm lugar de forma irreversível, uma vez que, qualquer destes dois processos se desenvolve apenas num sentido: a evolução biológica e a desintegração radioactiva natural. Porque de uma história se trata, a Geologia tem no tempo um dos seus pilares, sendo aí encarado sob duas perspectivas distintas: a de tempo relativo e a de tempo absoluto.

Na de TEMPO RELATIVO procura-se saber se um dado evento ocorreu antes, depois ou em simultâneo com outro, isto é, se lhe foi anterior, posterior ou contemporâneo. De há muito que as relações geométricas, observáveis no terreno, entre os diversos corpos rochosos aflorantes, têm sido utilizadas no estabelecimento da ordenação cronológica dos acontecimentos geológicos de que são testemunhos.

Uma tal ordenação é particularmente evidente nas rochas estratificadas, nas quais os estratos ou camadas se sucedem numa imediata sugestão de sequência no tempo. Tal ordenação é a mesma patenteada numa pilha de papéis na secretária de um burocrata. A relação entre o empilhamento dos estratos rochosos e o curso do tempo chamou a atenção do dinamarquês Nicolau Steno, no século XVII, constituindo uma das primeiras ideias fundamentais da geologia, conhecida por Princípio da Sobreposição, segundo o qual, “numa sequência estratificada não deformada, qualquer camada é mais moderna do que as que lhe ficam por baixo e mais antiga do que as que se lhe sobrepõem”.

Evidente à luz dos conhecimentos actuais, este princípio representa um avanço notável para a época em que foi enunciado. Nele se relacionam, pela primeira vez, as rochas estratificadas com o processo de deposição progressiva dos sedimentos que as integram, a que corresponde uma ideia de sucessão no tempo. Como marcos cronológicos, também os fósseis, escalonados na cadeia evolutiva da biodiversidade, nos permitem uma abordagem do tempo relativo.

No que se refere à evolução biológica, desde há muito que se constatou, através dos fósseis, que as espécies animais e vegetais do passado foram surgindo ao longo da história da Terra, se mantiveram durante períodos mais ou menos longos, acabando, quase sempre, por se extinguir, não voltando a aparecer. Leonardo da Vinci (1452-1519) foi o primeiro a reconhecer os fósseis como testemunhos de outras vidas em épocas passadas. Até então e mesmo depois dele, os fósseis eram vistos como caprichos da natureza.

Só no século XVIII se estabeleceu definitivamente a sua interpretação como restos de seres vivos do passado. Os fósseis representam os elos de uma cadeia de complexidade crescente. Neste entendimento, e graças ao muito trabalho dos paleontólogos, sabemos, por exemplo, que as camadas de rochas sedimentares com fósseis de trilobites são mais antigas (Paleozóico) do que as que conservam ossadas de dinossáurios (Mesozóico) e que estas, por sua vez, são anteriores às que serviram de jazida aos mamutes ou aos australopitecos (Cenozóico), nossos avós.

Este raciocínio, aqui exemplificado para grandes intervalos de tempo, ao nível das eras geológicas, faz-se correntemente para intervalos mais curtos, como são os representados pelos sistemas (períodos), séries (épocas), andares (idades), subandares e outros ainda mais reduzidos.

O mesmo tipo de conhecimentos habilita-nos a considerar geologicamente contemporâneas todas as rochas que, em quaisquer lugares, contenham os mesmos fósseis. Aplicável a muitíssimas espécies fósseis conhecidas, estes raciocínios têm vindo, a partir do século XIX, a permitir escalonar no tempo o conjunto das sequências de rochas sedimentares (e também em rochas metamórficas, num grau de intensidade relativamente baixo, como é o das séries paleozóicas de Norte a Sul de Portugal), onde se encontra o essencial do registo fóssil de toda a biodiversidade que nos antecedeu.

Na outra perspectiva, a do TEMPO ABSOLUTO, passível de quantificação, esta variável tem o sentido de duração e, assim, refere o intervalo que medeia dois acontecimentos ou o que decorreu entre um deles e o momento presente, isto é, a sua idade. Uma das vias mais frutuosas na medição do tempo geológico nasceu com a descoberta da radioactividade por Henri Becquerel, em 1896, e ganhou corpo com os trabalhos sobre a constituição e funcionamento do núcleo atómico levados a efeito por Marie e Pierre Curie e muitos outros físicos.

Tais avanços da ciência, com reflexos na medição do tempo, foram sabiamente aproveitados por vários investigadores, entre os quais o geólogo inglês Arthur Holmes, que “só não foi prémio Nobel porque a Geologia não figura entre as disciplinas contempladas no respectivo regulamento”.

Executadas por rotina em muitos laboratórios de todo o mundo, as determinações de idade isotópica (baseada no comportamento natural de alguns isótopos radioactivos) de alguns minerais (feldspatos potássicos, moscovite, biotite, entre muitos outros) permitiram-nos enquadrar, em termos de cronologia absoluta, as grandes etapas da história da Terra a da Vida, muitas delas, de há muito definidas em termos de idade relativa.

Sabemos hoje que a Terra se formou há aproximadamente 4540 Ma (idade ainda em discussão), que os “dinossáurios não avianos” (as aves, hoje aceites como descendentes de um certo grupo de dinossáurios, são, assim, “dinossáurios avianos”) fizeram a sua aparição há cerca de 235 Ma e que desapareceram, de vez, há 65 Ma. Sabemos que o granito do Porto tem 560 Ma, que o das Beiras tem à volta de 300 e que o de Sintra, apenas 85 Ma. E a lista de rochas e de acontecimentos de que conhecemos a idade absoluta é imensa e não para de crescer.

O trabalho monumental empreendido pelos paleontólogos, ao longo dos séculos XIX e XX, permitiu, como se disse, um aceitável escalonamento no tempo, baseado nos fósseis, e o estabelecimento de eras, períodos, épocas e outras divisões temporais mais finas. Posteriormente, mercê dos avanços no conhecimento geológico e dos progressos da física dos isótopos e das tecnologias de análise, dispomos hoje de uma escala cronostratigráfica na qual, com pormenor sempre melhorado, as divisões temporais, baseadas nos fósseis, estão agrupadas em intervalos de tempo de diferentes hierarquias, cotados por valores numéricos referidos à unidade de tempo geológico adoptada, isto é, o milhão de anos, nada menos do que dez mil séculos, uma enormidade no horizonte temporal das nossas vidas, mil cento e quarenta vezes a história de Portugal, mas uma migalha no tempo da Terra.

A. Galopim de Carvalho

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Todos já deveríamos saber como acabam as ideologias quando mistificadas em educação.

A criação do "homem novo" é (compreensivelmente) uma tentação dos sistemas políticos totalitários. Na Modernidade, tal tentação é, muito visivelmente, concretizada nos sistemas de ensino nacionais, tanto de esquerda como de direita.

Acontece que, desde finais do século XX, é assumida por organizações supra e internacionais que, há muito preparavam o caminho para tal. O "homem novo" que tornará a Europa a maior e mais competitiva economia do planeta (União Europeia, Declaração de Lisboa), que salvará a economia global e tornará "o mundo melhor", nas Agendas 2020 e 2030 da Organização das Nações Unidas, respectivamente.

Pede-se (exige-se) à escola, que deixe de ser um espaço e um tempo de educação, para se tornar um campo de doutrinamento. Isso acontece em democracia, naquela em que vivemos, neste e noutros países. E muito pouca gente parece dar conta.

Por isso mesmo, reproduzo a seguir extractos de um artigo escrito por alguém que dá conta do que acima mencionei. Trata-se de Luís Filipe Torgal, professor de História de uma escola do interior (Oliveira do Hospital), investigador no mesmo centro de investigação a que pertenço (Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra - CEIS20). O artigo, publicado anteontem no jornal Observador, tem por título "Uma escola nova, um Homem novo"
"Todos debitam opiniões e convicções, mas poucos sustentam os seus argumentos na experiência quotidiana vivida no interior das escolas e no soalho da sala de aula ou na articulação entre a prática pedagógica sistemática e a investigação persistente. 
Devemos reconhecer que a educação em Portugal progrediu muito nas últimas décadas (...). Segundo os dados do PISA, ao longo dos anos 2000, Portugal galgou lugares, nos domínios das ciências, leitura e matemática, encontrando-se acima da média dos países da OCDE (a lógica economicista do PISA não o vocacionou para medir os conhecimentos de História e de outros domínios das humanidades!). 
Tornou-se, por isso, uma «estrela ascendente da educação internacional». Porém, o país encontra-se ainda abaixo da Finlândia, Singapura, Japão, Canadá, Suíça, Suécia, Nova Zelândia e de pouco mais de uma dezena de outros países desenvolvidos. Por conseguinte, atrás de países que ostentam outros valores de crescimento económico, social e cultural. Que estão ausentes dos primeiros lugares nos rankings de corrupção e tráfico de influências. Que não têm uma cultura da «cunha», do nepotismo e do amiguismo. Países onde os encarregados de educação possuem habilitações académicas bem mais elevadas. Que tratam os seus professores com maior dignidade. Que cuidam equitativamente de todo o seu território nacional. Que suprimiram as «escolas-pardieiros» e desconhecem mega-agrupamentos providos com recursos tecnológicos primitivos. 
Não obstante os bons resultados obtidos, decidiu-se que Portugal deve alcançar imediatamente os países acima citados, apesar dos anos-luz que nos separam deles. Para isso tem de suprimir as reprovações no ensino básico e no secundário. Em terra abençoada por milagres e epifanias, o governo português e os seus gurus do movimento da escola moderna tiraram da cartola um novo milagre de Nossa Senhora de Fátima: chama-se Autonomia e Flexibilidade Curricular. 
Pedagogias construtivistas, trabalhos cooperativos de projeto, ensino por núcleos de aprendizagens, onde os alunos decidem como e o que querem aprender, diferenciação pedagógica que atenda aos ritmos de aprendizagem de cada aluno, desvalorização dos conhecimentos científicos, redução extrema do peso dos testes escritos no processo avaliativo, etc. 
Tudo isto propagado por um eduquês tão eloquente quanto cabalístico vertido em decretos-lei e declamado por teóricos obstinados ou praticantes extasiados de uma cartilha inspirada, dogmaticamente, em diversos autores. Por exemplo, no velho psicólogo marxista Vygotsky, no antigo pedagogo anarquista Freinet, na venerável médica pedagoga Montessori, no saudoso filósofo diletante Agostinho da Silva, ou no sociólogo Edgar Morin, com a sua complexa visão multidimensional, universal e cívica da educação. 
Eis, pois, a última panaceia educativa, a «novel» receita miraculosa do sucesso que vai, enfim, transformar a vil escola de massas numa verdadeira escola inclusiva, libertadora e criadora de cidadãos resplandecentes. 
Como se os professores da «escola retrógrada», que produziu os resultados acima descritos, ignorassem estes e outros autores mais as suas filosofias e pedagogias e não desenvolvessem há anos uma miríade de atividades cooperativas, cívicas e inclusivas com os seus alunos, que complementam os conteúdos formais apreendidos em sala de aula: clube europeu, clubes de jornal, rádio, teatro, cinema, património, ambiente e saúde, visitas de estudo, intercâmbios com escolas estrangeiras, palestras, exposições, desporto escolar, evocações de efemérides, saraus, quizes temáticos, jogos de Matemática, concursos de leitura e escrita, feiras do livro, projetos de ciência viva, Parlamento dos Jovens, salas de estudo com apoio individualizado, e muitas coisas mais!   
Todavia, subsistem «detalhes» que podem atrapalhar a consagração dos conceitos tecnocráticos pós-modernos de «sucesso» educativo e «excelência» académica vertidos na flexibilidade curricular. E quais são esses «detalhes»? 
Muitas das fórmulas da nova escola agora decretadas não são consensuais entre professores, pedagogos e «cientistas da educação». 
Várias das soluções promulgadas por esta nova reforma foram implementadas sem êxito no tempo da secretária de estado da educação Ana Benavente (1995-2001). 
A promoção da educação para a cidadania contrasta com a redução da carga horária das disciplinas de História e Geografia. 
O Ministério da Educação persiste em negligenciar a formação científica dos professores nas diversas áreas disciplinares. 
E reduziu escandalosamente o orçamento atribuído às escolas, a ponto de os seus diretores não disporem de meios para realizarem obras básicas de manutenção dos seus edifícios, repararem os seus decrépitos recursos tecnológicos, acionarem o aquecimento central nos dias mais gélidos do inverno ou para reembolsarem, no tempo adequado, os seus professores classificadores, pelas deslocações às delegações regionais do JNI, a fim de receberem e devolverem as provas e exames nacionais. 
Last, but not least: muitas das «novas» metodologias pedagógicas são impraticáveis nas escolas portuguesas, onde, entre outros aspetos atrás enumerados, no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e no secundário existe pluridocência, provas de final de ciclo, exames nacionais, e a maioria dos professores tem mais de seis turmas, bem mais de 100 alunos, um ou dois tempos semanais de 50 minutos (...). 
Mas que interessa isto? Evidentemente, tudo isto são minudências para os políticos, os tecnocratas, os gurus, os missionários e os «controleiros» da proclamada «educação ética». 
Na escola da flexibilidade não há lugar para incrédulos - quem denuncia os riscos, as contradições e as inviabilidades desta cartilha é rotulado de professor ignorante, ocioso, senil e falastrão, aluno arrogante ou mãe e pai elitistas e reacionários. Os prosélitos da pedagogia «pura» já decidiram que a «escola retrógrada» provocou um «verdadeiro genocídio educacional» em Portugal e creem - e uma crença não se discute - que este novo espetáculo educativo vai proporcionar o nascimento de um Homem novo. Ora, todos sabemos como acabaram as ideologias que profetizaram a criação de um Homem novo…"

João Paiva fala no Rómulo na terça-feira sobre "Tabela Periódica: alguns bastidores epistemológicos"


Realiza-se na terça-feira, no dia 16 de Julho, no Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, no Departamento de Física da Universidade, uma palestra intitulada " Tabela Periódica: alguns bastidores epistemológicos " Será palestrante João Paiva, Professor de Química da Universidade do Porto. O evento integra-se na celebração em curso do Ano Internacional da Tabela Periódica e interessa a professores, estudantes e a todos os interessados pela ciência. A entrada é livre.

 RESUMO

 O estímulo intelectual que a Tabela Periódica (TP) induziu e provoca e as aplicações tecnológicas que esta arrumação dos elementos químicos permite e permitirá merecem ser festejados. É essa a primeira e mais significativa ideia a sublinhar.A propósito da TP e dos seus 150 anos, tentamos levantar algumas questões de alcance epistemológico, cultural, filosófico e religioso. Por exemplo:
 a) A aparente inversão posicional de árgon e potássio (e cobre e zinco) face aos respetivos pesos atómicos: leis e princípios em química; a exceção que não implica refutação mas ajuste...
b) Newlands e a lei das oitavas: a sátira sócio-científica e os bastidores da ciência.
c) A química e a física na TP: epistemologia de redução à física ou um movimento top down, com especificidades de complexidade do lado da química?...
d) Os átomos e o problema metafísico: do radical-naturalismo à ingenuidade místico-científica. 

BIOGRAFIA SUMÁRIA

 João Carlos de Matos Paiva é Professor Associado com Agregação (em Didática) no Departamento de Química e Bioquímica e membro da Unidade de Ensino das Ciências da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. O seu principal interesse situa-se nas relações da ciência com outras áreas do saber - nomeadamente poesia, filosofia, religião, divulgação, sociologia e educação. É coordenador do núcleo de "Educação, Ciência, Comunicação e Sociedade" do Centro de Investigação em Química da Universidade do Porto (CIQUP). É diretor do Doutoramento em Ensino e Divulgação das Ciências. É autor de cerca de 30 livros, uma vintena dos quais são manuais escolares.

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domingo, 14 de julho de 2019

UM DESAFIO EXALTANTE

Artigo de Guilherme Valente publicado no Observador:

Sejamos família dos que não têm família, pátria dos que não têm pátria. ´
João Paulo II

1. Que fazer com os migrantes? A interrogação mais dramática do nosso tempo

Kamel Daoud, é um intelectual argelino combatente por um Islão iluminista que continua a viver entre Ouran e Paris, apesar de condenado à morte por um imã. Ensaísta e romancista (Meursault, Contra Investigação, Editora Teodolito) assina no semanário Le Point uma crónica escrita quase sempre “no fio da navalha”, que respigo e divulgo neste meu artigo.

Perante o afluxo de refugiados, de migrantes, o que fazer? É a interrogação de consciência que Daoud coloca (28/6/18), dizendo ser a pergunta que mais teme lhe façam. É, de facto, o grande desafio para o mundo, a grande interrogação nos dias que vivemos.

 A vaga de migrantes, determinada por circunstâncias muito concretas que se conhecem, marca o fim de uma época em que o emigrante “era viajante, nómada, descolonisado, inconformado com o destino sem saída na sua terra, aventureiro, para passar a ser hoje vitima, desespero, grito, cativeiro, trunfo eleitoral”.

 A pergunta pressupõe uma outra, mais dramática para as consciência: o que devemos fazer perante os migrantes que “nos entram em casa”? Prendê-los, separá-los e tratá-los como criminosos, à maneira de Trump? Deixá-los morrer, no Mediterrâneo, mar de coragem e aventura, que nos trouxe Europa e é agora um mar de cadáveres? O que devemos responder... eu, nós, tu?

Não é um problema apenas do Ocidente, coloca-se por toda a parte, no Magreb, “junto da minha casa, em Oran”, denuncia Daoud, e no resto do mundo: os migrantes não estão a chegar apenas à Europa ou aos EU, enchem as ruas da Argélia, de Marrocos, da Tunisia, da Jordânia. “E reage-se ali como em todo o lado: com rejeição, ou medo, desconfiança, indignação, protesto, racismo ou compaixão, caridade desorganizada”.

“A tradição na África é a de acusar o Ocidente pelos males que a atormentam, julgar a Europa em nome do politicamente correcto, porque foi colonizadora pregando a moral universal. Mas essa acusação deve ser alargada ao mundo árabe”, assume o intelectual argelino.

“Reduzir a questão migratória a Trump, Salvini ou Orban é esquecer os camiões de reconduções desumanas em massa dos migrantes sub-sarianos pela Argélia. É ignorar o racismo nos outros Estados do Médio Oriente”, escreve.

E porque é, ou deve ser, para cada um de nós tão difícil responder à pergunta?

Porque é fácil dizer que acolher é um dever moral, mas não será legítimo ter medo de receber um migrante maliniano na minha cidade, no meu país? Pensar em invasão, insegurança, ameaça, crime?

É fácil dizer frases bonitas, manifestar intenções nobres, mas difícil passar aos actos que possam implicar a segurança dos meus bens, dos meus filhos, o meu conforto.

“Há páginas inteiras na imprensa do Médio Oriente e da África e também da Europa sobre o racismo, a rejeição e a discriminação na Europa. Mas que dizer das expulsões em massa de “africanos”, como os designa a imprensa islamista da Argélia, que são reduzidas no Médio Oriente a faits divers, a um combate contra ´doenças estrangeiras´, “meras” manifestações de delinquência e criminalidade”.

"Se apelo para que os outros abram os braços, então tenho de abrir os meus. Se peço contas ao Ocidente por se fechar, então tenho de pedir contas à Arábia Saudita e à Argélia por fazerem o mesmo”. “Não existe solução para mim: ter medo é legitimo, mas recusar que este medo seja paralisante é um dever, acolher é uma responsabilidade de todos”. “Como posso exigir ao Ocidente aquilo que não quero exigir a mim mesmo, o acolhimento e a solidariedade?” Interroga frontalmente Daoud.

E quando esse medo não condiciona e paralisa os governos, reverte em beneficio dos populismos, isto é, de novos fascismos que usam os migrantes para agitar os fantasmas da raça ou da segurança. A questão dos migrantes, explorada pelo radicalismo político à esquerda e à direita, unido no anti-europeísmo, está a alimentar o sentimento anti-europeu e a fomentar o regresso “às nações”. Um medo que poderá precipitar a Europa para cenários imprevisíveis. “Os medos de hoje fabricam os crimes de amanhã”.

A pergunta transforma-se então noutra, mais concreta: que fazer com o migrante? Deixá-lo morrer? Mas a morte do outro... é a morte de nós.

Os Europeus devem ter presente a matriz da nossa Europa, uma região do mundo cujo mito fundador é um mito da emigração.

É esse o tema da Eneida, um herói que não tendo conseguido salvar a sua Tróia, no Médio Oriente, parte cumprindo a vontade dos deuses em busca de uma outra pátria. Viaja, atravessa o mar, não no regresso ao conforto da sua Ithaca, como Ulisses, mas para fundar uma pátria nova. E é assim que nasce... Roma. Um mito fundador que o governo italiano devia ser o primeiro a não esquecer. Todos nós europeus, portugueses, somos herdeiros de recém-chegados. O grande desafio do nosso tempo é organizar uma uma política da emigração justa, viável, bem recebida, aceitável pelos europeus.

Para nos reencontrarmos com o espírito europeu, devemos encontrar também neste caso, in extremis, “um equilíbrio dinâmico entre a insensibilidade, que nalguns casos será mesmo crueldade, a compaixão, a generosidade, a inteligência. Por agora os insensíveis parece terem a iniciativa. Chega-se mesmo a afirmar querer expulsar 500 000 migrantes.

 Ora não é assim que se defende a Europa, não é com uma política de expulsões e de deportação em massa absolutamente revoltante e incompatível com a sensibilidade europeia.

 A solução revela-se, então, num registo diferente, mas óbvio: evitar que haja migrantes.

O que é imperativo é adoptar uma nova política externa europeia de intervenção nos países de partida, para dissuadir a migração, estancar a hemorragia do capital humano, vital, afinal, para o desenvolvimento próprio, para o futuro dessas regiões agora devastadas. E, antes de mais, acabar com as intervenções de lesa-humanidade, como a que governos dos Estados Unidos e da França fizeram designadamente na Síria e na Líbia. Obama já o terá reconhecido.

Um único refugiado na Alemanha custa aos contribuintes alemães 20 000 euros por ano; com um quinto dessa importância poderiam ser criados postos de trabalho no local de origem que permitiriam viver a uma dezena de pessoas, refere o filósofo alemão Peter Sloterdijk num seu livro sobre a crise europeia (Après le diluge , Payot). Mas para isso é preciso que a Europa tenha uma posição comum, espírito e determinação de solidariedade – que é também revitalizadora do projecto empolgante de uma pátria comum europeia. É preciso, também para este objectivo incontornável e edificante, mais Europa.

Para isso a esquerda, a esquerda liberal e democrática, tem de regressar aos seus valores universalistas fundadores, libertar-se do contágio identitarista e obscurantista que agora a debilita e também ameaça correntes da direita liberal, também seduzida pela moda.

 A questão dos migrantes não pode ser resolvida com o fechamento das nações, que também entre nós a extrema esquerda militantemente anti-europeísta deseja.

O fechamento não permite resolver, aliás, nenhum dos outros grandes problemas do nosso tempo, todos globais, só resolúveis no quadro do entendimento e da acção concertados de todos os Estados do Planeta.

A questão dos migrantes prova aos europeus (aos que não estão cegos pelo ressentimento e a ideologia) a necessidade de fronteiras exteriores comuns. Melhor e mais Europa, é o que os Europeus e o Mundo precisam. Não há felicidade sem bondade, dizia Lacan. Uma Europa fiel ao espírito universalista e humanista europeu. Uma Europa em que nos orgulhemos de viver.

Guilherme Valente
gvalente@gradiva.mail.pt

ABORDAGEM DIMENSIONAL DA HISTÓRIA

Novo artigo enviado por Nuno Pereira:

    O sistema educativo tem como escopo principal formar cidadãos autónomos, críticos e participativos, e não apenas produzir mão de obra de acordo com a lógica do mercado. A História desempenha papel central na construção da identidade e na formação da cidadania. A identidade nacional, reformulada em processo contínuo, cria consciência de pertença a um país e vínculos entre cada geração e as gerações anteriores. No caso singular português, constitui-se com base essencialmente na autonomia política e na continuidade territorial, de duração extraordinária. O conhecimento histórico incute a crença na possibilidade de mudança das condições em que se vive, ao permitir compreender não só a diferença entre a realidade atual e a pretérita, mas também que os direitos de que gozam hoje os cidadãos não foram mercês do poder estabelecido, mas conquistas ao longo do tempo.

    A História de Portugal (antecedida pela Geografia da Península Ibérica), no 2º ciclo do Ensino Básico, assume importância significativa para alunos cujo desenvolvimento cognitivo se encontra no estádio de transição entre o pensamento concreto e o pensamento formal. O conteúdo da disciplina já não se centra tanto nos acontecimentos político-militares das elites e dos heróis (como na História tradicional), mas ocupa-se também com as estruturas, as tendências, as mudanças da administração central e local, da sociedade, da economia e da cultura. Como é evidente, nas aulas, a cada passo estabelecem-se relações do passado com o presente e vice-versa, interpreta-se conforme o contexto de cada época e promove-se a ação investigativa.

    Todavia, segundo o programa vigente, os alunos partem para o estudo da história dum país de que pouco conhecem. De facto, nestas idades, possuem um conhecimento restrito ao seu quotidiano e ignoram bastante acerca do país e mesmo do local onde vivem, pelo que as comparações passado-presente e vice-versa são obviamente muito frágeis, embora ações com personagens em tempo e local remotos, por si sós, despertem interesse. Acresce ainda que é no fim do 6º ano de escolaridade que aparece o capítulo «Portugal Hoje», onde a turma praticamente não chega por falta de tempo, pelo que pode terminar o 2º ciclo sem ter ideia precisa do país real. Ora, torna-se mais natural conhecer primeiro «Portugal Hoje» para depois estudar o seu passado desde as origens até à atualidade.

    Além do mais, ao longo do 5º e do 6º ano, o devir histórico é apresentado como noções esparsas, difíceis de reter e de relacionar por falta de estruturação. Porém, para conhecer algo melhor há que em princípio examinar parte por parte. Assim, para ficar mais clara a história dum país pode-se seccionar em várias dimensões - política, militar, administrativa, social, económica e cultural – e depois integrá-las em blocos coesos de cada época e em sucessão ordenada.

    A análise dimensional (sincrónica e diacrónica) permite compreender de modo coerente e sistematizado (com menor perda de informações) a História de Portugal e aproveitar melhor o seu potencial transformador.
                               
                                                                 Nuno Pereira  (psiquiatra)

UMA OFENSA AO ESPÍRITO EUROPEU

Artigo de opinião de Guilherme Valente publicado no Sol de ontem:

O artigo de Fátima Bonifácio publicado no passado fim-de-semana no Público, e que deu origem a enorme polémica, assenta em ideias e pressupostos errados. Diz da Europa e de Portugal o que não são. Vê as culturas, a História, os africanos e as suas aspirações, a sua presença secular em Portugal, a realidade cultural e demográfica do país, o espírito e o modo da nossa terra, como não são. Encerra perversamente os seres humanos num destino fatídico, como a História inquestionavelmente não permite. O resto são banalidades óbvias e estados de espírito. 

O ‘nós’de Fátima Bonifácio não é o ‘nós’ europeu, da herança grega e cristã. É o seu oposto. Não é o ‘nós’ de Erasmo, Voltaire, Condorcet, Goethe ou Churchill, de S. Tomás e Francisco, nomes que  agora me ocorrem. Das grandes figuras do Renascimento, do Iluminismo e da Modernidade, da solidariedade humana,  de Beethoven e Bach, da grande literatura e arte europeias, que espelham o cosmopolitismo, universalismo e humanismo que fizeram a Europa – e que a Europa levou ao mundo, até à Índia.  

O artigo de Fátima Bonifácio é o oposto. Lembra o pior da Europa. O pior que no passado venceu com o sacrifício de milhões de europeus. E assim se foi fazendo mais Europa. O artigo de Fátima Bonifácio sugere (ou remete para) o que a essência da Europa não é. Pelo que pressupõe, ofende o espírito e o sonho europeus - hoje, de facto, confrontado com o desafio singular da torrente de migrantes. Que sobretudo ao Ocidente se deve. 

O artigo de Fátima Bonifácio ignora o que é a Europa, o que fez a Europa, de onde veio a  Europa, de onde chegaram os europeus, de onde viemos todos nós. Leia-se  a Eneida!

O que informa o artigo da doutora Fátima Bonifácio não é a História, não é conhecimento sociológico, não é exercício de razão, não é sequer um mero olhar sem preconceito da realidade do país e da cidade, das ruas por onde circula, das pessoas com quem se cruza, da vida à sua volta. 

Ao contrário do que sugere, milhares de cidadãos portugueses africanos, com filhos e netos tão portugueses como os filhos e netos da autora do artigo, trabalham honestamente em todas as áreas profissionais. Dos mais qualificados, alguns, a uma maioria menos qualificada, porque a maior parte deles terá nascido na pobreza, nos guetos de exclusão e violência, onde os pobres e os negros se confundem. Vieram, todos eles, para se integrar. Desejam todos eles, consciente ou inconscientemente, ter acesso às mesmas oportunidades oferecidas aos que nascem noutros ambientes. Igualdade de oportunidades - as mesmas, pelo menos, que a autora do artigo teve.

Porque as quotas – que considero, aliás, inúteis e perversas – não são apenas as que agora se pretendem atribuir, errada e americanamente, a negros e ciganos. São também ‘quotas’ porventura social e nacionalmente mais devastadoras: as vantagens iníquas de que outras minorias beneficiam – nascimento, estatuto, relações políticas e académicas, dinheiro, amiguismo, nepotismo, etc. Não é preciso ser doutor, historiador, sociólogo, para o saber e ter visto. E o tal facilitismo, como o artigo o descreve, tem obviamente ‘beneficiado’  esmagadoramente os ‘brancos’. 

O artigo da doutora, historiadora, socióloga Fátima Bonifácio parece ignorar muito sobre a História e tudo sobre as culturas – que considera petrificações imutáveis, que não são.

Ignora as relações interculturais, e a imensa literatura sobre a permanente reelaboração das culturas e a integração dos que as transportam; e as dramáticas excepções disso (caso dos ciganos) não permitem a generalização radical que o artigo faz. 

Ignora a história e a demografia de Portugal, onde, entre migrantes de todo o planeta,  desde o século XIII, milhões de africanos se integraram e cruzaram, sendo hoje  parte constituinte da população do Portugal que somos.  

Bastaria a  doutora Fátima Bonifácio ter lido a História da Cultura em Portugal, de António José Saraiva - incontornável para uma doutora em História –, para não veicular a ignorância e a arrogância  doutorada que caracteriza o artigo. 

O artigo de Fátima Bonifácio é, nalgum grau, o reverso equivalente, esperado, dos artigos do activismo negro, melhor, negro-muçulmano islamista - dito anti-racista, mas racista, de facto - a que as direcções do Público vêm dando espaço e voz.

Dou apenas dois exemplos. Os artigos e a divulgação enfática de afirmações do senhor Mamadou Ba - um ‘Fátima Bonifácio negro’, equivalente, no seu grau e  forma próprio, diferente no objectivo concertado que é o dele. E uma Carta ‘racista’, subscrita por dezenas de nomes, aparentemente de negro-muçulmanos estrangeiros, intitulada ‘Não queremos um museu contra nós’. É uma peça da campanha contra um Museu dos Descobrimentos, momento da tentativa de chantagem que tentaram fazer com o passado histórico de Portugal - realização admirável, com as sombras da época e da obra humana, mas glorioso motivo de orgulho para toda a humanidade. Tanto quanto me lembro, nenhum dos subscritores dessa Carta era identificado pelo jornal. Uma carta anónima, portanto, grau zero do jornalismo. Para além de mim, não me lembro de ter ouvido ou lido qualquer outro protesto. 

O objectivo desse activismo ‘anti’- racista – numa aliança que, com nuances, é em França designada islamo-esquerdista – é gerar conflitos étnicos na sociedade portuguesa. Usando como carne para canhão a gente frágil que procurou paz e futuro em Portugal, querendo mantê-la no gueto de miséria, inferioridade e violência em que vive. Gueto de que o Estado e todos nós temos de fazer mais para que eles possam sair. 

Não tendo - penso - a intenção organizada desse activismo negro muçulmano esquerdista, as generalizações e a ignorância patente no artigo da doutora Fátima Bonifácio são cúmplices objectivos dela, alimentam-na, dão-lhe pretexto e força. 

Duas palavras sobre o patético editorial da Direcção do Público. Intrigante é parecer ignorar que não é publicando ‘lixo’ negro e branco, dos vários quadrantes políticos, que o jornal passa a ser (volta a ser...) como diz que é. Lixo é lixo. Venha ou não envolto em todos os diplomas imagináveis de suposta excelência e na arrogância triste mais do que suspeita. 

Mas ainda bem que esse artigo e os reversos  idênticos dele foram publicados. Se não forem contagiantes e podendo ser contestados, é útil que os medos, os ódios, as frustrações e as pulsões se revelem. Que purguem... se a purga for com palavras.

Guilherme Valente

25 de Abril, Corte e Costura


Meu texto de recensão no mais recente "As Artes entre as Letras":


O autor, João Cerqueira, nascido em 1964 em Viana do Castelo é uma espécie de “enfant terrible” das letras portuguesas: o “sistema” não repara nele. Não vem da literatura, mas sim das artes visuais, pois é mestre e doutorado em História da Arte pela Universidade do Porto. Escreveu na sua área de especialidade livros como “Arte e Literatura na Guerra Civil de Espanha” (publicado entre nós pela Prefácio em 2004 e também no Brasil) e “José de Guimarães: Arte Pública” (catálogo publicado pela Fundação Fernão de Magalhães, 2010). Como obras de ficção escreveu “A Culpa é destas Liberdades” (Pena Perfeita, 2007), “A Tragédia de Fidel Castro ( publicado na Saída de Emergência, 2008;  foi publicado em tradução inglesa nos Estados Unidos), “Reflexões do Diabo (Saída de Emergência, 2010) e “A Segunda Vinda de Cristo à Terra” (saído na Estação Imaginária, 2015). Nessas obras o humor e a  ironia  são recursos literários  para desnudar o mundo em que vivemos: por exemplo, no último romance atrás referido Jesus Cristo vem de  novo à Terra, precisamente em Portugal, encontrando uma Maria Madalena que é activista ambiental…  João Cerqueira é autor também de vários contos, muitos deles publicados no estrangeiro. Sendo largamente ignorado em Portugal, tem sido reconhecido no estrangeiro. A tradução “The Tragedy of Fidel Castro” ganhou o USA Best Book Awards 2013, o Beverly Hills Book Awards 2014, o Global Ebook Awards 2014, foi finalista do Montaigne Medal 2014 (Eric Offer Awards), e foi considerado pela revista “ForewordReviews” a terceira melhor tradução publicada nos EUA em 2012.

 A sua última obra, “25 de Abril, Corte e Costura” (um título original que chama desde logo a atenção), foi publicada em março passado pela Ideia-Fixa, um imprint da editora Alêtheia. Com uma escrita leve e divertida, o livro inscreve-se na mesma linha satírica dos anteriores, integrando-se num género que sempre teve cultivadores entre nós, desde as cantigas de escárnio e mal dizer e Gil Vicente no século XVI até Mário de Carvalho no nosso tempo passando no século XIX por Ramalho Ortigão e Fialho de Almeida e no século XX por Mário Henrique Leiria e Luiz Pacheco. Trata-se de ridicularizar a vida política portuguesa,  imaginando uma cidade portuguesa- com o nome de Augusta -  onde os partidos da direita e esquerda se digladiam.

O enredo é simples, embora a acção por vezes se complique. Para celebrar os 40 anos do 25 de Abril, portanto em 2014, o presidente da Câmara, de seu nome Jaime Fagundes,  um político que pugna  pela “democracia do futuro” (um lugar comum que evoca os lugares comuns que pululam na política, tanto nacional como local),  quer organizar comemorações grandiosas. Mas, na vereação, direita e esquerda não se entendem: a direita quer organizar uma exposição sobre a história gloriosa da pátria, um quadro vivo das Aparições de Fátima e uma tourada. Por seu lado, a esquerda quer fazer um teatro de rua sob o tema "Da escravatura ao neoliberalismo" e uma parada homossexual. A  direita tem por lema o “Abril desinfectado”, ao passo que a  esquerda assume como divisa “Abril no coração.” É óbvio que a preocupação maior de cada sector político não é tanto a defesa das suas próprias ideias, mas  irritar o mais possível os adversários: a tourada irrita solenemente a esquerda enquanto a parada homossexual irrita solenemente a direita. Enquanto os dois grupos preparam o grande dia, surgem em Augusta alguns personagens extravagantes, em geral forasteiros: um artista louco (que só  tira fotografias desfocadas), uma jovem socióloga que vem estudar as comemorações, um guru com o seu pequeno séquito de alienados, um ex-pide que pretende voltar ao tempo da “outra senhora”  e um casal que, vítima da crise, perdeu a casa para o banco e quer-se vingar à bomba do neoliberalismo reinante (antes de deitar a bomba a uma vivenda cogitam para saber se ela será de um neoliberal). Para a tourada, a direita acaba por arranjar um toureiro espanhol de terceira categoria (tinha a vantagem de ser barato, o mais barato que havia), enquanto, para a parada gay e lésbica, a esquerda experimentou alguma dificuldade em arranjar manifestantes. Como o humor é sempre a exploração da surpresa. Não vou aqui introduzir spoilers para saber como tudo vai acabar, apenas digo que o autor se serve do seu conhecimento de arte contemporânea para resolver tudo com uma entropia artística, uma exposição intitulada “Estado Renovo” que acaba desconstruída   

Como é normal quando se recorre à sátira humorística alguns personagens são caricaturas levadas ao extremo. Da mesma maneira que um caricaturista põe enorme o nariz já grande de alguém, o autor, que dá mostras de ser um bom observador, exagera os tiques dos seus personagens. Nas situações caricatas que eles vivem podemos reconhecer as fraquezas, para não dizer as misérias, da nossa vida política, artística e até científica nacional. Não raro me vi a rir destemperadamente com o destempero de algumas situações cómicas. Por exemplo, o casal de bombistas não consegue destruir nada à bomba, pois não passamos de um país de “inconseguimentos” (o vocábulo, que ficou célebre, é de uma política que presidiu à Assembleia da República!). Portugal é um país de “portugueses suaves”, mesmo quando alguns se armam em “durões”. Enchemo-nos de discursos extremos, indignamo-nos por tudo e por nada, mas depois tudo fica em meias-tintas. Andamos todos uns contra os outros, mas depois no fim ficamos todos amigos na mesma. Começa-se com o “corte,” mas depois tudo acaba em “costura”, ainda que seja uma costura mal feita.

Esta é uma prosa narrativa repleta de diálogos e, portanto, próxima da linguagem do dia-a-dia. Lê-se bem de uma ponta à outra, por quem conheça a realidade nacional (julgo que será mais difícil encontrar leitores lá fora, ao contrário da “Tragédia de Fidel Castro”). Obra não convencional no nosso panorama ficcional (lembra-me por vezes a ficção de Manuel João Ramos, embora nesta os aspectos sexuais sejam bem mais empolados) , cumpre o  duplo propósito de simultaneamente de divertir e denunciar a situação política e social do país.  É uma paródia não tanto ao 25 de Abril, que foi a fonte de liberdade de que felizmente gozamos, mas ao país em que nos tornámos, mais de quarenta anos depois da Revolução.


quinta-feira, 11 de julho de 2019

O Vento e a Terra


A força e o simbolismo das imagens cinematográficas estão presentes em dois filmes ímpares: Terra, de Aleksandr Dovzhenko, e O Vento, de Victor Sjöström. 
No filme do realizador ucraniano, depois de o herói (um trabalhador rural) ser assassinado, traiçoeiramente (consideravam-no um revolucionário), o corpo é transportado numa carroça aos solavancos, por entre searas, girassóis e macieiras. Sob um céu nublado, os girassóis, consternados, seguem e reverenciam o cadáver, como se ele próprio fosse o sol ou a verdade, e as vergônteas das macieiras, pesarosas e pendendo carregadas de maçãs, roçam-lhe, desesperadamente, as narinas e os lábios, como que para o vivificar (retornar à terra). É o paraíso a despedir-se do homem a caminho do céu. 




Depois de a mulher receber a notícia da morte do marido, desnuda-se, por completo, no quarto, e, com a brancura do corpo descoberta por um clarão, chora, loucamente, como se pretendesse estar mais próxima dele, tanger-lhe a pele.  
Atualmente, no realizador turco, Nuri Bilge Ceylan, e nos seus filmes, Sonho de Inverno e Era uma Vez na Anatólia, encontro um pouco da arte de Aleksandr Dovzhenko. 
Também no filme do realizador sueco, Victor Sjöström, a imagem é expressiva e arrebatadora. Quando a bela Lillian Gish desce do comboio, depois de atravessar o deserto, um vento indomável ergue-se de supetão. O medo apodera-se dela (da sua vulnerabilidade), e, enquanto os olhos se erguem desconfiados para o céu, segura o chapéu e os cabelos caídos sobre os ombros. Neste filme, o vento simboliza as adversidades do casamento, que só poderão ser superadas pela união.

Se tivesse que escolher os dois filmes que mais me impressionaram, escolheria, decerto, os filmes que referi atrás. Também não me posso esquecer de outros realizadores mais conhecidos: Federico Fellini (Os Inúteis), Jean Vigo (L’Atalante), Jean Renoir (A Regra do Jogo), Eisenstein (Outubro) e François Truffaut (Les Quatre Cents Coups).
Recentemente, diante da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e sob o frémito de uma árvore frondosa, cujo nome desconheço e gostaria de conhecer, enquanto falava de cinema, com duas senhoras, não me recordei d’a Terra nem d’O Vento. Pois, aqui os deixo.

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