sexta-feira, 20 de julho de 2018

POR UM MUSEU DAS DESCOBERTAS


Meu artigo no último "As Artes entre as Letras" (na imagem planisério de Cantino, de 1502) :


Pedro Nunes, o maior cientista português de todos os tempos, escreveu no seu Tratado em defensão da carta de marear, de 1539: “Não há dúvida de que as navegações deste reino de cem anos a esta parte são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e mais discretas conjeturas que as de nenhuma outra gente do mundo. Os portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e, o que mais é, novo céu e novas estrelas” (cito o texto inserido em Primeiras obras de marinharia e guerra marítima, coordenado por António Costa Canas, que é o volume 9 das Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, coordenadas por José Eduardo Franco e por mim e editadas pelo Circulo de Leitores).

A palavra “descobertas” ou a sua forma mais arcaica “descobrimentos,” que é sinónima, embora esteja mais conotada com os feitos históricos dos portugueses nos séculos XV e XVI, significa, segundo o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: “acção de localizar pela primeira vez uma região, ou encontrar uma substância ou qualquer fenómeno científico, desconhecido até então; criação do espírito.” Tanto o termo “descobertas” como “descobrimentos” são boas designações para um museu que faz falta a Portugal e que foi anunciado pelo Presidente da Câmara de Lisboa, pois descrevem de um modo genérico um tempo de grandes novidades. Há, no entanto, quem não concorde: um abaixo-assinado subscrito por alguns cientistas sociais, ao qual se seguiram outros documentos assinados por outras pessoas, recusa a designação, alegando “incorrecção histórica” e ligação ao colonialismo. Acontece que os maiores historiadores portugueses e estrangeiros têm usado as designações “descobertas” ou “descobrimentos” (em inglês “discoveries”, em francês “découvertes”). De facto, a palavra “descobrimentos” foi adoptada em obras dos maiores especialistas em história dessa época como Jaime Cortesão, Vitorino Magalhães Godinho e Luís de Albuquerque, todos eles insuspeitos de simpatias pelo Estado Novo. A palavra “expansão” também costuma ser empregue neste contexto quando se pretende abranger um período maior que os séculos XV e XVI.

As descobertas portuguesas não se fizeram ao acaso, mas por um processo racional. Pedro Nunes escreveu umas linhas mais à frente no mesmo texto: “Ora, manifesto é que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar, mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e providos de estormentos e regras de astrologia e geometria, que são as coisas de que os cosmógrafos hão de andar apercebidos” (“estormentos” é a forma antiga de instrumentos e por astrologia deve entender-se astronomia). Tais descobertas assentaram no aperfeiçoamento gradual de uma embarcação ligeira, a caravela, no uso da bússola, uma invenção chinesa para saber o Norte, e do astrolábio, instrumento de origem árabe que permitia determinar a latitude e que foi adaptado para utilização a bordo. A navegação no Atlântico, no qual durante meses não se avistava terra, era muito diferente e bem mais arriscada do que a navegação no Mediterrâneo, onde se vê logo terra em poucos dias de viagem. Graças aos desenvolvimentos náuticos que conseguiram, os portugueses foram os primeiros europeus a passar a linha do Equador, em 1473. Passaram também o Cabo da Boa Esperança em 1487. Chegaram à índia em 1498, desembarcaram no Brasil em 1500, na China em 1513  e no Japão em 1543. Ao basear-se na observação e na experiência, as navegações lusas constituíram um prelúdio da Revolução Científica, que ocorreu na Europa na segunda metade do século XVI e ao longo de todo o século XVII e à qual associamos grandes nomes como Galileu e Newton. Em consequência das descobertas marítimas, surgiram novos mapas (as primeiras cartas do Atlântico com latitudes marcadas, por exemplo), livros (como o Colóquio dos Simples, de Garcia da Orta, sobre plantas orientais de uso medicinal, publicado em Goa em 1563) e colecções de espécies minerais, vegetais e animais (espécies exóticas, como o rinoceronte desenhado por Dürer, foram nessa altura vistas pela primeira vez na Europa). No século XVII, alguns missionários que passaram por Portugal, nomeadamente jesuítas, transferiram rapidamente a Revolução Cientifica da Europa para a China e para a Japão, ao traduzirem livros científicos e ao colocar no Oriente instrumentos como, por exemplo, telescópios e relógios mecânicos. Pode-se dizer que os portugueses escreveram nessa época uma página brilhante no livro da história do mundo.  Um museu das descobertas em Lisboa (no Porto já existe o “World of Discoveries”) permitiria mostrar o papel pioneiro que Portugal assumiu naquilo que alguns chamam justamente processo da “primeira globalização”. O mundo, até então compartimentado,  começou a ficar ligado pela circulação de pessoas e bens.

Os detractores do nome “descobertas” alegam que um museu assim intitulado representaria o ponto de vista português, uma vez que existem outros pontos de vista, mas é óbvio que um museu em Portugal não pode deixar de reflectir um ponto de vista nacional, embora deva estar aberto ao diálogo com o de outros. Essas pessoas acham que o novo museu devia ser um meio de assinalar a memória da colonização violenta, lembrando alguns procedimentos inadmissíveis (pelo menos à luz dos olhos de hoje) que ocorreram, em particular a escravatura. É claro que um museu dedicado às descobertas pode, para além dos aspectos relativos às descobertas propriamente ditas, falar da escravatura. Mas, para ser fiel à história, teria de dizer que esta não é uma invenção portuguesa, nem sequer ocidental. Em África praticava-se bastante tempo antes de os europeus chegarem, tendo muitos africanos sido coniventes ou mesmo participantes activos no comércio de mão de obra forçada. Os defensores de um “museu da escravatura” em vez de um “museu das descobertas” mais não fazem do que pintar de negro a página que os portugueses escreveram na história. A história deve assinalar as barbaridades, mas, não sendo um tribunal, não tem de as julgar. Não faz de resto sentido reduzir a história ao seu lado mais sombrio, esquecendo-se de relevar os feitos que mais contribuíram para a formação do pensamento moderno, como foi o surgimento do espírito científico que continua a marcar os tempos de hoje. Focando acima de tudo o tema das descobertas, o novo museu devia ser voltado não apenas para o passado, mas também para o futuro. De facto, as descobertas ainda hoje continuam, tanto na Terra como para além dela.

7 comentários:

Anónimo disse...

"tendo muitos africanos sido coniventes no comércio de mão de obra forçada." Claro, ser esclavagista não é uma questão de cor de pele (ou de ser africano ou europeu), é uma questão de classe social.

Anónimo disse...

Os holandeses também têm um museu dedicado ao período áureo do seu domínio sobre os mares: o Het Scheepvaartmuseum Amsterdam. Quem o visita fica com a ideia de que foram os holandeses que fizeram todas as grandes descobertas marítimas! É uma vergonha que Portugal ainda não tenha um grande Museu dos Descobrimentos, onde todos, portugueses e estrangeiros, possam recordar o glorioso período histórico dos séculos XV e XVI, em que os portugueses, seguidos pelos espanhóis, fomos os primeiros a dar novos mundos ao mundo. A grande diferença, em relação aos piratas que nos sucederam, é que nós demos tanto que acabamos por ficar na miséria, e eles não!...Não podemos permitir que agora nos roubem também a memória histórica. Se ainda quisermos descobrir um novo caminho para uma Nova Índia, não podemos esquecer Vasco da Gama e todos os grandes navegadores portugueses que foram capazes de transformar cabos das tormentas em cabos de Boa Esperança!

Anónimo disse...

"A grande diferença, em relação aos piratas que nos sucederam, é que nós demos tanto que acabamos por ficar na miséria, e eles não!.."
Claro, nós fomos sacrificar-nos a fim de espalhar a civilização como dizia Américo Thomaz.

Anónimo disse...

Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, in Mensagem

Rui Baptista disse...

Um assunto tão sério e épico como os Descobrimentos Portugueses sai reforçado com Jorge Jesus, ele o diz. "Descobriu"ele a Arábia Saudita e vai daí declara, "uribi et orbi", estar ao nível de grandes navegadores portugueses de antanho com esta manifestação esférica de raciocínio quadrado que cito: "O meu grande objectivo de deixar marca portuguesa com Vasco da Gama, Pero Álvares Cabral e por aí fora" (CMTV, 17/07/2018).

Faço votos que não apanhe escorbuto durante a sua perigosa viagem de avião por ares nunca dantes navegados. Mas o que vai ganhar longe deste cantinho europeu, tão pequeno em que não cabe a sua ambição, compensa o risco e traz-lhe o orgulho de se comparar a "Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e por aí fora". Já que ele não faz as coisas por menos!

Anónimo disse...

"Por te cruzarmos, quantas mães choraram," Que mães? Mães de africanos? Mães de ameríndios?

Anónimo disse...

Mães de marinheiros que embarcavam com rumo à Índia, às Áfricas e às Américas e nunca mais voltavam. Como Portugal não era rico, o objetivo de ir comprar diretamente a pimenta à Índia, evitando assim os intermediários árabes e turcos, que colocavam as especiarias na Europa a preços proibitivos, adquiriu foros de epopeia nacional, com a bênção da Santa Madre Igreja Romana. A escravatura já existia em África antes de os portugueses lá chegarem; os ameríndios perderam a guerra contra os espanhóis, na América do Sul, e contra os ingleses, na América do Norte.

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