Artigo de Jorge Buescu, publicado hoje no Público, com o qual obviamente concordo. Sou sócio da SPM e lembro que esta instituição foi escandalosa afastada pelo Ministério da Educação
do grupo de trabalho destinado a preparar o PREC educativo:
O Ministério da Educação (ME) iniciou em meados de Agosto uma reforma curricular – omitindo, contudo, por razões tácticas, esta designação, que determinaria a sujeição ao rigoroso e demorado procedimento previsto na lei – que está em vias de desmantelar os sólidos progressos alcançados em Educação nas últimas duas décadas.
Sob a capa de uma alegada “flexibilização curricular”, o ME prepara uma reforma profundíssima em todos os anos do Ensino Básico e Secundário, do 1.º ao 12.º anos, a qual envolve a disponibilização de até 25% do tempo lectivo actual para projectos interdisciplinares de natureza ainda desconhecida, geridos autonomamente pelas escolas e pelos professores envolvidos.
A flexibilização curricular, no abstracto, pode até ter aspectos interessantes e positivos. Contudo, o modelo que está a ser implantado é profundamente destrutivo do nosso tecido educativo. Com efeito, e porque se pretende manter o tempo total de leccionação, o tempo disponibilizado para outras actividades será obtido à custa de suprimir tempos lectivos actualmente atribuídos às disciplinas. Ou seja, as disciplinas actualmente leccionadas ficarão, em média, com menos 25% das aulas.
É claro que programas escolares concebidos e calibrados para uma dada carga lectiva não podem ser leccionados em 3/4 do tempo. Assim, a face negra da flexibilização curricular, sempre ausente da retórica oficial, é que haverá um corte efectivo de até 25% dos conteúdos a leccionar nas disciplinas actuais - podendo estes cortes variar de escola para escola, e no limite de professor para professor.
O ME optou por não acompanhar uma reforma tão profunda como esta de um processo de discussão pública e esclarecimento de pais e alunos. Em vez disso, nomeou um grupo de trabalho que, longe da vista do público, trabalhou na definição das assim chamadas Aprendizagens Essenciais (AE). Estas consistem no seguinte: para cada área disciplinar (Matemática, Português, História, Geografia, Física…), a partir do Programa e Metas actualmente em vigor, definem-se quais os conteúdos curriculares “essenciais” – e, por exclusão de partes, quais os “acessórios”. Os primeiros, que correspondem aproximadamente a 75% do programa em vigor, são os conteúdos que devem ser efectivamente leccionados. Os segundos são facultativos: podem ou não ser leccionados, mas nunca serão avaliados.
Ou seja: em termos práticos, as Aprendizagens eliminam a obrigatoriedade de leccionar 25% dos conteúdos curriculares – em todas as disciplinas, em todos os anos, em todos os graus de ensino. Este Processo de Reforma Educativa em Curso, verdadeiramente revolucionário, bem merece o nome de PREC.
O PREC foi discretamente publicado na página web da Direcção Geral de Educação durante o mês de Agosto de 2017, entrando em vigor no ano lectivo 2017/18 – três semanas depois da sua divulgação! Neste primeiro ano funcionará em regime piloto em 240 escolas portuguesas, sendo intenção do ME alargar esta experiência a todo o universo escolar português em 2018/19. Pode ler-se no respectivo documento:
“As AE são o Denominador Curricular Comum para todos os alunos, mas não esgotam o que um aluno deve fazer ao longo do ano letivo. Não são os mínimos a atingir para a aprovação de um aluno, são a base comum de referência”.
Ou seja, os alunos podem fazer mais coisas do que aprender o que fica definido nas AE. É natural: estas foram concebidas justamente para funcionar como cortes de matéria de forma a “libertar espaço curricular”. Mas apenas os conteúdos constantes das AE fazem parte da aprendizagem comum a todas as escolas. Na realidade, só tais conteúdos poderão ser examinados: “A avaliação externa das aprendizagens tem como referencial base as AE”. Os conteúdos tornados facultativos passam pois a ser letra morta: estão no papel, mas não é suposto leccionarem-se (o que, de resto, seria impossível com menos 25% de tempo disponível) e nunca sairão em exames.
Estes documentos curriculares são extremamente vagos, sendo na prática inúteis enquanto orientação eficaz do ensino. No caso da Matemática as Aprendizagens Essenciais padecem ainda de graves falhas científicas. A isto não pode ser estranho o facto de, do Grupo de Trabalho ministerial, ter sido deliberadamente excluída a Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), intransigente defensora da qualidade do ensino e parceira de sempre de todos os Ministérios da Educação.
A extensão do dramático empobrecimento científico resultante desta reforma está bem patente no segundo parágrafo do programa do 10º ano de Matemática A: “As Aprendizagens Essenciais (AE) agora apresentadas para o 10.º ano baseiam-se na interseção dos programas da disciplina para este ano de escolaridade homologados em 2002 e em 2014[3]”. Aquilo que os alunos sujeitos, já no ano de 2017/18, a esta delirante experiência vão aprender no 10.º ano é, pois, menos do que o programa de 2014, e é também menos do que o programa de 2002. Numa singela frase, os conteúdos de Matemática retrocedem mais de 20 anos. Alunos que nesta semana iniciem o secundário (ou, na verdade, qualquer ciclo de ensino) vão aprender muito menos Matemática do que os seus colegas do ano passado!
Este PREC recorre a métodos que não julgaríamos possíveis num Estado de Direito democrático. Toda a reforma foi preparada no segredo dos gabinetes, não foi submetida a discussão pública e foi discretamente comunicada às escolas três semanas antes do início das aulas. A esmagadora maioria dos pais das crianças que vão ser cobaias deste experimentalismo não teve opção por fazer ou não parte das turmas-piloto – porque não soube da existência do PREC. Agora é tarde: o ano está a começar e as turmas estão constituídas. O seu filho está numa turma-piloto?
O Ministro da Educação Tiago Brandão Rodrigues é um homem de Ciência, esclarecido e cosmopolita, e um académico com créditos firmados internacionalmente. Ele sabe bem que a Matemática é uma ciência extremamente estruturada e cumulativa, na qual aprender menos é saber menos. Custa a acreditar que esteja a promover uma reforma tão dissolvente do conhecimento, do rigor e da exigência como a que está em curso com este PREC.
Jorge Buescu
Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
3 comentários:
Sou a favor de debates alargados e não me parece correto que entidades importantes sejam posta à margem de decisões que interessam a todos. No entanto, não concordo de todo com o argumento de que os alunos aprenderem menos matemática seja prejudicial. Pelo contrário, acho que em todas as disciplinas deveria haver cortes nos programas quer porque os programas são demasiado extensos quer porque muita da matéria leccionada não tem qualquer interesse para a maioria dos alunos sendo exclusivamente do interesse de uma percentagem ínfima que se irá dedicar a ao tema em causa em cursos superiores. o conhecimento está continuamente a acumular-se e não é possível continuar a inclui-lo nos programas pelo que é preciso cortar nalgum lado para dar lugar a novos conhecimentos. Para além disso, a escola deveria integrar um conjunto de conhecimento sobre vida em sociedade, direitos e deveres dos cidadãos, que são importantíssimos para a nossa vida de adultos e que tem de ser aprendidos à força, e à custa de erros e enganos, dado que, quando os alunos saem das escolaridade obrigatória ou mesmo do ensino superior, não estão minimamente preparados para a vida adulta. Por isso, sou totalmente a favor de cortes nos programas, a serem discutidos por todos os interessados.
"a escola deveria integrar um conjunto de conhecimento sobre vida em sociedade, direitos e deveres dos cidadãos, que são importantíssimos para a nossa vida de adultos e que tem de ser aprendidos à força"
Concordo que são importantíssimos, ou mesmo vitais (a falta deles explica muito do que é a nossa baixa produtividade, a nossa alta evasão fiscal, corrupção e conflitualidade, etc), contudo, a escola será a menos vocacionada para fornecer essas competências:
Elas deverão ser adquiridas através da família ou, na ausência dela, nas organizações civis da sociedade (eventualmente também religiosas, mas não queria entrar por aí).
Se essas competências já existissem (ou estivessem em embrião) em quem frequenta as escolas, 90% dos problemas destas não existiriam...
Dervich
... cientista! pois, sim, que nós acreditamos! o cantor de lindas cantigas tambem era o seu autor... a vergonha é algo que não existe neste país.
Enviar um comentário